Num evento organizado pela Missão de Portugal junto às Nações Unidas para assinalar os 50 anos da Revolução dos Cravos, António Guterres afirmou, num discurso sem guião e em inglês que não teria sido possível consolidar “a democracia se o povo não tivesse ido repetidamente e massivamente às ruas de Portugal para dizer que queria a democracia no nosso país”.
Perante centenas de pessoas, incluindo diplomatas de vários países, Guterres recordou vivências pessoais de quando Portugal era liderado pelo ditador António de Oliveira Salazar e partilhou memórias não só do dia da revolução, mas também do período conturbado que se seguiu.
O ex-primeiro-ministro disse saber o que é viver num país sob regime ditatorial, em que se podia ser preso ou torturado por ter uma opinião diferente da do Governo, em que os jornais eram alvo de censura e qualquer forma de associação era proibida.
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“Mas o regime ruiu, não só porque estava podre, mas também porque o povo se juntou às Forças Armadas na criação das condições para a revolução”, frisou.
“E essa importância das pessoas não ficou limitada ao 25 de Abril de 1974 (…). Demorou dois anos para consolidar a democracia portuguesa”, acrescentou, recordando as mobilizações e manifestações pós-revolução.
Além das vivências desse período em Portugal, Guterres ligou ainda o 25 de Abril aos movimentos de libertação africanos que levaram à descolonização.
A partir do mote “Portugal 3D: Democracia, Descolonização, Desenvolvimento”, o evento discutiu “O impacto da Revolução dos Cravos no mundo”, com a participação dos embaixadores de Moçambique, Brasil, Espanha e Timor-Leste.
A representante permanente de Portugal junto à ONU, Ana Paula Zacarias, defendeu a necessidade de se lutar pela democracia “todos os dias”.
“A democracia nunca está garantida. Temos de lutar por ela todos os dias”, declarou a diplomata na câmara do Conselho Económico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), especialmente decorada com centenas de cravos vermelhos.
Em declarações à Lusa durante o evento, Ana Paula Zacarias considerou “muitíssimo importante” a mensagem transmitida por Guterres, assim como a partilha da experiência pessoal.
“O secretário-geral reforçou a ideia de que a democracia é vontade popular, num momento em que o mundo atravessa situações dramáticas de autoritarismo e de até regressão em alguns aspetos”, observou a diplomata.
“É o povo quem tem a condução do que deve ser a política, as escolhas políticas em democracia. E isso foi uma mensagem muito clara que o secretário-geral passou: que podemos atravessar tempos difíceis, podemos passar circunstâncias complicadas, mas o povo é sabedor e sabe encontrar os caminhos”, acrescentou a embaixadora.
Entre as centenas de pessoas na plateia estavam, além dos funcionários portugueses nas Nações Unidas, representantes permanentes nas Nações Unidas de países como Angola, Cabo Verde, Ucrânia e Marrocos.
A celebração teve ainda dois momentos musicais: um concerto de guitarra portuguesa de Marta Pereira da Costa, e uma interpretação da “Grândola, Vila Morena” da jovem artista portuguesa Júlia Machado.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou esta quarta-feira o Movimento das Forças Armadas (MFA), a título póstumo, com o grau de membro honorário da Ordem da Liberdade.
As insígnias foram atribuídas ao coronel Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril, durante um jantar comemorativo do 25 de Abril com cerca de mil pessoas, que aconteeu na Estufa Fria , em Lisboa, com a presença também do primeiro-ministro, Luís Montenegro.
O MFA conduziu a revolução de 25 de Abril de 1974 que pôs fim a mais de 48 anos de ditadura do Estado Novo, marcando o início do período democrático em Portugal.
Nas vésperas do golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubaria a ditadura do Estado Novo, José Afonso não ia dormir a casa, em Setúbal. Pode dizer-se que estava escondido em Lisboa, pernoitando em casas de amigos. Procurava, assim, despistar a PIDE, que, como de costume, andava de olho nele. Por aquela altura, a polícia política do regime desencadeava sempre uma vaga de detenções de opositores, para evitar as manifestações do 1.º de Maio. E Zeca receava ser novamente preso, como sucedera no ano anterior, quando passou 21 dias em isolamento na cadeia de Caxias, entre maio e junho, submetido a sucessivos interrogatórios por inspetores da PIDE.
Enquanto isto acontecia, José Jorge Letria, jornalista no diário República, mas também cantor de protesto, era envolvido no segredo do levantamento militar pelo seu camarada de redação Álvaro Guerra, elemento da componente civil que ajudava o Movimento das Forças Armadas na preparação do golpe. José Jorge Letria soube, então, que Grândola, Vila Morena, de José Afonso, seria a “canção-senha do movimento libertador”, a ir para o ar à meia-noite e 20 de 25 de Abril, no programa Limite (de que era colaborador Carlos Albino, outro implicado jornalista do República), na Rádio Renascença. No dia 24, lia-se naquele diário o seguinte: “A qualidade dos apontamentos transmitidos e o rigor da seleção musical fazem de Limite um tempo radiofónico de audição obrigatória.”
José Jorge Letria conta agora, à VISÃO, que sentiu “um desejo e uma urgência grande” em dar a esperançosa notícia a Zeca, amigo do peito e companheiro de luta e de canções contra a ditadura. “Mas não podia fazê-lo, por regras conspirativas”, diz o também poeta, escritor e, hoje, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores. “Não estava autorizado, nem por quem me tinha passado a informação nem pelos militares, a partilhá-la.”
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José Jorge Letria sentiu “um desejo e uma urgência grande” em dar a esperançosa notícia a Zeca. Mas, diz agora, “não estava autorizado, nem por quem me tinha passado a informação nem pelos militares, a partilhá-la”
“Tive pena”, acrescenta. Era dono da “informação segura e certa” de que Grândola, “que tínhamos cantado juntos tantas vezes”, seria a senha para o arranque do golpe contra a ditadura, e nada podia dizer a Zeca. Estava em curso “um ato conspirativo”, que tinha de ser “preservado e protegido com o silêncio”, lembra.
No final do dia 26, José Jorge Letria telefonou a um “eufórico” José Afonso – que só no dia 25 soube que a sua Grândola tinha sido a canção-senha da que já era a Revolução dos Cravos. “Falámos ao telefone com calma”, diz. “Contei-lhe uma história minuciosa e detalhada do que se tinha passado e do que eu tinha vivido.” E Zeca mostrou algum desagrado? “Nenhum”, responde. “Ele sabia perfeitamente que não lhe podia dizer.”
