Conheci Albertico, ou Alberto para os amigos, quando estava no porto de Tarifa, a aguardar autorização para embarcar no ferry de ligação a Tânger. Alberto vinha na sua bicicleta eléctrica, com um ar de hippy dos anos sessenta, a quem não faltavam os óculos de armação de arame, um chapéu que lhe cobria os cabelos brancos, a barba por desfazer e um olhar de quem olha o mundo com um sorriso de desdém. Alberto é director artístico em Marbelha, mas os seus pais são de origem marroquina, pelo que quando lhe apetecia, vinha para Tânger rever amigos e saborear “las cosas genuinas”, como me disse com a espontaneidade sincera de quem vive a vida a tempo inteiro. Alberto era um bon vivant e há muito que se tinha revoltado contra aquilo que considerava ser a podridão de Marbelha e aproveitava as frequentes viagens ao Norte de África para rever pessoas que não via há muito tempo, mas também para negócios, como era o caso desta vez, em que iria propor ao responsável da cultura do reino de Marrocos um Festival Internacional de Jazz.
– Portugal? – perguntou-me ao olhar a bandeira que trazia na bicicleta
– Sim, Portugal – respondi estendendo a mão a Alberto que logo puxou de um cartão de visita e se apresentou. Curioso, quis saber o propósito da minha viagem e depois de uma conversa que não demorou mais que dez minutos, Alberto, fez questão de me dar a conhecer Tânger. Aceitei o desafio, que por sinal vinha mesmo a calhar. Assim que desembarcámos seguiu-o até onde a polícia aduaneira inspeccionava quem chegava.
O polícia olhou-me de alto a baixo, sempre com um sorriso, enquanto Alberto, em árabe, ia conversando com ele.
– Anithing declare? Drugs, pum-pum? – perguntou-me o polícia, num inglês que apesar de cómico, deu bem para entender. Sorri e disse que o mais perigoso que trazia era um canivete suíço. Alberto tratou da tradução em árabe e os três ficámos a rir uns dos outros sem sabermos muito bem a razão. Segui Alberto e poucos metros depois de deixarmos a alfândega, Alberto acelerava pelas ruas da antiga medina, serpenteando por entre os inúmeros transeuntes, num verdadeiro caos. As ruas, estreitas e íngremes, obrigaram-me a um esforço suplementar para seguir a bicicleta eléctrica de Alberto, que não parava de apitar a buzina e a dizer algo em árabe que suponho fosse “cuidado” ou algo parecido. Chegamos a uma espécie de cruzamento e o ambiente parecia-me saído de um filme de Ali Babá. Só então pude descansar e apreciar a entrada numa nova cultura. Havia imensa gente de djelaba, o traje típico marroquino, uma espécie de túnica, usada tanto por homens e mulheres, mas também pessoas que usavam roupas convencionais para os hábitos ocidentais, com jeans e camisolas de cubes de futebol europeus. Vivia-se uma atmosfera inebriante, com lojas por toda a parte e a música dos vendedores de compact-discs. Ao contrário do que estava à espera, ninguém veio tentar me impingir o que quer que fosse e o que me foi dirigido naqueles breves minutos em terras marroquinas foram alguns bravos e a simpatia universalmente aceite pela linguagem universal. Alberto apeia-se da sua bicicleta e acena-me para eu o seguir, enquanto ainda estava a tentar digerir a minha entrada naquele novo mundo. Segui-o, através daquela torrente de gente e não andámos mais que vinte metros, até que Alberto bate a uma porta de madeira. Um frade franciscano vem ao nosso encontro e Alberto é recebido efusivamente, sendo logo convidado a entrar.
– Tambien es portugues – disse Alberto apresentando-me a Nuno, um frade português que estava em Tânger ía para mais de dois anos, naquela que viria a saber pouco tempo mais tarde, se tratar da Casa Nazareth, dos Irmãos Franciscanos da Cruz Branca. Alberto já se tinha enfaixado para o interior do edifício enquanto estava à conversa com Nuno. Criou-se uma empatia automática e natural entre nós dois e não pude deixar de admirar a coragem e a fé daquele frade franciscano, que paredes meias com uma mesquita, zelava pelo bem-estar dos mais desprotegidos, entre os quais se encontravam doze jovens marroquinos com deficiência mental profunda, em regime interno e que encontravam naquela casa o conforto e o carinho, próprios da dignidade do ser humano, pese embora as suas diferenças. Senti-me pequeno perante a grandeza da obra que estava perante os meus olhos e entrei na sala onde os jovens me saudavam enquanto viam televisão. Senti um aperto no coração e tive de fazer um esforço para conter as lágrimas, disfarçando com sorrisos sinceros e com uma sessão de fotografia em que todos posámos para a câmara com uma alegria contagiante.
