Pouco antes de Donald Trump assumir pela segunda vez o cargo de Presidente dos EUA, prometeu ao mundo que os seus primeiros 100 dias como Presidente seriam os mais extraordinários de sempre. E, de facto, não nos enganou – mas pela negativa.

Desde 20 de janeiro de 2025 que vemos acontecer na Casa Branca toda uma sucessão de imagens surreais, acompanhadas por um rol de decisões e declarações absurdas, infantis, retrógradas, misóginas, contraditórias e absolutamente impensáveis para qualquer pessoa que ocupe um cargo político relevante. Em 100 dias, o mundo recuou 100 anos em muitas áreas, desde a ciência aos direitos humanos.

No limiar de mergulharmos num futuro distópico, tenho refletido bastante em como chegámos até aqui. Numa primeira análise, pensei que se a vida inspira a arte, não é menos verdade que a arte pode inspirar a vida, e nesta linha de pensamento parece-me relativamente fácil encontrar os responsáveis: mestres como Stan Lee, Bill Finger, Bob Kane, George Orwell, Lovecraft ou Philip K. Dick talvez tenham povoado a imaginação de crianças como Trump e Musk (sim, estranhamente, ambos já foram crianças) com imagens de super-heróis e supervilões, ou mundos em que os livros são o inimigo e o grande irmão tudo controla.

Terá a arte contribuído para um possível fim do mundo? E se sim, o que leva alguém a escolher ser um supervilão em detrimento de ser um super-herói?

Nas primeiras digressões que fiz nos EUA, em 1997, apaixonei-me por este país que são 100 países, um lugar de contradições, em que sempre senti que tudo era possível, que tudo podia acontecer a qualquer momento, e isso era algo que me apaixonava e assustava ao mesmo tempo.

Os EUA sempre cometeram atrocidades, sob as presidências de Clinton, Bush ou Obama e de muitos outros presidentes, mas quase sempre sob uma capa de super-heróis, de salvadores do mundo. Mas paralelamente aos horrores sempre existiram vozes mais justas, dissonantes, que fizeram avançar a ciência, a arte, a sociedade. Patti Smith, Jim Jarmusch, Iggy Pop, The Cramps, Burroughs, Kerouac, Robert Frank, entre tantos outros, mudaram para sempre a forma como encaramos a arte, a literatura e a música.

Desde o primeiro momento em que pisei o solo dos EUA, senti que era um país de grandes horizontes, um país onde Nova Iorque podia coexistir com a Carolina do Sul, ou onde na mesma rua podiam morar pessoas negras e um membro do KKK; mas sob a Administração de Trump, todos os limites do razoável foram ultrapassados e todas as máscaras caíram.

A normalização do discurso irracional, misógino, racista, patético e populista
no seio da sociedade civil mundial é o verdadeiro perigo que corremos, o perigo de
um dia acordarmos num mundo em que não seja possível distinguir a verdade da mentira, o justo do injusto, a realidade da ficção

Trump e Musk vestem com orgulho o papel de supervilões, e o mundo assiste, em choque. Quer dizer, uma parte dele; porque uma outra parte do mundo rejubila com tudo isto e quer, de facto, ver o circo a arder. Muitos têm, até, boas razões para isso; muitos foram esquecidos, vivem há demasiado tempo sem esperança, em condições sub-humanas, sem qualquer possibilidade de escapar a um falso regime de meritocracia em que o capital tudo compra. E esses eu ainda compreendo, ou pelo menos fazem-me continuar a sentir alguma empatia.

Mas os discursos e ações de Trump, Musk, JD Vance ou Robert F. Kennedy Jr. empoderam e legitimam toda uma horda de vilões e minivilões espalhados pelo mundo, desde a extrema-direita europeia ou sul-americana até ao comentador do café da esquina. Representam um retrocesso de tantos valores e direitos que tanto nos custaram a ganhar. E a normalização do discurso irracional, misógino, racista, patético e populista no seio da sociedade civil mundial é o verdadeiro perigo que corremos, o perigo de um dia acordarmos num mundo em que não seja possível distinguir a verdade da mentira, o justo do injusto, a realidade da ficção.

Infelizmente podemos não estar muito longe disso, embalados pelo faroeste das redes sociais em que trolls e bullies se escondem atrás de teclados e mentiras, e em que a tecnologia avança, sem regras, e a um ritmo exponencial, em direção a uma cada vez maior alienação social.

O sonho americano acabou, ou talvez nunca tenha realmente existido.

O mundo acordou teso, com uma ressaca monumental, num motel de beira de estrada em Las Vegas, e está na hora do check-out. Resta-nos lutar e resistir, para impedir o Triunfo dos Porcos.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

O meu marido e eu visitámos recentemente uma exposição em Paris intitulada Arte Degenerada: A Arte Moderna em Julgamento sob os Nazis, que apresentava obras incluídas na famosa exposição de arte de 1937, em Munique, destinada a avisar o público alemão sobre pinturas e esculturas de Otto Dix, Paul Klee e outros que comprometeriam a saúde moral, espiritual e física da Pátria.