Mas a recordação mais forte que José Jorge Letria guarda daquela conversa, em que Zeca até deu a ideia de mal ter ouvido as desculpas e justificações do amigo, é a de uma pergunta insistente do autor de Venham Mais Cinco: “Pragmático e objetivo, quis logo saber como nos íamos organizar para o nosso trabalho revolucionário.”
A união, porém, durou pouco. Logo em maio de 1974, os cantores de extrema-esquerda (como José Mário Branco) e os “revisionistas” do PCP (como José Jorge Letria) cindiram-se sem contemplações. Zeca, esse, manter-se-ia equidistante de uns e de outros: “Sou o meu próprio Comité Central”, dizia.
“Houve um afastamento ideológico entre nós, mas nunca um afastamento pessoal”, diz José Jorge Letria sobre a sua relação com Zeca no pós-25 de Abril. “Continuámos sempre a darmo-nos muito bem, a sermos amigos e a partilharmos muitas coisas que eram essenciais para nós. Nunca houve zanga pessoal no meio disto. Houve só uma clarificação ideológica.”
Esmeraldo Sousa Angola, 1973-75 ‘‘Fomos obrigados a matar para não morrer’’
Esmeraldo Sousa até gostaria de ter ficado em Angola, mas não foi possível depois da independência. “Ver os colegas que morreram, isso não se pode esquecer. A primeira pessoa que vi morta em combate foi um indivíduo sem cabeça. O grupo caiu numa emboscada, esse rapaz era condutor e uma bazuca atingiu o carro. Durante 15 dias quase não comi.”
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Luís Ponte Lira Guiné-Bissau, 1973-74 Enterrado no dia da Revolução
Maria Lourdes Fernandes na campa do irmão, na Madeira, enterrado no dia 25 de Abril de 1974. Na lápide, lê-se: “Não importa se estás perto ou longe. O que importa é que exististe…” Luís tinha 21 anos. “Veio um telegrama, a minha irmã recebeu-o e eu estava na fazenda, apanhando couves, e ouvi uns gritos. Vim para casa a correr.”
Manuel Freitas Angola, 1973-75 ‘‘A dormir um metro abaixo da terra’’
“Estive dois meses a dormir um metro abaixo da terra, em valetas. Depois de ter sido ferido, apanhei um medo enorme.” Manuel Freitas diz que as memórias ficaram gravadas no cérebro e no coração. Ainda tem uma fotografia de um colega que morreu em combate, na esperança de, um dia, poder entregá-la à família.
Alberto Freitas Moreira Guiné-Bissau, 1970-71 ‘‘Vê-los a sangrar…’’
Alberto guarda as suas terríveis memórias. “A morte dos meus colegas ao pé de mim… cinco rapazes do meu pelotão morreram. Isso foi o que marcou mais, e nunca mais esqueci, nem esqueço. Vê-los a sangrar, sem pernas, sem parte da cabeça… ouvi-los a gritar… Durante um ataque ao quartel, debaixo de fogo, fiquei surdo. Fui para o hospital e, felizmente, recuperei.”
Leonardo Pereira Angola, 1970-74 Uma história muito pessoal
Leonardo Pereira (1951-2016), pai da fotógrafa, serviu na Força Aérea Portuguesa como especialista e mecânico de aeronaves. Cumpriu seis anos de serviço militar e regressou depois do 25 de Abril de 1974. Aqui, vemos António Jorge Pereira com a foto do seu falecido pai. “A única história que me lembro de ouvir foi de ter aterrado um avião com bombas a bordo e sem trem de aterragem”, conta o filho.
Rui Pereira Angola, 1974-75 ‘‘Não há dia em que não me lembre do cheiro dos mortos”
“Tínhamos já tantos mortos que os púnhamos numa das casernas à espera das urnas para mandar para Portugal. Para ir ao bar, tínhamos de passar por lá, e o cheiro… Não há dia que passe em que não me lembre do cheiro dos mortos”, diz Rui Pereira.
Issufo Sulemane Amade Moçambique, 1968-71 ‘‘A ferida novamente aberta’’
Issufo, aqui fotografado em Lisboa, serviu no Exército, em Moçambique. “Uma das coisas que nos prejudicam bastante são estas guerras que a gente vê [hoje em dia]. Não é nada saudável e mal de quem olha para aquilo todos os dias… Se já era uma cicatriz, então a ferida fica novamente aberta, e estamos a reviver tudo o que passámos lá.”
Arlindo Rodrigues Angola, 1971-73 ‘‘Tenho raiva pela forma como escravizavam os pretos”
“Do que eu me lembro que tenho mais raiva é de dormirmos no chão, dentro das fazendas, para fazermos proteção ao café, e ver os brancos a escravizar os pretos. Senti-me tão mal e tão triste.”
João Romão Guiné-Bissau, 1970-71 ‘‘Sentia muito medo’’
“Ensinaram-nos a disparar uma arma e pouco mais. No início, sentia muito medo cada vez que saíamos do quartel para o mato”, conta João Romão, natural da ilha da Madeira. “Chegámos à Madeira a 31 de dezembro de 1971, de noite. O barco parou ao largo e vimos o fogo de artifício a bordo, antes de atracar.”
José Alexandre Miranda Angola, 1975 ‘‘Fazíamos a preparação dos corpos’’
“Nós é que fazíamos a preparação dos corpos para trazer para cá. Isso é que foi doloroso… A morte dos meus camaradas ainda está na memória”, diz José Alexandre, que apanhou malária. “Todas as semanas tomávamos uma série de comprimidos. Nem sabíamos o que era o quê.”
Mário Alberto Neves Moçambique, 1971-74 ‘‘Havia maldade autêntica’’
“Não falo muito sobre a guerra, se for para relembrar… chacinas que faziam nos aldeamentos, com crianças e com as mulheres… coisas impressionantes, só visto mesmo, maldade autêntica”, conta Mário, que viu morrer o furriel da sua companhia, um metro à sua frente, pelo rebentamento de uma mina. “Fiquei com os estilhaços dos ossos da perna dele no peito… Quando regressei ao quartel, disseram-me que ele estava para se ir embora, que ia casar daí a um mês.”
José Alberto Gonçalves Moçambique, 1972-74 ‘‘Sentimo-nos usados pelo poder político’’
“A solidariedade que sentimos é transversal a todas as companhias, apesar de nos sentirmos usados, ‘carne para canhão’, como se dizia, sobretudo pela política, pelo capitalismo da altura… Quem passou por isto tem uma mentalidade diferente, dá outro sentido à sua vivência. Como é que, em dois anos que passámos juntos, se consegue manter uma amizade assim 40 ou 50 anos depois?”