Chamei Nuno à parte e remexi na minha bagagem oferecendo as barras energéticas que trazia comigo. Era o mínimo que podia fazer. Fiquei com apenas três barras para alguma emergência, mas achei que havia quem precisasse mais que eu.
Foi-me então explicado que para além daqueles jovens com deficiência profunda, a instituição tinha ainda um posto médico, uma lavandaria, chuveiros, refeitório, tudo para acudir às necessidades básicas de muitos jovens daquele bairro tão carente de tudo e onde os turistas faziam passagem obrigatória, desconhecedores da dura realidade que se escondia nos becos e vielas de onde emanava um cheiro estranho. Era o cheiro do lixo, que apesar dos esforços de funcionários pouco motivados pelo mísero salário que auferiam, se amontoava a olhos vistos, sem que houvesse contentores do lixo (pelo menos não vi nenhum). Recordava agora as palavras dos ciclistas espanhóis que havia encontrado no Cais do Sodré, e que me avisaram que a minha primeira impressão seria algo estranha assim que visse o lixo nas ruas.
Mas a Casa Nazareth era, no seu interior, limpa e asseada e inserida no bairro mais carismática da antiga medina, dava conta das necessidades de tantos jovens que andavam nas ruas aos Deus dará sem nada fazer, sem perspectivas de vida, que não fosse deixar passar o tempo. De resto, tinha reparado no pormenor, antes de subir as ruas da medina, que havia jovens que olhavam o mar fixamente, empoleirados nas escadarias.
– Estão esperando um barco ou um camião para poderem fugir para a Europa – explicou-me Alberto, que com o olhar resignado, pareceu não querer adiantar mais nada. Mais tarde vim a saber que havia muitas mortes nessas tentativas desesperadas de dar a volta à vida. Jovens que se escondiam por baixo dos camiões e morriam esmagados, ou que subiam clandestinamente aos barcos e que desapareciam para sempre.
Estava na hora de deixar a Casa Nazareth, o Nuno e o seu superior e avançar atrás do meu guia improvisado. Alberto tinha um bom coração. Tinha por Marrocos a esperança mas sobretudo o orgulho de um país que lhe corria nas veias.
– Yo soy marroquino – disse Alberto, num tom autoritário, enquanto é rodeado de abraços e beijos pelo grupo de homens que se sentavam na esplanada improvisada do café. Estacionei a bicicleta e todos me cumprimentaram com um forte aperto de mão. Recordo particularmente Mustafá, que de barbas pretas se sentava na esquina a vender cigarros avulso a quem passava. Era uma figura já conhecida de todos e fez-me sentar na cadeira a mim e ao Alberto, enquanto mandava vir chá de menta para ambos
– Gent genuine – disse, em francês, Alberto, olhando nos olhos de Mustafá, que se desdobra num sorriso enorme, derrotado pela cárie.
– Vamos Jose. Te levo a comer – diz Alberto, depois de se inteirar das novidades dos seus amigos.
– Las biciletas, Alberto? – perguntei algo surpreso, com receio que as pudessem roubar, tanto mais que eu trazia bagagem. Mustafá percebendo os meus medos, acercou-se de mim e tocando-me levemente nas costas, disse:
– José… pas problem – e Alberto, descontraidamente, leva-me rua abaixo, dizendo baixinho:
– No tengas problema Jose. Se algiene toca en las bicicletas ellos lo matan – bem… com uma resposta destas não sabia se havia de ficar mais descansado ou não, pois a minha bicicleta não parava de atrair atenções. Mas segui os passos de Alberto, confiando naquele homem, que apesar das minhas reticências iniciais, me inspirava confiança.
Entrámos num restaurante, que ficava meia dúzia de metros afastado da Casa Nazareth e Alberto pediu uma sopa marroquina de nome hrira, acompanhada de pão, que iria perceber, era alimento quase obrigatório. Alberto explicou-me então que em Marrocos, a maioria da população passava grandes dificuldades, é certo, mas nunca passava fome. E a razão era simples. Os alimentos básicos, como o pão ou o leite, eram baratos, por imposição do próprio governo, que assim se defendia das manifestações daqueles que procuravam o essencial para viver. Um pão enorme não custava mais de vinte cêntimos, algo impensável na Europa e o peixe era quase dado, quando não era mesmo dado e não estou a exagerar.