Ao visitar essa exposição em Paris, lembrei-me, inquieto, da tentativa de Trump de obrigar as universidades dos EUA e as empresas estrangeiras envolvidas em negócios com americanos a assinarem documentos que estipulam que não estão filiadas em quaisquer organizações comunistas, socialistas ou que, de alguma forma, promovam a diversidade e a inclusão. Para Trump e os seus aliados, qualquer pessoa que discorde deles ou que tenha opiniões progressistas é um degenerado moral – um inimigo do povo americano. Em discursos que fazem lembrar Hitler, Trump prometeu “erradicar os… bandidos da esquerda radical que vivem como vermes dentro dos limites do nosso país”. E, tal como os teóricos nazis da raça, afirmou em entrevistas que “a imigração… está a envenenar o sangue do nosso país”.

Ao longo dos últimos 101 dias, Trump aproximou cada vez mais os EUA de uma ditadura controlada por fascistas bilionários como Elon Musk. Fez tudo o que estava ao seu alcance para minar o Congresso, os tribunais e a própria Constituição.

Ao longo dos últimos 101 dias, Trump aproximou cada vez mais
os EUA de uma ditadura
controlada por fascistas bilionários como Elon Musk. Fez tudo o que estava ao seu
alcance para minar o Congresso, os tribunais e a própria Constituição

O fosso entre ricos e pobres vai certamente aumentar à medida que as tarifas e os benefícios fiscais de Trump para os super-ricos entrarem em vigor. Treze bilionários trabalham atualmente na sua Administração. É evidente que estamos a caminhar para um sonho sociopata de governo autoritário, em que os 0,1% de homens e mulheres mais ricos irão adotar políticas destinadas a manter os pobres cada vez mais incapazes de ascender à classe média – e a classe média tão desesperada para pagar as suas rendas e manter-se sem dívidas que perderá a vontade de lutar por uma mudança de política. Quem tiver dúvidas sobre esse objetivo, lembre-se que a eliminação do Departamento de Educação por Trump vai certamente reduzir a qualidade do sistema de ensino público dos EUA e eliminar programas para imigrantes, pessoas com deficiência e os mais pobres. Dado que as escolas públicas são o melhor motor para que aqueles que crescem na pobreza obtenham uma boa educação e realizem os seus sonhos, só isso condenará dezenas de milhões a perderem qualquer hipótese de uma vida melhor.

Confesso que sei cada vez menos das ações específicas de Trump nas últimas semanas, porque já não consigo ver as notícias ou ler artigos que me são enviados por amigos ansiosos e deprimidos. É que todas as minhas esperanças de uma sociedade mais amável e igualitária estão a desaparecer. Tudo aquilo por que lutei quando era jovem na América dos anos 60 e 70 pode em breve desaparecer: direitos das mulheres, direitos dos homossexuais, proteção do ambiente…

Eis um exemplo da América de Trump que também nos deve deixar ansiosos e aterrados: em estados como o Texas, uma jovem de 13 anos que seja violada e engravide não tem direito ao aborto e, se tentar interromper a gravidez, ela – e qualquer familiar, amigo ou médico que a ajude – pode ser acusada de homicídio. Sim, já houve mulheres detidas, presas e julgadas por tomarem comprimidos para interromper a gravidez ou por terem sofrido abortos espontâneos. E muitas mais acabarão na prisão durante décadas se Trump e muitos governadores de estado levarem a sua avante.

Os EUA são agora um país onde a bondade e a solidariedade são consideradas desvantagens morais e ameaças à nação. Tem dúvidas? Bem, eis o que disse Elon Musk sobre esse assunto: “A fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia.”

Às vezes é difícil definir “evil”, mas eu diria que qualquer pessoa que considere a maior e mais importante capacidade humana como uma “fraqueza fundamental” tem um enorme potencial para destruir tudo o que é melhor numa sociedade.

A minha maior desilusão com os americanos, neste momento, é o facto de milhões de pessoas não se manifestarem contra um Presidente que se quer declarar o nosso novo Führer. Não deviam os nossos antigos presidentes Obama e Clinton estar nas ruas a unirem todos aqueles que ainda acreditam na democracia?

Não faço atualmente tenções de visitar a América, porque tenho publicado artigos contra Trump desde antes da sua primeira eleição e temo pela minha segurança lá. Estarei a ser paranoico? Talvez. Mas todos os judeus sabem que é melhor ser um pouco paranoico, porque perdemos seis milhões dos nossos familiares que acreditavam que a sua cidadania os salvaria dos nazis… mas acabaram gaseados nos campos de extermínio.

Aos meus amigos e leitores portugueses… Se querem ajudar aqueles de nós que lutam contra Trump, não visitem a América nem comprem produtos americanos. Porquê? Na minha opinião, aqueles que apoiam Trump só vão acordar para a idiotice e crueldade das suas políticas se os EUA entrarem numa recessão profunda.

E aqui está a minha preocupação secreta… Que os objetivos políticos e sociais de Trump sejam transplantados para Portugal, tal como quase tudo o que é mais feio e estúpido na América acaba por vir para cá. Então, após a eleição de um clone local de Trump – um mentiroso compulsivo, homem sem empatia e valentão narcisista – perderemos a nossa jovem democracia e encontrar-nos-emos de novo a viver numa ditadura miserável.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Donald Trump, ao abandonar os princípios defendidos pelos Estados Unidos da América (EUA) nos últimos 70 anos, mudou a ordem mundial. Na economia, o maior aumento de tarifas dos últimos 100 anos, mesmo com uma suspensão parcial por 90 dias, fechou o país e lançou incerteza.