António Francisco Simões Angola, 1968-70 / Moçambique, 1971-73 ‘‘Fazia de pai, mãe e psicólogo’’
“Eu fazia de pai, mãe e psicólogo… Era trabalho de missionário, ia para as senzalas dar catequese”, conta o coronel capelão António Francisco Simões. “À Igreja interessava acompanhar os militares para lhes dar a fé e resolver problemas espirituais, fazer os funerais, celebrar missa, etc. Ao Estado interessava ter capelães para ajudar na moral, nas virtudes, dar coragem.”
João Novais Moliúa nasceu em Moçambique, enquanto colónia portuguesa. Foi obrigado, como muitos, a lutar por Portugal.
Fernando Garcês Angola, 1973-75 ‘‘Diziam que íamos regressar logo, mas, afinal, foi pior o que ainda aconteceu”
“Do 25 de Abril de 1974 só soubemos dois dias depois. Nesse dia, já tomámos uns copos a mais, pois eles diziam que íamos regressar logo [a Portugal], mas, afinal, foi pior o que ainda aconteceu. Só num ataque ao quartel tivemos quatro mortos e 13 feridos.”
Sebastião de Freitas Guiné-Bissau, 1973-74 ‘‘Ainda tenho problemas de saúde’’
“Ainda me ando a tratar de problemas de saúde devido a um ferimento na guerra”, conta-nos Sebastião, que serviu no Exército. “Quando me levaram, não era maior de idade e nem tinha bilhete de identidade… Na zona onde estávamos, havia [ataques] todos os dias.”
João Vieira Moçambique, 1971-74 “Acordávamos durante a noite a gritar ‘Mãe!’’’
“Tenho memórias de solidão, de não estar perto da família. Os camaradas da tropa foram uma família que nós arranjámos, e até hoje mantemos laços muito grandes.” João Vieira lembra-se de que acordavam durante a noite a gritar “Mãe!”. Ficou surdo de um ouvido e diz que, 50 anos depois, ainda não teve uma noite de sono descansada.
Francisco Assis Teixeira Angola, 1963-65 ‘‘Nas horas vagas, fazia os caixões de tábuas’’
Maria Augusta de Freitas Andrade, viúva de Francisco Assis Teixeira (1941-1998), posa com a foto do seu marido e a mala que viajou com ele até Angola. “Contava que, nas horas vagas, fazia os caixões de tábuas para os colegas que morriam. E dizia que o que lhe valia eram as cartas da família ou das madrinhas de guerra, que lhe traziam consolo.”
Fernando Gaspar Pereira Guiné-Bissau, 1973-74 ‘‘O meu destacamentofoi sequestrado’’
“Após o 25 de Abril de 1974, fui destacado para Bambadinca, para receber material militar, viaturas, armas, etc. Em agosto, o meu destacamento foi surpreendido com a presença de dezenas de militares dos denominados Comandos Africanos (tropas nossas aliadas). Primeiro, pensámos que vinham entregar as armas, mas não!… Fomos encostados à parede, e deram um prazo de 48 horas para ser paga a indemnização a que tinham direito, ou então seríamos fuzilados. Cerca de 40 horas após o sequestro, o brigadeiro Carlos Fabião chegou num helicóptero com duas malas carregadas de dinheiro!”
António Amaro da Silva Campanário Angola, 1973-75 ‘‘Aquela terra não era nossa!’’
“Cheguei aqui [Madeira] a 19 de maio. Depois, no Dia de São João e, ao meio-dia, puseram fogo [de artifício]… assim que ouvi o barulho, fui para debaixo da cama a pensar que ainda estava na guerra”, conta António Campanário, que jurou nunca mais voltar a Angola: “O meu espírito pode ir lá bater, mas o meu corpo não volta lá. Aquela terra já tinha dono, não era nossa!”
Arlindo Spínola Pereira Guiné-Bissau 1971-72 ‘‘Um cantil de água por dia com temperaturas de 45 graus”
“Quando saíamos do quartel era: ‘Fé em Deus não sei se volto’. Uma ração de combate por dia, um cantil de água por dia. Isto com temperaturas de 45 graus! Cheguei a afastar, desculpe o termo, merda dos animais do mato para beber água!” Arlindo Spínola Pereira disse-nos que reviver estas memórias lhe ia custar algumas noites de sono, mas quis mesmo assim partilhar a sua história.
José Joaquim Freitas Angola, 1975 ‘‘Estive preso e fui polícia’’
José Joaquim conta-nos a sua curiosa história. “Eu era corneteiro de especialidade. Também fui sacristão, estive preso e fui polícia. Fui detido por causa de um ‘levantamento de rancho’ (recusámos comer a comida da cantina). Estive nove dias preso e passei para guarda ao décimo dia. Depois de sair da cela, passei a levar o comer aos meus colegas [que continuavam presos].”
“Vocês têm muita sorte, porque estão aqui, 50 anos depois, num sítio que foi um dos lugares centrais da Revolução.” Marcelo Rebelo de Sousa deu assim as boas-vindas aos alunos vindos de vários pontos do País, a quem falou sobre o valor da liberdade e recordou como era a vida antes do 25 de Abril.
Esta não foi uma “aula” normal. Na plateia estiveram três centenas de jovens oriundos de vários pontos do País. E traziam o trabalho de casa feito, com perguntas dirigidas aos três convidados. Nesta tarde, recordou-se o dia em que a Liberdade chegou ao nosso país pela ótica de duas figuras incontornáveis: Vasco Lourenço, um dos capitães de abril, e Alfredo Cunha, um dos fotógrafos que captou alguns dos momentos mais importantes da Revolução.
Marcelo Rebelo de Sousa falou sobre o Portugal de Salazar, das vitórias da democracia e sublinhou o papel dos jovens nas revoluções, devido ao seu “dinamismo, imaginação e capacidade de mudar”. Quando lhe perguntaram a opinião sobre o estado atual da Democracia [referindo-se à ascensão de partidos de extrema-direita], deixou um apelo: “São vocês, e as próximas gerações, quem vai ter o papel fundamental de dizer que é preciso mudar isto.”
“Este é o país que tu sonhaste?”, perguntou Laura, 9 anos, a Marcelo
Marcelo recordou ainda que, após o 25 de Abril, foram pessoas jovens com 20 e 30 anos que assumiram os lugares de destaque na sociedade e lamentou que isso não se verifique atualmente. “Não basta ouvir os jovens, vocês têm de ter um papel de destaque.” Questionado por Laura, 9 anos, se é este o país que tinha então sonhado, o Presidente da República respondeu que “ainda não.”