Voltámos ao centro de medina histórica e as bicicletas lá estavam… intocáveis. Mustafá olhou-me com um sorriso e disse-me:
– Voilá… tranquille – respondi com um sorriso que dizia tudo. Mustafá percebeu e despedimo-nos enquanto Alberto me convidava para conhecer um dos mais luxuosos hotéis de Tànger: o Minzah. Deixámos as bicicletas na garagem do hotel, vigiadas pelo “guardian” de serviço (em Marrocos há seguranças em todo o lado). Alberto dirigiu-se ao bar do hotel e não me restou outra alternativa senão segui-lo, apesar do meu embaraço por estar vestido com o meu equipamento de ciclista, mas ninguém se pareceu importar com isso. Alberto era conhecedor daquela gente e daqueles lugares e como dominava o árabe na perfeição, as portas abriam-se como que por magia. No bar do hotel, um pianista fazia as honras da casa e não pude deixar de admirar os tectos, soberbamente decorados com motivos árabes. Ao lado, um imenso páteo, rodeado pelas paredes altas do edifício do início do século vinte, de traça original britânica, mas entretanto remodelado com o estilo e o gosto marroquinos, com influências iraquianas à mistura. Mas o resultado era relaxante e digno de um hotel de luxo.
Para surpresa minha, dos funcionários do hotel e dos poucos clientes que se mantinham aquela hora tardia, Alberto desafia o pianista e agarrando no microfone começa a cantar canções em francês, que remontavam ao tempo da Belle Époque e que traziam um ar de serenidade aquela atmosfera já de si acalmante.
Tinha-se passado uma hora e peço a Alberto se podíamos ir embora, pois começava a sentir-me cansado do esforço da etapa que havia terminado horas antes, mas o meu amigo não se queria ir deitar antes de visitar uns amigos franceses que tinham um restaurante em Tânger. E lá fomos, por entre sentidos proibidos e trânsito contrário, já sem o frenesim de gente que tinham rumado a suas casas. Passámos por uma rua escura e não pude deixar de ficar chocado com o cheiro nauseando de uma verdadeira lixeira que se amontoava num dos becos. Uma centena de metros depois, o cenário muda por completo e entramos na área reservada de um restaurante de luxo, onde nos demorámos umas duas horas numa conversa dominada por Alberto e por Remi, o jovem proprietário, que lembravam, entre outras coisas, da vida que Remi tinha deixado para trás em Marbelha, desapontado com a violência e a podridão de valores que se instalara naquela que fora em tempos a princesa da moda do turismo europeu. Foi Alberto quem convenceu o amigo, há uns sete anos, a tentar a sorte em Tânger e Remi dava-se por muito satisfeito pela decisão, pelo que parecia ter uma espécie de dever de gratidão para com Alberto.
Despedimo-nos de Remi e da sua irmã e a vida parecia estar suspensa nas ruas da antiga medina. A animação tinha-se transferido para a marginal marítima de Tânger, onde abundavam as discotecas e onde os jovens davam asas aos seus excessos, acelerando perigosamente, perante o ar de completa passividade da polícia, cuja presença era bem visível em vários pontos da extensa avenida.
Hotel, baratas e polícia
Procurávamos agora um hotel, deviam ser umas três da manhã, mas não se afigurava tarefa fácil, pois a resposta era sempre a mesma: Esgotado. Num hotel de quatro estrelas pediram 120 mil dirahms (o equivalente a cerca de 120 euros) por uma pessoa e decidimos tentar a sorte nos hotéis com ar de pensão da velha medina.
Já começava a ser difícil contrariar o sono e já estava por tudo. Com a bateria da bicicleta eléctrica de Alberto nas últimas e com o meu cansaço a acumular-se, lá fomos de novo pelo caminho que já conhecia de cor. Chegámos de novo à rua da Casa Nazareth e batemos à porta do “hotel” Mamofa. Digo “hotel” entre aspas porque até a mais modesta pensão da Rua da Boavista teria melhor aspecto, mas o rapaz que nos atendeu assegurou-nos que era um “hotel asseado”. Pediu cerca de vinte e cinco euros por cada pessoa e entrámos no hall. Afinal o interior não parecia assim tão mal e depois de deixarmos as bicicletas em plena sala de estar, subimos com a bagagem. Despedi-me de Alberto, combinando tomarmos o pequeno-almoço, por volta das 10 horas, no café onde Mustafá costumava fazer o seu ponto de venda de cigarros avulsos Marlboro, os mais apetecidos por aquelas bandas.