Na defesa, ao colocar em causa o compromisso dos EUA com a NATO, lançou insegurança. A paz que ia conseguir em 24 horas, ao fim de 101 dias parece cada vez mais uma miragem. Nas relações internacionais, a ameaça de invasão da Gronelândia e do Panamá, o abandono e o enfraquecimento das instituições internacionais, a saída da OMS, o rasgar de acordos assinados na área do ambiente e a suspensão do apoio ao desenvolvimento (USAid), em paralelo com insultos ao México, ao Canadá e à União Europeia (UE), puseram em causa as alianças históricas. A reação dos eleitores do Canadá à arrogância de Trump levou a uma recuperação eleitoral inesperada do Partido Liberal, ao permitir reeleger Mark Carney que, no discurso de vitória, salientou: “A nossa antiga relação com os EUA acabou.”

Na frente interna, o enfraquecimento das instituições democráticas e judiciais, a mistura assumida entre política e negócios particulares, a guerra aos imigrantes e o ataque deliberado às universidades, aos meios de comunicação social, a escritórios de advogados e às instituições públicas independentes enfraquecem a liberdade, o Estado de Direito e a capacidade de inovação, aspetos centrais do sucesso económico do último século e meio americano.

No curto prazo, Trump pode conseguir que a economia dos EUA, que estava a crescer 3% ao ano, entre em recessão. No longo prazo, com instituições mais fracas, universidades com menos financiamento, empresas mais dependentes de favores públicos e uma economia mais fechada e ineficiente, os EUA serão mais pequenos do que poderiam ser.

Para os que, como eu, acreditam que os princípios de valorizar as instituições democráticas e liberais, no Estado de direito, na abertura ao comércio, no respeito pelas leis internacionais, e que uma aliança militar entre os países ocidentais promovem a paz, a decisão de Trump de abandonar o que os EUA defenderam nos últimos 70 anos é uma enorme perda.

A admiração que tenho pela capacidade e pela independência das universidades, da sociedade civil, dos empresários e empreendedores americanos e a capacidade que os EUA sempre demonstraram de conseguir atrair e aproveitar o talento de todos os que para ali migravam faz com que a evolução política que está a ocorrer seja preocupante não apenas para os próprios EUA, mas para todo o Ocidente e para o mundo em geral.

Este artigo, de acordo com o que me foi pedido, centra-se nas preocupações económicas e sociais, mais do que nas geopolíticas e militares.

AS TARIFAS

No dia em que Trump apresentou um dos maiores aumentos de impostos sobre os consumidores americanos, a que ironicamente chamou de Liberation Day, a justificação dada pelo Presidente dos EUA foi a de reciprocidade. Donald Trump apresentou uma tabela supostamente com elevadas tarifas cobradas por vários países aos produtos dos EUA, mas essa tabela não apresentava as tarifas, mas antes o défice bilateral em percentagem das importações. De acordo com os dados da Organização Mundial do Comércio, a tarifa média que os produtos dos EUA pagam à entrada na UE é de cerca de 1,7% (e não 39%), com a China é de 4,9% (e não 67%). O quadro nestas páginas apresenta as taxas médias que se verificaram no comércio bilateral entre os EUA e outros países em 2024, as taxas que Trump anunciou como tarifas cobradas aos EUA, que são dez a 20 vezes maiores do que as que realmente existem, e as tarifas recíprocas, que de recíprocas não têm nada.

Mesmo se nos últimos 15 anos já houve algum recuo no comércio de bens e no investimento internacional, o mundo manteve-se bastante aberto, com tarifas baixas e com um aumento importante do comércio de serviços, do qual os EUA e as suas grandes empresas tecnológicas muito beneficiaram.

Passar de tarifas médias de entrada nos EUA de 1% a 5% (em 2024), para tarifas de 10%, já em vigor, é um enorme retrocesso. Considerar tarifas de 25% para os países vizinhos, e de entre 20% e 50% para os maiores parceiros comerciais, como Trump anunciou, será uma travagem tão brusca que vai implicar o fecho de muitas unidades industriais nos EUA, que fazem parte de cadeias de valor internacionais. As fábricas que exportam a partir dos EUA, com base em inputs importados, verão também a sua competitividade diminuir. As tarifas diminuem as importações, mas também comprometem as empresas exportadoras.

No passado, Trump usou subsídios aos agricultores, com um custo próximo às receitas obtidas pelos aumentos de tarifas. Usou também isenções (waivers e exemptions) de forma discricionária para proteger setores, produtos e empresas, distorcendo os mecanismos de mercado e criando relações pouco transparentes com interesses privados.

Desta vez, os valores das tarifas são muito mais elevados e generalizados. Estas isenções vão corresponder a maiores favores. Os dados reportados pelo Congresso mostram que o aumento da despesa em lobbying associada a assuntos de comércio externo cresceu 277% no primeiro trimestre deste ano, face a igual período do ano anterior, e o número de entidades envolvidas passou de 89 para 212.

O DÓLAR E OS ATIVOS AMERICANOS

A instabilidade gerada pelos anúncios de tarifas de Trump levou a uma queda nos mercados de capitais (S&P 500) de cerca de 18%, um valor próximo das quedas em crises como a da Covid-19, ou a crise asiática de 1997. Trump gerou uma das maiores quedas dos últimos 30 anos.

Entre 2 e 4 de abril, as empresas americanas perderam cinco biliões de dólares em valor de mercado, uma perda equivalente a 16 vezes o PIB de Portugal. Nos 101 dias desde que Trump tomou posse, os mercados de capital registaram uma perda acumulada de 9,6 biliões de dólares, um valor suficiente para pagar todos os bens importados pelos EUA nos últimos três anos.