“Está nas vossas mãos manter a liberdade”
General Vasco Lourenço
“A primeira coisa que vos peço é que perguntem aos vossos avós como era Portugal antes do 25 de Abril.” Para o General Vasco Lourenço, é fácil perceber as razões porque, com os seus camaradas do Movimento das Forças Armadas, montou a operação que resultou no golpe de Estado.
“Percebemos que tínhamos de acabar com uma sociedade repressiva onde a liberdade não existia. Também percebemos que, nas Colónias, se praticava uma exploração que não era aceitável e que quem estava com a razão era quem lutava contra nós [na Guerra Colonial].”
Meio século passado, mas com a memória bem viva daquele período, Vasco Lourenço garantiu sentir-se honrado por terem sido “os protagonistas de um episódio único da História universal.” E lamentou apenas não ter estado em Lisboa no dia da revolução. “É um dos maiores desgostos da minha vida, estava em Ponta Delgada, nos Açores.”
Os alunos puderam fazer perguntas aos três intervenientes
“Recebi um telegrama do Otelo, em código, em que dizia a hora e o dia em que se daria o golpe. Era de madrugada, e liguei o rádio para perceber o que se passava e quando ouvi que o posto tinha sido tomado pelo MFA comecei a gritar Ganhámos! Ganhámos! e a saltar como um maluquinho.”
Mas se, durante meio século, vivemos em plena democracia, Vasco Lourenço não desvaloriza o destaque que partidos “neo-fascistas” estão a ter na sociedade portuguesa. Para travar essa tendência, deixou ao jovens um aviso: “Está nas vossas mãos manter a liberdade e a democracia. Perguntem a vós próprios se conseguiriam viver sem liberdade e ajam em conformidade.”
“Tive a felicidade de fotografar o meu sonho”
O fotógrafo Alfredo Cunha comentou algumas das fotografias que tirou naquela quinta-feira 25 de abril, como esta que, para si, representa a “Revolução do Povo”
Alfredo Cunha tinha 20 anos e, na altura da Revolução, era repórter fotográfico no jornal O Século. São da sua autoria muitas das fotografias mais famosas do 25 de Abril e, para este dia no Quartel do Carmo, o fotógrafo escolheu umas quantas que projetou e comentou, uma a uma, levando os mais novos numa espécie de passeio guiado pela Revolução.
Da primeira, quando encontrou meia dúzia de militares armados, ainda manhã cedo no Cais do Sodré – encontro que o levou a crer que algo muito importante estava a acontecer -, até ao famoso retrato de Salgueiro Maia, passando por imagens menos conhecidas que, explica, “estiveram guardadas e esquecidas durante mais de 20 anos.”
O fotógrafo recordou ainda o episódio em que conheceu Salgueiro Maia, figura que muito admira, e mostrou a fotografia desse preciso momento. Estavam no Terreiro do Paço, contou, e o capitão, ao vê-lo escondido, deu-lhe um “raspanete” por estar a fotografar. Pediu-lhe a identificação, perguntou-lhe se era a favor ou contra o golpe e, percebendo que nada havia a recear, disse-lhe então para fotografar às claras. Foi o que fez. “Tive a felicidade de fotografar o meu sonho”, confessou Alfredo Cunha aos alunos.
A Minha Liberdade é de Todos
Neste evento, estiveram também presentes o ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, e a ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes. A tarde terminou com a revelação de um mural digital, resultado da campanha “A Minha Liberdade é de Todos” que, desde março, conta já com a participação de mais de 11 mil jovens de todo o País.
A campanha, desenvolvida pela Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril em parceria com a plataforma Gerador, desafia os jovens a entrar no site da campanha e, usando um simbólico lápis azul, transpor para um quadrado do tamanho de um azulejo tradicional português a sua interpretação de Liberdade.
Faltavam poucos minutos para as 10 da noite de 24 de abril de 1974 quando Otelo Saraiva de Carvalho, um major de 37 anos, chegou ao quartel do Regimento de Engenharia 1, na Pontinha. Ali iria funcionar o Posto de Comando da operação que nessa noite deveria acabar com o regime. Não fosse o seu temperamento impetuoso e teria todas as razões para ir apreensivo. Nunca tinha, obviamente, comandado uma missão com a dimensão da que ia seguir-se. E, se é verdade que o plano de operações saira da sua mão, dificimente poderia considerar-se um plano muito amadurecido: só o ultimara há dez dias.
Entrou à civil. Vinha direto do Jornal do Comércio, no Camões, onde procurara o capitão António Ramos, ajudante de campo de Spínola, a quem fizera chegar um recado:«A operação vai começar agora.
Está aqui o plano de operações que mandei distribuir. Entrega-o ao general.» A Pontinha tinha-lhe sido sugerida por um oficial de lá, Ferreira de Macedo, e por Fisher Lopes Pires, que fora o segundo-comandante. As vantagens eram várias: tratava-se de uma unidade periférica e, sobretudo, podiam contar que o comandante, Lopes da Conceição, embora não fosse do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas, não oporia resistência. Assim, ao final da tarde, depois da saída do pessoal, Ferreira de Macedo pôde fazer o black out, o que aqui significa ter tapado as janelas com cobertores. E Garcia dos Santos montara o sistema de comunicações.
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Otelo foi a uma sala fardar-se antes de entrar no Posto de Comando, onde, essa noite, teria consigo Garcia dos Santos, Fisher Lopes Pires, Hugo dos Santos, Sanches Osório e Vítor Crespo. E tinha à sua espera a primeira má notícia: a Amadora, afinal, não aderira, ou «borregara», para usar a gíria militar. Logo aquela unidade, que iria a Caxias libertar os presos políticos.
«Receávamos que o regime exercesse alguma represália sobre os presos», conta Otelo. Nessa noite só «borregou» à última hora outra unidade, da região de Castelo Branco. Mas o seu desapontamento maior foi com os comandos, liderados por Jaime Neves. Dos dez grupos que estavam previstos, conta, «só dois cumpriram as missões» o que ocupou o Rádio Clube Português e o que prendeu Rafael Saraiva, do Regimento de Cavalaria 7, na Ajuda. Esta unidade constituía o maior receio de Otelo: «Era a mais poderosa em meios. Tínhamos de prender cinco oficiais superiores ou era previsível um confronto.» Deviam ser detidos de madrugada, à saída de casa para a unidade. Otelo até lhes destinara uma sala na Pontinha, onde ficariam sob prisão. Mas dos cinco, só Rafael Saraiva apareceu, entregue por um grupo de comandos.