Mas entrei no quarto fiquei com uma sensação estranha. A casa de banho era tudo menos limpa e as cortinas estavam meio caídas, mostrando, de forma visível, a varanda do prédio vizinho, a que se podia chegar com um simples salto. A minha primeira preocupação foi ver os lençóis e mal puxei a cobertura da cama para trás fiquei algo apreensivo. Aquilo não era de um branco limpo e tinha sérias dúvidas que tivesses sido lavados desde a última vez que alguém tinha estado ali hospedado. Decidi então que iria dormir sobre a minha toalha, que haveria de estender sobre a cama.
– Se calhar estou a ser muito exigente – pensei para comigo mesmo, ao mesmo tempo que me preparava para lavar os dentes antes de tentar dormir naquele quarto. Mas como era só para dar descanso ao corpo, não haveria de ser nada – pensei, tentando me acalmar a mim próprio. Lavei os dentes, ainda a tentar me habituar à ideia de que seria apenas uma noite de sono e quando regresso ao quarto, eis que fico boquiaberto, quase sem reacção. No chão tinha agora dezenas de enormes insectos que rastejavam em todas as direcções, cada um com cerca de três a quatro centímetros. De imediato abri a porta e arranhando o francês pedi ao moço da recepção para me acompanhar ao quarto. Esboçou um sorriso de “chico esperto” tentando se fazer de despercebido.
– Si vous pleau – insisti, indicando a escada por onde seguimos em silêncio, com o jovem a adivinhar o que o esperava. Abri a porta do quarto e ainda eram mais as enormes baratas, ou lá o que era aquilo. O rapaz, lançou um ahhh com um sorriso matreiro e começou a calcar os insectos, esborrachando-os literalmente.
– Ah o tanas! – disse em bom português, para que não me percebesse mesmo e agarrando nas minhas coisas deixei o quarto num ápice. Nunca tinha visto nada daquilo em toda a minha vida e estava visivelmente incomodado. Esperei o rapaz na recepção enquanto montava o alforge na bicicleta, para sair dali o mais depressa possível.
– C´est pas possible – quase gritei, irado pela situação. Pedi o passaporte e ainda bem, que, por sorte, não tinha ainda pago, senão não sei o que seria. Pedi também o livro de reclamações, que estava em cima da mesa da recepção, mas o rapaz ficou simplesmente parado atrás do balcão dizendo que eu não tinha o direito de escrever no livro de reclamações e depois ele também não sabia dele. Já não estava com paciência para esgravatar no meu francês enferrujado e apontei para o livro, enquanto dizia na minha língua materna.
– Oh pá… O livro de reclamações é esse aí ou tás a fazer de mim parvo? – O rapaz puxou de uma folha simples e eu percebi que não valia a pena e antes que a coisa azedasse era melhor terminar por ali. Peguei na bicicleta e achei que em consciência deveria ir à polícia fazer queixa da situação, mais que não fosse para que não se ficasse a rir ao negar-me a um direito que tinha de expressar, de forma civilizada, o meu descontentamento para com a situação criada e para que, em último caso, se tomassem providências no sentido de o “hotel” Mamofa tivesse mais cuidado com a higiene e salubridade das suas instalações.
A ideia era boa, só que eu não esperava esbarrar com a irresponsabilidade de dois dos polícias de Tânger, que na esquadra local se riam enquanto tentava explicar o sucedido.
– Tu est en Africa – disse, a certa altura, um deles, perante a minha cara de espanto, pois para mim, um africano tinha a mesma dignidade de um europeu e nem uma queixa por escrito quiseram receber. Percebi que o melhor era mesmo ir embora e procurar um hotel minimamente decente, pois a polícia não era uma grande ajuda para a minha intenção de reclamar às autoridades para a falta de higiene de uma casa situada no centro histórico de Tânger que se intitulava “hotel”. Hotel um ova. E fui, descendo as ruas, às quatro da manhã. Acabei por ficar no Ramada, um hotel de quatro estrelas e depois de acertarmos o valor, eis que, depois do check-in, sou informado que o preço não incluía pequeno-almoço. Bem… só me faltava mais esta. Mas estava cansado demais para regatear e depois de deixar a bicicleta na garagem do hotel, subi ao quatro, resignado e entristecido porque as minhas primeiras horas em Marrocos, tinham sido um misto de deslumbramento e desilusão. Subi ao quarto, e da varanda olhei a enorme avenida, vizinha da praia da Tânger e não deixei de admirar toda a azáfama que por ali se vivia como se fosse dia. Adormeci, cansado, não sem antes vigiar por baixo da cama e inspeccionar muito bem a casa de banho.