A instabilidade obrigou Trump a recuar, suspendendo as
tarifas recíprocas por 90 dias. A decisão permitiu uma
recuperação das bolsas, mas para valores muito abaixo dos do início do seu mandato

Os efeitos da instabilidade criada por Trump foram globais, com perdas sempre que eram anunciadas tarifas, e recuperações parciais, nos momentos de recuo no protecionismo.

A instabilidade dos mercados de capitais inicialmente moveu os investidores para a dívida pública americana, um movimento normal de procura de ativos de menor risco, em períodos de instabilidade, que permitiu uma descida dos juros. Mas esta tendência rapidamente se inverteu. Ainda nos primeiros dias de abril, o custo da dívida pública subiu, à medida que a confiança na política fiscal e na capacidade de crescimento levava os investidores a procurar reduzir a exposição a ativos americanos, o que resultou numa desvalorização do dólar.

Esta evolução obrigou Trump a recuar, suspendendo as tarifas recíprocas por 90 dias, o que permitiu uma recuperação das bolsas, mas para valores muito abaixo dos do início do seu mandato.

A instabilidade afetou também a confiança dos consumidores, com o índice a descer quatro meses consecutivos, caindo de 71, em janeiro, para 52, em abril, um dos valores mais baixos da última década. Uma descida comparável à registada na pandemia. Os consumidores temem perder rendimento, com a instabilidade económica e as perspetivas de recessão, mas também receiam a subida dos preços. As expectativas de inflação para o próximo ano saltaram para 6,5%, o valor mais alto desde 1981, devido aos anúncios de política comercial.

A RESPOSTA DA EUROPA

Trump vai continuar a insistir em tarifas. A resposta da Europa deve incluir capacidade de retaliação. Só assumindo tarifas em áreas que prejudiquem a base de apoio de Trump pode ter força negocial. Mas deve evitar que estas ultrapassem a reciprocidade. Começar por propor reciprocidade com tarifa zero nos produtos industriais foi correto. Mostrou que há outro caminho.

Mas, mais do que retaliação, a reação da UE deve centrar-se em reforçar a competitividade, assumindo o aumento de apoios públicos à inovação e ao reforço de áreas estratégicas como a defesa, a energia, a biotecnologia, a medicina e o digital. Não deve criar áreas subsidiadas. Mas antes apoiar o investimento e I&D em áreas que possam criar empresas competitivas. É necessário que os países da UE voltem a ter iniciativa, como nos anos 1970, quando avançaram com a Airbus. É necessário olhar para o que se conseguiu com as empresas de biotecnologia escandinavas, e criar condições para que mais empresas surjam e cresçam. É importante reforçar os instrumentos de capital de risco, de forma a permitir que as startups europeias cresçam na Europa. O ataque de Trump às universidades americanas, pode inverter o fluxo de cérebros. Estas são oportunidades a que a UE e Portugal devem estar atentos.

Onde os EUA se fecham, a UE deve abrir-se. Em primeiro lugar aprofundando a integração. Mas também concluindo o acordo com o Mercosul e alargando negociações a toda a América Latina.

Reforçar a abertura à Asia também deve ser uma prioridade. Trabalhando com a China, mas também com a Índia, a Indonésia, a Malásia, etc. E voltar a olhar para África não apenas como uma oportunidade de comércio e de matérias-primas, mas assumindo uma parceria para o desenvolvimento.

A IMPORTÂNCIA DAS INSTITUIÇÕES

Os Estados Unidos têm o mercado de capitais mais dinâmico do mundo. Têm também 16 das 20 melhores universidades do mundo (ARWU 2024). Universidades que dependem da atração de talento de todo o mundo e de um ecossistema, que inclui a NASA, uma rede de fundos e institutos públicos e privados de investigação, financiamento da defesa, incubadoras e investidores de capital de risco. Este ecossistema, com financiamento público e privado, constitui o melhor sistema de inovação do mundo e está na base do sucesso das empresas tecnológicas globais americanas.

Ao contrário de anteriores presidentes, Trump, depois de eleito, em vez de contribuir para diminuir a polarização, acentuou-a, mantendo as guerras culturais e mostrando estar disposto a usar os meios do Estado para perseguir instituições e pessoas com ideias diferentes das suas.

Isso notou-se na nomeação dos secretários de Estado, com exemplos chocantes na saúde ou na defesa, nas escolhas para procurador e para diretor do FBI, na guerra com a Reserva Federal e no ataque às universidades americanas. Tentar impor a estas instituições os temas que devem e não devem investigar lembra regimes não democráticos. Querer impor políticas de seleção de estudantes ou de professores é uma interferência na sua autonomia. Cortar apoios públicos à investigação com base em premissas políticas acaba com práticas de seleção por mérito e avaliação pelos pares, que produziram a excelência académica dos EUA.

Daron Acemoglu, Prémio Nobel da Economia em 2024, começa o seu livro, Why Nations Fail, por apresentar a história de uma cidade dividida pela fronteira entre o México e os EUA, e os resultados em termos de desenvolvimento que resultaram da adoção de instituições inclusivas versus extrativas. Explica como a necessidade de atrair pessoas para desenvolver produção e a afirmação de mercados transparentes de bens e financeiros contribuíram para que os regimes coloniais conduzissem a uma diferente evolução das sociedades do que mais tarde seriam os EUA, face aos países da América latina.