«Quanto ao resto, tudo correu mais ou menos como eu esperava», reconhece hoje Otelo. Em linhas muito gerais, imaginara o seu plano assim: os quartéis-generais de Lisboa e Porto eram os objetivos prioritários; seguiam-se os órgãos de comunicação social (Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Renascença e RTP), a ocupação do Aeroporto da Portela e o encerramento das fronteiras: «Era preciso evitar quer a entrada de forças pedidas a Franco quer a saída do peixe graúdo.» Outro pressuposto era garantir que a Força Aérea, pelo menos, não interviria.
A operação teria de ser desencadeada durante a noite, não só porque as estradas estariam sem trânsito, mas também porque os aviões não poderiam voar: «Sabíamos lá se nos aparecia alguma força de paraquedistas enviada de Espanha!» Assim, o arranque das tropas das unidades foi marcado para as 3 da manhã.
Otelo certificou-se pessoalmente de que a potência dos Emissores Associados de Lisboa chegava a Santarém. Salgueiro Maia, que comandaria a coluna da Escola Prática de Cavalaria (EPC), saída daquela cidade, pôde assim captar a primeira senha do Movimento. Eram 22 e 55 quando ouviu Paulo de Carvalho em E depois do Adeus. Tinha de começar imediatamente a reunir homens e viaturas para que, às 3 horas, pudessem arrancar. Corresse tudo bem e, às 5, estariam no Terreiro do Paço.
À procura de ‘uma isca’
O plano de operações só fora ultimado por Otelo a 15 de abril, num apartamento em Oeiras. Mas por essa altura já ele tinha adquirido uma experiência que lhe permitira tirar conclusões. Talvez a mais importante fosse a de que, naquela noite, ali na Pontinha, se jogava o tudo ou nada: o Movimento não sobreviveria a um segundo abanão ao Governo, depois do fracassado golpe de 16 de março uma ação precipitada, para tentar evitar a exoneração dos dois principais responsáveis das Forças Armadas, os generais Costa Gomes e António de Spínola.
A causa mais direta fora um livro, Portugal e o Futuro, publicado por Spínola em 22 de fevereiro de 1974, onde o vice—chefe de Estado Maior das Forças Armadas punha em causa a política colonial do Governo, defendendo que a solução para a guerra não era militar. Outra afronta: o número um das FA, Costa Gomes, dera-lhe luz verde, com «um despacho elogioso».
E, no entanto, o livro estivera para não sair. Uma noite, parara Otelo no semáforo de um cruzamento próximo da Avenidade da Liberdade, em Lisboa, quando viu um vulto no carro ao lado baixar o vidro e dirigir-se a ele: era Spínola. Cumprimentou-o e perguntou-lhe pelo tal livro que, ao que constava, o general andaria a preparar.
25 de Abril de 1974
«O Marcelo não me deixa publicar. Diz que se demite.» Otelo responde que ainda bem. «É isso mesmo que nós pretendemos.
E nem acredito que Américo Tomás aceitasse a demissão.» Sugere a Spínola que avance, pois pode contar com o apoio do Movimento. Recebe de volta uma frase grandiloquente: «Não serei um general que colabore em qualquer ação que leve ao derrube deste Governo.» Enfim, não contassem com ele como conspirador.
E o semáforo ficou verde.
Publicado o livro, Marcelo terá ido, de facto, apresentar a demissão a Tomás, que a recusou. E o regime engendrou uma resposta rápida: convocou para a Assembleia Nacional uma cerimónia, com todas as chefias militares, para apoio à política do Governo em África. A iniciativa, que ficaria conhecida pela Brigada do Reumático, foi marcada para 14 de março. O ajudante de campo de Spínola, António Ramos, procurou então Otelo, a dizer que era preciso evitar a todo o custo a cerimónia, porque se destinava à exoneração de Costa Gomes e de Spínola que, obviamente, não iam comparecer. E trazia-lhe uma proposta: «Vocês podiam vestir a farda número 1 com as condecorações e irem para o pé da Assembleia Nacional protestar.» Otelo achava um absurdo:«Isso significaria o fim do Movimento, pois seríamos todos presos. E o Movimento não morre se eles forem exonerados.» Otelo contou então a conversa a Casanova Ferreira, acabado de chegar da Guiné, que concordava que era preciso tentar tudo para evitar a exoneração. As propostas iam de absurdo em absurdo. Alguém propunha que se lançasse uma bomba de 250 quilos em cima da Assembleia Nacional. O futuro estratego do 25 de Abril dispôs-se então a ir às Escolas Práticas, auscultar as sensibilidades para uma ação súbita. Concluiu que «os jovens militares estavam entusiasmadíssimos ». Mas começou também a encontrar resistências. Por exemplo, Santarém achava a operação sem consistência e não alinharia. Por volta das 18 horas de dia 13, Otelo desconvocou o golpe. A 14 de março a Brigada do Reumático cumpriu o ritual e, no dia seguinte, Costa Gomes e Spínola eram exonerados.
Assim, na madrugada de 16 de março, a unidade das Caldas da Rainha, por sua decisão, saia sozinha para rua. Ainda esteve para ser secundada por Lamego, que desistiu. Otelo procurou então Vítor Alves: do triunvirato que o Movimento elegera em Óbidos, como direção permanente da Comissão Coordenadora, só restavam eles os dois. O terceiro elemento, Vasco Lourenço, fora transferido para os Açores.
Era uma baixa que Otelo tentara evitar, sugerindo que o sequestrassem. Lourenço seria colocado 24 horas num apartamento vazio em Miraflores, alimentado por umas sanduíches que Otelo e Diniz de Almeida lhe levavam. No dia seguinte Lourenço achou que bastava daquele «sequestro estapafúrdio» e preferiu apresentar-se.
Perante o previsível fracasso da operação de 16 de março, Otelo avisava Vítor Alves: «Isto vai dar buraco e vou ser preso. Ficas tu sozinho na direção, mas isto tem de continuar.» Vítor Alves pedia-lhe: «Não te metas nisto.» A resposta de Otelo não podia ser mais sincera: «Mas já meti.» Milagrosamente, escaparia por cinco minutos de ser preso à porta de Manuel Monge, onde a PIDE tinha ido fazer uma busca. No dia seguinte, Otelo apresentava-se na sua unidade, como se nada se tivesse passado.
E a sua calma foi tomada por inocência.
No dia 24 de março Otelo convocou para uma casa de Oeiras a Comissão Executiva. Fez o mea culpa pela precipitação do 16 de Março e avaliou os estragos: tinham sido presos 200 militares, mas capitães próximos deles muito poucos. Agora sim, havia que agir rápido, ou «o Movimento morreria na praia».
No último grande plenário que tinham feito, a 5 de março, em Cascais, fora decidido avançar para um golpe que derrubasse o regime. Mas não havia data marcada.