Donald Trump, ao enfraquecer a independência das instituições democráticas e da sociedade civil dos EUA, e ao desenvolver um modelo económico protecionista e pouco transparente nas relações entre empresas e Estado, parece querer levar os EUA para um modelo económico do século XIX, ou para os modelos populares na América do Sul nos anos 1970 e 1980, que muitos destes países já abandonaram, pelos maus resultados que geraram.

Os 101 dias de Administração Trump parecem 1 461 dias, o tempo de um mandato de quatro anos. A história de avanços e recuos é tão cheia de decisões e contradecisões, que parece ser a história de um período mais longo. Pode indicar que se andou a correr. E andou. Mas em muitos casos correu-se muito para a frente e para trás, apenas para voltar ao ponto de partida.

Mas este ponto de partida já não é o mesmo. Na agitação sem sentido perdeu-se confiança. Confiança dos consumidores, que está num dos pontos mais baixos em décadas. Confiança dos investidores industriais, que suspenderam os investimentos. E também a confiança nos mercados de capitais, no dólar e nos ativos americanos, incluindo na dívida pública americana. Uma destruição de valor que afeta tanto os grandes investidores como a poupança para a reforma de milhões de americanos.

A confiança dos aliados nas parcerias económicas e militares foi posta em causa, com efeitos que vão ter implicações de longo prazo. Mesmo que venha uma nova Administração dentro de quatro anos, os europeus e canadianos hoje sabem que só podem contar com os EUA até à próxima eleição.

As sondagens de avaliação dos primeiros 100 dias de Trump sugerem que pode já ter perdido também a confiança de muitos dos eleitores que votaram em si. Mas é cedo para avaliar.

Nos próximos meses, os EUA tem de colocar montantes muito elevados de dívida. Será que conseguem fazê-lo a custos controlados?

Será que em julho (ao fim dos 90 dias) Trump voltará a insistir em tarifas tão elevadas? Será que vai repor o apoio da USaid? Vai continuar a perseguir imigrantes? O que fará perante um abrandamento ou sinais de recessão? E se os mercados de capitais reagirem, voltará a recuar?

E vai voltar a assumir os compromissos da NATO? E se afirmar que vai, os europeus vão acreditar? Esta é a nova desordem mundial. A incerteza é, com Trump, a única coisa com que se pode contar.

Os avanços e recuos de Trump

20/1 Tomada de Posse. Trump anuncia tarifas de 25% sobre o Canadá e o México a partir de 1 de fevereiro, por falta de controlo do tráfico de droga e imigração ilegal.

26/1 Tarifas de 25% imediatas sobre a Colômbia, por não querer receber repatriados.

1/2 Tarifas de 25% sobre todos os bens do Canadá e do México e de 10% sobre a China.

3/2 Tarifas de 25% sobre o México e o Canadá suspensas por um mês.

4/2 Tarifas adicionais de 10% sobre produtos da China entram em vigor.

10/2 Anúncio de uma tarifa de 25% para o aço e o alumínio (igual ao primeiro mandato).

14/2 Trump anuncia tarifas sobre automóveis estrangeiros a partir de 2 de abril.

27/2 Trump anuncia que as tarifas sobre produtos do Canadá e do México entram em vigor a 4 de março.

4/3 Tarifas sobre as importações do Canadá, do México e da China entram em vigor. O Canadá responde com tarifas de 25% sobre 155 mil milhões dólares de importações dos EUA.

5/3 Sob pressão dos fabricantes de automóveis, Trump decide uma pausa de um mês nas tarifas sobre o setor automóvel do Canadá e do México.

6/3 Tarifas sobre produtos do Canadá e do México são suspensas para a maioria dos bens. 

10/3 O governo chinês impõe tarifas em vários produtos dos EUA, incluindo um adicional de 10% a 15% em vários produtos agrícolas (soja, fruta, frango, milho).

Canadá anuncia uma taxa de 25% na eletricidade exportada para os EUA.

11/3 Trump ameaça duplicar as tarifas sobre o aço e o alumínio do Canadá.

No mesmo dia, Trump recua e o Ontário desiste da taxa sobre a eletricidade.

12/3 A União Europeia e o Canadá anunciam tarifas retaliatórias.

13/3 Em retaliação a uma possível tarifa sobre o whiskey americano, Trump anuncia uma tarifa de 200% sobre vinho, champanhe e outras bebidas alcoólicas da UE.

Tarifas adicionais de 10% sobre produtos da China entram em vigor.

24/3 Trump afirma que países que comprem petróleo à Venezuela terão tarifas agravadas.

26/3 Anúncio de tarifas de 25% para todos os automóveis e componentes que entrem nos EUA, incluindo de marcas americanas.

2/4 Liberation Day: Anúncio de tarifas recíprocas de 10% a 50%, com base em tabela que apresenta o saldo externo relativo e não as tarifas (UE 20%, China 34%).

9/4 Tarifas recíprocas entram em vigor de manhã.

No mesmo dia, novas tarifas são suspensas por 90 dias.

Mantêm-se tarifas de 10% para todos os países e as tarifas de 34% sobre a China. Ainda no dia 9, a China anuncia retaliação com tarifas sobre bens dos EUA de 34%, e depois de 84%.