Era apenas algo que eles estavam determinados a fazer. Por isso o 16 de Março os apanhara desprevenidos, ainda sem qualquer plano de operações: «Não tínhamos nada», confessa Otelo.
Em Oeiras, então, Otelo decidiu que teriam de avançar no máximo até à última semana de abril. Nessa altura andaria a PIDE entretida, a prender os suspeitos do costume, militantes do PCP, do MDP e da extrema-esquerda, para evitar as manifs do 1.° de Maio. «Depois, iriam começar os interrogatórios dos militares presos no 16 de Março «e poderia alguém dar com a língua nos dentes».
Salgueiro Maia e Maia Lourenço no Terreiro do Paço. Foto: Eduardo Gageiro
Otelo ofereceu-se para fazer um plano que, desta vez, fosse mesmo para valer: «Agarro na choca do Estado-Maior do Exército e distribuo as missões.» Por «choca » deve aqui entender-se o formulário que tem de ser preenchido antes de qualquer operação militar, indicando quais as forças amigas e inimigas, qual a situação que irá encontrar-se e qual o tipo de operação a que se destina. Neste último item, não havia dúvidas: o objetivo era derrubar o regime.
Mas, se no 16 de Março ele só tinha «umas ideias» sobre o que fazer, aprendera naquele dia uma lição: o plano de Humberto Delgado, que levaria ao golpe de Beja de 1961, de que bastaria uma unidade sublevar-se e as restantes adeririam, estava errado. Também a saída isolada das Caldas da Rainha fora um fracasso.
Em contrapartida, desenvolveu ele outra teoria: «uma isca» sim, isso era preciso.
Teria de sair uma unidade, que chamasse sobre si todas as atenções do regime.
E o Governo pensaria que era outra ação isolada, a ver se desta vez corria melhor.
A partir daí as outras unidadas do País podiam movimentar-se à vontade.
Cedo Otelo se convenceu de que não haveria melhor «isca» do que a Escola Prática de Cavalairia (EPC), de Santarém: «Era a mais espetacular.» Com toda a sua parafernália de carros de combate, atrairia facilmente as atenções do regime. Não se desviou desta ideia.
O major chamou então a sua casa Salgueiro Maia. Mas o capitão da EPC queria resposta a duas perguntas antes do sim.
«Temos algum programa sobre o que fazer seguir? A essa, a resposta era fácil. Melo Antunes, que se dispusera a ser candidato da oposição nas eleições de 1969, tinha levado à reunião de Cascais um programa já bastante desenvolvido a que chamou O Movimento, as Forças Armadas e a Nação.
Entretanto seguira para os Açores, mas deixara-o a Vítor Alves. Já a segunda questão de Maia era de resposta mais complicada. «Temos generais?» «Menti-lhe piedosamente», confessa Otelo. Nem Costa Gomes nem Spínola se envolveram propriamente no golpe.
Depois da anuência de Maia, Otelo explicaria a missão: «Trazes carros de combate, chaimites, tudo o que puderes.» Por volta das 5, deveria estar em posição no Terreiro do Paço, onde prenderia algum membro do Governo que lá pudesse estar.
O capitão de Santarém mostrava-se um pouco dececionado: «Então e só faço isso?» Não sabia então que iria escapar por pouco de ser morto.
Outra medida drástica de Otelo era colocar a Escola Prática de Artilharia (EPA), de Vendas Novas, ao lado do Cristo Rei, com seis obuses apontados para Monsanto, onde o Governo se refugiara no 16 de Março. «Se fossem para lá outra vez e recusassem render-se, devia ser intimidação suficiente». Mas as comunicações intercetadas cedo lhes permitiram perceber que, afinal, Marcelo se refugiara desta vez no Quartel da GNR do Carmo.
À meia-noite e 20, a Rádio Renascença, que chegava a todo o País, transmitiu a segunda senha, Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso. E, com exceção da tal unidade que «borregara» em Castelo Branco, as restantes previstas no Norte, Centro e Sul, começaram a preparar-se: o golpe estava em marcha. Otelo ainda apanhou alguns sustos – como o da fragata Gago Coutinho, comandada por Seixas Louçã, que ia a descer o Tejo a caminho do Mediterrâneo, para uma missão da NATO, ser mandada regressar e posicionar-se em frente ao Terreiro de Paço. E sobretudo pôde confirmar os seus receios sobre a unidade da Ajuda.
Era já dia quando ele levantou um dos cobertores que cobriam as janelas e viu um avião civil, um Super Constellation, dirigir-se para o aeroporto da Portela e, depois, afastar-se outra vez. A ocupação do aeroporto estava a funcionar. Aos poucos e poucos as peças do seu puzzle iam-se encaixando como ele previra.
Aquele abraço
Pouco passava das 4 e 30 da tarde, quando Otelo recebeu um telefonema de Spínola, ainda em casa, a comunicar-lhe que Marcelo o chamara ao Largo do Carmo para lhe passar o poder. Por isso, o general queria saber se o Movimento concordava com isso ou se queria mandar algum dos seus representantes com ele. «Meu general, considere-se mandatado pelo Movimento », respondeu Otelo. Ao mesmo termpo informava-o de que tanto o primeiro-ministro como outros governantes que lá se encontrassem deviam ser levados ali para a Pontinha.
Por volta das 8 noite, segundo recorda Otelo, Spínola irrompia pela sala do Posto de Comando, direito a Otelo, e dava-lhe um abraço. «Creio que foio o único abraço que demos na vida.» Mas o general era um homem que ele conhecia há muito, de relativamente perto e sobre quem tinha e tem até hoje sentimentos contraditórios.
Otelo, que nascera em Moçambique em 1936 e sonhara ser ator, acabou por seguir a carreira militar e ser colocado em Angola, logo em 1962. Aí conhecera um tenente–coronel de Cavalaria, que se oferecera para comandar um batalhão, António de Spínola, que começava a criar a sua própria lenda. Participava pessoalmente em operações, e era «dos primeiros homens na frente da coluna, despindo, por vezes, durante a marcha, o dólman camuflado, mas mantendo invariavelmente calçadas as luvas de pelica, o pingalim na mão e o monóculo encaixado no olho direito », escreveria mais tarde Otelo no livro Alvorada em Abril.
Ali, Otelo faz descrições de atos de Spínola até de alguma crueldade, mas ao mesmo tempo, admirando-o: «Como chefe, não como homem.» Viria a conhecê-lo bem mais de perto na Guiné. Ali trabalhou no Quartel-General, em Bissau, com várias funções, inclusive no acompanhamento de jornalistas estrangeiros. E Spínola era já nessa altura não só o comandante militar, com o governador: «Tinha defeitos gigantescos e, ao mesmo tempo, excelentes qualidades de comando.» Nos relatos de Otelo sobre os preparativos do 25 de Abril e as suas conversas com outros revoltosos, quando ele se refere ao «general» é habitualmente a Spínola.
O estratego da Revolução não se surpreende com o comentário: «Era muito popular entre quem tinha estado com ele na Guiné, especialmente entre os soldados.
Podia desautorizar um comandante de batalhão ou mesmo demiti-lo à frente dos subordinados, se estes se queixassem, nem que fosse da comida.» Os três anos que passou na Guiné custaram a Otelo uma tragédia pessoal – lá perderia uma filha, Cláudia, de 7 anos, atingida subitamente por paludismo cerebral.
Mas foi ainda em Bissau que começou a envolver-se na contestação ao decreto do Governo que só terminaria com o 25 de Abril.
Sobre a sua relação com Spínola, seria ainda o general que, já depois da Revolução, pretenderia promovê-lo a general de quatro estrelas para lhe entregar a chefia das Forças Armadas. Otelo responderia que nem pensar: «Eu era um jovem major de 37 anos. Seria um seu subordinado. Ficava comigo na mão.»
E depois do adeus
Otelo só saiu do quartel da Pontinha a meio do dia 26 de abril. Nessa altura, tudo estava consumado. A Junta de Salvação Nacional já aparecera na RTP, na noite anterior, a ler o seu comunicado.
E foi sem surpresa, diz, que viu Spínola como presidente da Junta, embora Costa Gomes tivese sido o nome mais votado quando o Movimento escolhera os generais que, após o golpe, queria ver como líderes: «Estou convencidíssimo de que foi Costa Gomes que assim quis. Sabia que o verdadeiro poder seria o que ele teria: o comando das Forças Armadas.» E também o Movimento das Forças Armadas já fora lendo, durante o dia, os seus comunicados. E entre a Junta e o MFA logo ali começaram duas linhas divergentes, que só não eram completamente paralelas porque iriam cruzar-se daí em diante várias vezes, mas para colidirem.
Otelo diz que foi por proposta do MFA que Spínola viria a entregar-lhe o comando do COPCON. Mas, se o ex-governador da Guiné iria encabeçar a ala mais à direita da Revolução, acabando por fugir do País após o golpe de 11 de março de 1975, Otelo por seu lado radicalizava cada vez mais à esquerda. Embora ele conte que iam parar ao seu organismo os casos mais díspares, desde ocupações de fábricas e casas ate à mulher do forcado Nuno Salvaçao Barreto a queixar-se de violência doméstica, geraram polémica algumas das prisões feitas pelo COPCON. Otelo seria, por sua vez, preso mais de um mês, depois do golpe da extrema-esquerda, em 25 de novembro, e passado compulsivamente à reserva.
Mas Otelo continuava a ser tão popular entre os setores derrotados no 25 de Novembro, que tentaria, em 1976, uma candidatura à Presidência da República, de onde sairia com mais de 16 por cento.
Mais tarde acabaria por se ver envolvido no processo político mais mediático do novo regime, o julgamento das FP-25, que lhe valeria, em 1984, um regresso à prisão, desta vez «por 1789 dias», uma conta que ele diz saber de cor, por ser a data da Revolução Francesa. Mas foram dias que viriam a revelar-se não propriamente uma perda de tempo na sua vida pessoal: em Caxias conheceria a sua segunda mulher, uma guarda prisional, de nome Filomena.
Antes do processo, ainda fora reintegrado nas Forças Armadas, por sugestão de um ex-companheiro daquela longa noite na Pontinha, Garcia dos Santos, que entretanto se tornara chefe do Estado-Maior do Exército, e aproveitando uma amnistia concedida pelo então Presidente, Ramalho Eanes. Acabaria a carreira como coronel, o posto de que, aliás, muitos dos Capitães de Abril nunca passaram. Mas, na imprensa internacional, manteve-se até hoje como a figura mais emblemática dos que derrubaram o regime.
Otelo só deixou o quartel da Pontinha a meio do dia 26 de abril. Saiu sozinho.
Diz que a essa hora não estava lá mais ninguém: até Marcelo já seguira rumo à Madeira. Fechou a porta e começou a descer as escadas. Iria provavelmente exausto. Nem sequer dormitara desde que ali entrara a «Revolução dos homens sem sono» ainda mal começara. Se se recorda do que sentiu nessa altura? Uma sensação difusa de missão cumprida, sim.
Afinal, tantos camaradas tinham confiado nele. Mas é um Otelo divertido, de uma sinceridade desarmante, quando conta o pormenor que melhor retém dessa sua saída da Pontinha. O homem que acabara de derrubar o regime olhou para o relógio e viu, satisfeito, que era 1 e 30: «Ainda vou a tempo de ir almoçar a casa. Finalmente, uma refeição de jeito!
Garcia dos Santos
A revolução em tempo real
Numa operação em tempo recorde, um pioneiro da guerra eletrónica garante no 25 de Abril a supremacia das informações face ao regime prestes a cair.
Amadeu Garcia dos Santos, à data com 38 anos e já tenente-coronel, montara de raiz o dispositivo de telecomunicações militares na Guiné-Bissau, fora destacado no comando de Transmissões em Angola e, entre as comissões em África, estudou na NATO, em Itália, Bélgica e Reino Unido. Em tudo o que pode decidir o golpe nesta área, é especialista em tudo.
É dele o anexo de transmissões da Ordem de Operações da revolução, entregue a Otelo Saraiva de Carvalho a 22 de abril, após noites sem dormir a bater à máquina e ficar «sem impressões digitais» e depois disso, esgotado, adormecer no Cinema São Jorge. São ele e a sua equipa que garantem a chegada do cabo telefónico militar ao Posto de Comando da Pontinha, a escassas horas da divulgação da primeira senha, aliando ao dispositivo a Escola Prática de Transmissões. Juntas, escutam em tempo real todas as unidades, amigas e inimigas.
Após a ocupação da sede da PIDE/DGS, Garcia dos Santos toma conhecimento de um documento com 28 nomes de militares a eliminar ou prender. «Um deles é o meu.» Antes do golpe, Barbieri Cardoso, número dois da polícia política e tio da sua mulher, já lhe perguntara se sabia de um movimento de capitães. «Eu não», respondeu o oficial, «já metido naquilo até ao pescoço».
H.B.
Luís Macedo
A ‘sombra’ de Otelo
Primeiro, disse que não. Pouco antes do «Golpe das Caldas», fora a uma reunião em que se afirmava que era preciso fazer alguma coisa mas, na sua opinião, uma operação daquelas não se preparava em 48 horas.