10/4 Ainda no dia 9, a China retalia, com tarifas sobre bens dos EUA de 34% e depois de 84%. EUA respondem com tarifas sobre a China de 104%, e este país reage com 125%. No dia 10, os EUA chegam aos 145%.

12/4 Trump recua em parte das tarifas sobre a China, isentando os telemóveis, computadores e chips.

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Sempre achei bastante frágil a ideia de que os Estados Unidos da América vivem um período de inexorável declínio, no sentido de que a ascensão da China e a multipolaridade têm nas mãos os destinos do mundo.

É uma evidência que o poder mundial tem vindo a ficar progressivamente mais disperso, mas gostava que me respondessem, com sinceridade, a esta pergunta: salvo se alguém anunciasse que ia mandar executar um celerado ataque nuclear, quem, senão um *residente americano, tem a antecipada garantia de conseguir deixar o resto do mundo atarantado, por virtude de decisões que assume em nome do seu país?

Se os líderes chinês, russo e indiano, para não falar de qualquer europeu, decidirem falar grosso em termos de comércio internacional, alguém se assusta e entra em quase pânico, como aconteceu depois de Trump ter dito o que disse?

O poder não é outra coisa senão isso: a capacidade de conseguir constranger os outros. E essa pressão só é eficaz porque se sabe que, por detrás das palavras, há formas poderosas de a levar à prática.

Por uma conjugação até agora única de circunstâncias, os EUA reúnem em si, desde há já muitos anos, o controlo de vários e importantes eixos de poder. Acresce que, com formas diferentes, a América instalou modelos de dependência um pouco por todo o mundo, que lhe servem de fator potenciador dos seus interesses. Até aos dias de hoje, nenhum outro país conjuga dimensões militares, económicas e diplomáticas tão poderosas no seu conjunto. Isto pode vir a alterar-se? Talvez, mas confesso que, por ora, não consigo prever o cenário de concretização desse futuro.

Um poder benévolo?

É sabido que os EUA tiveram um papel determinante no desenho da ordem mundial instituída desde a II Guerra Mundial. Essa ordem pressupunha a observância de um conjunto de regras que os EUA, curiosamente, muitas vezes se eximiam a cumprir. Porquê? Porque a América se arrogava uma excecionalidade que fazia com que o normativo internacional só fosse enforced quando ela deixava. Vejam-se, como elucidativo exemplo, as resoluções do Conselho de Segurança da ONU sobre Israel.

Dir-se-á que, durante a Guerra Fria, do “outro lado do espelho”, ou do “muro”, as coisas se passavam de forma similar. É e não é verdade: o poder condicionador americano, dentro da ordem multilateral, nunca teve um rival de nível equivalente, tanto mais que, com mais ou menos relutância, o mundo ocidental, sob influência ou tutela americana, foi aceitando essa liderança, às vezes vergando-se simplesmente à sua inevitabilidade. Quando, depois da implosão da União Soviética, a América passou a “hiperpotência”, esse desequilíbrio acentuou-se ainda mais.

Não obstante esta preeminência, o mundo ocidental foi constatando que, em certos ciclos políticos, mais democráticos do que republicanos, a América se coibia, algumas vezes, na demonstração arrogante da sua força, dando sinais de que tinha em alguma atenção a vontade dos outros, os interesses dos aliados e amigos, de ocasião ou não. Porém, invariavelmente, isso só acontecia em conjunturas nas quais interesses essenciais dos EUA não estavam em jogo. Em muitas outras ocasiões, a palavra americana esteve sempre longe de ser suave. É que os EUA dão-se sempre ao luxo de não esconder, ou de dar por entendido pelos outros, o seu poderio, sempre que desejam afirmar a sua vontade.

Os primeiros tempo de Trump

Tudo o que ficou escrito dizia respeito a outra América. A chegada ao poder de Trump conduz-nos para um tempo novo na atitude dos Estados Unidos na ordem internacional. A atitude de alguma condescendência com os interesses alheios deixou de ser praticada.

No seu primeiro mandato tinha sido evidente, na ordem externa, a introdução de uma agenda já fortemente “revisionista”, embora um pouco caótica na sua coerência global. Veio a perceber-se, o novo Presidente havia sido forçado a acomodar na sua Administração personalidades que ainda estavam marcadas por uma agenda republicana mais tradicional. Isso fez com que as tensões no seio do seu primeiro governo fossem evidentes, com uma resultante final que acabou por se revelar algo confusa.

A nova equipa de Trump,
já desembaraçada do empecilho de algum pensamento mais
tradicional, trouxe para
a Casa Branca, sem peias
nem limites de qualquer
moralidade, uma agenda
nacionalista hiperegoísta,
com uma afirmação extrema
de poder, só limitado pela
sua própria vontade

Mesmo correndo o risco da caricatura, ficava a sensação de que Trump tinha então como prioridade desmontar a herança dos oito anos de Obama e confrontar virtualmente a agenda que Hillary Clinton tinha anunciado que iria seguir-se. Era uma outra América que aí vinha.

O essencial dessa mensagem externa, parte dela anunciada para consumo interno, foi-se clarificando: tensão deliberada com a China, uma estranha propensão para um diálogo privilegiado com a Rússia, abandono dos compromissos económicos e ambientais multilaterais, assumido protecionismo radical, egoísmo transacional no terreno securitário externo, descaso flagrante com os aliados, em especial europeus, e com o sistema multilateral em geral, obsessão com as fronteiras, desengajamento de presença militar em cenários de tensão ou conflito. A isto se somou um endurecimento com Cuba e Venezuela, um estender de mão em jeito de ultimato à Coreia do Norte. E algo mais.