Dias depois, telefonaram-lhe, a insistir: «Os tipos das Caldas estão cercados, entrámos de prevenção.» Juntou-se-lhes de novo. Na reunião seguinte, decretou-se que o movimento ia passar à clandestinidade, por uma questão de segurança.
Ali se decidiu que só uma pessoa saberia quem eram os coordenadores da parte operacional – Otelo – e da parte política – Vítor Alves.
«Eu era assim uma espécie de reserva, se o Otelo fosse preso ou algo assim, alguém tinha de saber o que se estava a passar», conta.
Luís Macedo, então capitão de Engenharia, 26 anos, regressara um ano antes de uma comissão em Angola, onde o pai, general, comandava a Zona Militar Leste e era governador da província do Moxico. «No golpe do Chile, que tinha sido há pouco, o controlo dos meios de comunicação fora fundamental», recorda, sobre essa sua ideia de pôr as comunicações entre os primeiros objetivos a conquistar. Ao mesmo tempo, convencia Otelo a deixar de lado o Palácio de Belém e o Parlamento: «Se queres ter impacto, vamos para onde sempre tudo aconteceu, o Terreiro do Paço.» Antes disso, ainda montou o Posto de Comando no Regimento de Engenharia 1, na Pontinha. no dia 25, ainda foi para o centro da cidade, onde ajudou Salgueiro Maia a dividir os seus homens, e tomou a dianteira da coluna que seguiu para a Penha de França. Hoje, 40 anos depois, dirige uma empresa de engenharia em Moçambique.
T.C.
Sanches Osório
O guardador de memórias
A «fita do tempo». Sempre que há qualquer operação, um militar recebe a tarefa de registar os acontecimentos mais importantes, com indicação da respetiva hora. E no Posto de Comando da Pontinha a missão foi entregue a José Eduardo Sanches Osório, um major de Engenharia de 33 anos, então colocado no Estado-Maior do Exército, mas que já estivera em Angola.
A seu cargo ficou também o stencil com o programa O Movimento, as Forças Armadas e a Nação, que deveria ser policopiado e distribuído aos jornalistas no dia 25. Como previsto, Sanches Osório foi distribuindo o programa. Mas o documento iria conhecer uma segunda versão, quando, ao fim da tarde, Spínola chegou à Pontinha, onde se juntaram outros militares que integrariam a Junta de Salvação Nacional.
«Os generais disseram que Spínola já trazia no bolso uma declaração para ser lida ao País.
Teria de ser “breve e sintética”.» Mas a breve declaração resultou de negociações que «duraram horas», diz Sanches Osório, entre Spínola e a restante Junta com dois homens do Movimento, Franco Charais e Vítor Alves. «A principal divergência tinha que ver com a descolonização».
A missão de contactar jornalistas naquela noite seria premonitória na vida de Sanches Osório. Nomeado porta-voz da Junta de Salvação Nacional e, depois, adjunto militar do primeiro chefe do Governo, Palma Carlos, mudaria rapidamente para diretor-geral de Informação. Mais tarde ministro da Comunicação Social de Vasco Gonçalves, casaria também com uma jornalista, Helena Sanches Osório, hoje já falecida. «Não estava no meu programa meter-me em política, mas foi o que fiz desde aquela altura», diz o hoje coronel. Fundaria mesmo o Partido da Democracia Cristã, PDC.
Fisher Lopes Pires
O dono do rádio
O ambiente que se vivia no Posto de Comando era, compreensivelmente, de alta ansiedade. Fisher Lopes Pires, um tenente coronel de Engenharia então de 44 anos, contava que, no seu caso, era uma tensão que ele aliviava vingando-se no Mayflower, o tabaco de cachimbo que fumava e que, naquele dia, desapareceu a um ritmo quatro vezes superior.
Falecido em julho de 2013, as suas memórias são aqui reconstituídas através de A Hora da Liberdade, livro de Joana Pontes, Rodrigo de Sousa e Castro e Aniceto Afonso. A sua missão para aquela noite era escrever os comunicados do MFA, depois transmitidos pelo Rádio Club Português.
Talvez por isso se encarregou de levar para a Pontinha o seu rádio pessoal, onde todo o grupo ouviu a primeira senha e soube que a operação estava em marcha.
Também ele confirmava que Spínola logo ali quis alterar bastante o programa do Movimento. E dizia que, mais tarde, veio a considerar um erro «ter-se dado o poder aos generais». Mas, explicava, «isso veio de uma formação militar, hierárquica ». Figura influente mas discreta no processo que iria seguir-se, Fisher Lopes Pires explicava assim as cisões que depois se verificaram no MFA. «Isso veio da falta de preparação política», uma circunstância de que, dizia, os vários partidos polticos se aproveitaram.
E quanto ao seu rádio que usou na Pontinha, ainda em 2012, quando o livro saiu, se mantinha com o proprietário: «Não o dou a ninguém.»
Vítor Crespo
A mão da Marinha
A primeira dificuldade do capitão-tenente Vítor Crespo, 42 anos, naquela noite, foi encontrar a Pontinha. Como faria noutra circunstância, perguntou a um polícia, que estranhou. «É engraçado, que já passaram para lá várias pessoas!» A sua primeira impressão sobre o Posto de Comando, conta em A Hora da Liberdade, foi a da pobreza de meios: «Pareceu-me constrangedor…
eu estava habituado aos Postos de Comando de Oeiras, de Monsanto, cheios de meios, e chego ali e vejo um mapa das estradas, meia dúzia de telefones, uns transmissores de rádio numas tendas cá fora.» Para ele, o momento mais eufórico da noite foi quando intercetaram a conversa entre os ministros do Exército e da Defesa, em que um garantia ao outro que estava «tudo sob controlo», a uma hora em que o golpe já estava francamente em marcha: «Senti que tínhamos ganho.»
Hugo dos Santos
O elo de ligação
Major de Infantaria, tinha 41 anos no 25 de Abril e já comissões feitas em Cabo Verde, Angola e Guiné.
Se a conspiração partira sobretudo do Exército, a ele lhe coube, na Pontinha, fazer a ligação com a Força Aérea e com a Armada.
Falecido em 2010, contou no livro A Hora da LIberdade que o programa político do Movimento foi escrito em sua casa. Hugo dos Santos contava que um dos pontos de discussão era se, após a Revolução, deviam ser os militares a manter o poder ou a passá-lo para a Junta. «Ainda bem que foi a Junta! Só que a Junta devia ter aceitado o poder condicionado, não há dúvida de que, se assim fosse, os erros que se cometeram a seguir… haveria talvez uma aceitação diferente a nível internacional mas, pelo menos, havia a hipótese de um travão nos excessos que se cometeram…»