A agenda pró-israelita, que nos EUA tem uma conhecida relevância interna transpartidária, ficou evidente no upgrading das relações bilaterais (mudança da embaixada para Jerusalém e reconhecimento da ocupação dos Golan), no endurecer da atitude face ao Irão e na saída do acordo nuclear, na promoção dos “acordos de Abraão” para atenuar bilateralmente as dificuldades israelitas no mundo árabe, no assumido viés anti-islâmico, com introdução de restrições no acesso de cidadãos dessa origem aos EUA, bem como no abandono do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Trump fazia o que tinha prometido: colocar, desbragadamente, a “America first”, assim respondendo aos preconceitos, medos e obsessões do eleitorado que o elegera.

O Trump II

Há dias, alguém qualificou, de forma simples mas certeira, a postura externa de Trump neste segundo mandato: imperialista e expansionista. Sem surpresas, muitas das linhas que tinham estado presentes na gestão externa anterior surgem plasmadas neste novo tempo. Contudo, há algumas “novidades” que permitem pensar que a nova equipa de Trump, já desembaraçada do empecilho de algum pensamento mais tradicional, trouxe para a Casa Branca, sem peias nem limites de qualquer moralidade, uma agenda nacionalista hiperegoísta, com uma afirmação extrema de poder, só limitado pela sua própria vontade.

O segundo mandato de Trump veio encontrar a Rússia já em disputa armada por territórios ucranianos, o que é um cenário verdadeiramente novo face ao antecedente. Trump não se acanhou perante o desafio: em dois dias, segundo disse, resolveria o assunto, acabaria com a guerra, guerra essa que, se ele tivesse estado no lugar de Joe Biden, nunca teria sido iniciada. Nisto, há que reconhecer, pode ter alguma razão, por muito que isso possa ser desagradável aos ouvidos de alguns. A Rússia poderia ter obtido de Trump, sem um tiro, algo que ainda está longe de ter conseguido, depois de três anos de luta.

Mas a guerra estava lá. E o facilitismo quase primário com que Trump tende a abordar, em geral, os temas internacionais começa a confrontar-se, neste caso particular, com um choque de realidade na complexidade do pantanoso tema da Ucrânia. À hora em que este texto está a ser escrito, ainda não é muito claro como Trump conseguirá ou não salvar a face da América neste dossier. Uma coisa é certa: perca ou ganhe, sairá sempre “vitorioso”, porque o desaire não faz parte da sua narrativa.

As surpresas

Trump II trouxe, na área externa, quatro iniciativas verdadeiramente inesperadas.

Desde logo, a afirmação do desejo de proclamar a soberania americana sobre a Gronelândia, território sob tutela dinamarquesa onde os EUA já operavam militarmente, em aparente ambiente pacífico. O discurso agressivo e ofensivo de Trump sobre Copenhaga é demonstrativo do grau de consideração que os países europeus lhe oferecem.

Num segundo tema, os EUA assumem uma espécie de nova Doutrina Monroe, ao afirmarem o desejo de reverter o poder do Panamá sobre o canal que o atravessa, cujo estatuto parecia ter sido eternamente resolvido. A palavra de Washington, pelos vistos, já não vale o que valia.

Surpresa imensa está a ser, também, o modo como o Canadá tem vindo a ser tratado por Trump. Não é apenas a imposição de fortes direitos aduaneiros, de que já falaremos. Trata-se de alimentar um discurso desrespeitoso e agressivo para com um dos países que, ao longo da História, têm mostrado cultivar uma relação de particular proximidade com a América, um aliado fidelíssimo e sem falhas. Ao insinuar que o Canadá deveria passar a ser o 51º estado americano, que se trata de uma entidade internacional que não tem razão de existir com soberania própria, Trump assume uma deriva quase imperial.

A quarta surpresa, que aqui distingo porque é paradigmática de um mundo trumpiano que tem a virtualidade de se situar em limiares quase oníricos, é a ideia de transformar Gaza num grande projeto imobiliário, naturalmente considerando como questão menor o destino dos quase três milhões de pessoas que lá vivem ou viviam – porque Israel, com a complacência cúmplice da América e perante a cobardia do mundo, tem vindo a atenuar o peso demográfico no território. Quando os nazis fizeram o que fizeram aos judeus, isso fazia parte da “solução final” do problema judaico. Agora, com a vítima anterior a ser o sujeito da nova oração genocida, ainda não há nome para qualificar, para a História, esta ignomínia.

O comércio

Trump é um homem de negócios. Olha o mundo como um espaço de transações. Vive obcecado com o lucro, com as vantagens. Já no seu primeiro mandato tinha ficado claro que considerava que os EUA, em lugar de terem sido os grandes ganhadores de um mundo globalizado, feito à imagem e semelhança da ideologia que a América tinha espalhado e promovido como a filosofia capitalista salvífica, era, afinal, um perdedor da História. É estranho que a potência que fez grande parte da sua riqueza global nesse registo doutrinário se revolte contra si mesma. Porquê? Por ter sido eleito, em grande parte, por uma América que pagou o preço da “destruição criativa” que está na própria essência do capitalismo, como Schumpeter sempre alertou ser o mal indispensável à bondade e à sobrevivência do sistema. Afinal, Joseph Stiglitz deve estar a rir-se, a ver Trump associar-se, um quarto de século depois do seu livro clássico, aos “descontentes” da globalização.

Ainda não passou tempo suficiente para percebermos se Trump brincou demasiado com o fogo ao ter incendiado os mercados com os seus brutais anúncios tarifários. Claro que há um limite de impactos que, mais cedo ou mais tarde, ele terá de digerir e acomodar. Mas também é evidente que o peso dos EUA acabará por favorecer o seu bullying e garantir-lhe ganhos no reequilíbrio de algumas balanças comerciais bilaterais.

Mas como terminará a tensão com a China, cuja rigidez política lhe permite levar muito mais longe um bluff a que as verdadeiras economias de mercado não se podem dar ao luxo?

E agora?

Vale a pena pensar – por muito que pensar nisso possa angustiar muita gente – que Trump só agora está a começar este seu segundo mandato. Passaram apenas 101 dias!

Claro que a sua ação vai acabar por ser moderada pelo inevitável impacto de algumas realidades exteriores, a que não poderá escapar, mesmo que muito contra a sua vontade. É óbvio que tudo indica que as eleições intercalares de novembro de 2026 acabarão por “atar-lhe” as mãos, de alguma forma, no plano legislativo – e isso pode justificar, de certo modo, o afã decisório neste ano de aturdimento e surpresa.

Contudo, todas essas “boas notícias” poderão pouco significar se Donald Trump, neste entretanto, vier a mudar a realidade institucional dos EUA, se conseguir levar à prática o desmantelamento ou a fragilização do aparelho constitucional, derrubando os checks and balances em torno dos quais foi consolidada a democracia americana.

Confesso que não desisto de ser otimista e de pensar, como cantava o meu saudoso amigo Fausto, que “atrás dos tempos veem tempos e outros tempos hão de vir”. Ou, para ser mais simples, que há mais vida para lá de Trump. Mas haverá?

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Em apenas oito semanas, o homem que, no seu discurso de tomada de posse, a 20 de janeiro, disse que iria presidir a uma “era de ouro na América” levou à letra essa sua promessa, no interior da Casa Branca. Todos os novos 20 quadros, representando anteriores presidentes dos EUA, que Donald Trump mandou colocar na Sala Oval têm molduras douradas. Exatamente, a mesma cor das novas estatuetas, pratos, bases de candeeiros e cercaduras de espelhos que passaram a ornamentar o seu gabinete de trabalho, onde recebe as visitas dos governantes e chefes de Estado estrangeiros. Além disso, sob as suas ordens diretas, foram também adicionados elementos dourados à lareira, aos arcos das portas, às paredes e a outras áreas da sala, ao estilo do que se vê na sua Trump Tower, de Manhattan, ou na opulenta mansão de Mar-a-Largo, na Flórida.

Sala Oval Donald Trump decretou a predominância do dourado na Casa Branca. Será só decoração?

Conhecendo o seu passado, este impulso decorativo num homem que fez fortuna como promotor imobiliário – além de algumas falências problemáticas – não pode ser considerado surpreendente. Até porque, de uma forma ou de outra, todos os seus antecessores tentaram deixar a sua marca na decoração do edifício fronteiro à Avenida da Pensilvânia, na capital dos EUA. A diferença é que, desta vez, Trump está a ser extremamente rápido na transformação do edifício e, acima de tudo, na imagem que pretende projetar do seu estilo de poder: uma opulência dourada, mais ao estilo de um monarca absolutista do que de um Presidente republicano. E, segundo se vai sabendo, tem também planos para profundas transformações na mansão, incluindo a construção de um salão de baile para acolher jantares de Estado, ao estilo do que possui em Mar-a-Lago, que, por sua vez, foi inspirado no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, antiga morada da corte francesa.

Por mais simbólica que seja, especialmente para alguém que vai reafirmando o seu desejo de se prolongar na presidência para lá dos limites constitucionais, a verdade é que a nova decoração da Casa Branca é puramente cosmética. E pode ser rapidamente modificada por quem lhe suceder. Mais profunda é, entanto, a autêntica revolução que, nos seus primeiros 100 dias no poder, Donald Trump conseguiu impor nos EUA, com ondas de choque avassaladoras em todo o mundo. E essas não são absolutamente nada decorativas – até porque, como sabemos, nem tudo o que brilha é ouro.

Contra tudo e todos

Os factos são conhecidos de todos. Desde que regressou à Casa Branca, Donald Trump dinamitou a ordem mundial, declarou guerra comercial ao resto do planeta, virou ostensivamente as costas aos aliados tradicionais de Washington, ameaçou anexar a Gronelândia, ocupar o Canal do Panamá, incorporar o Canadá nos EUA e elegeu a União Europeia como um adversário especial.

Socorrendo-se da ajuda do homem mais rico do planeta, Elon Musk, iniciou o desmantelamento de algumas das principais instituições americanas, obrigando ao despedimento de dezenas de milhares de funcionários públicos e lançou o maior ataque de que há memória na América contra universidades, meios de comunicação, escritórios de advogados, instituições culturais e museus.

Para controlar o departamento de Justiça, ordenou investigações aos seus adversários políticos, procurou expulsar os procuradores que se lhe tinham oposto e, fazendo valer o seu poder presidencial, indultou todos os acusados na tentativa de insurreição que culminou com o assalto ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021. E, sem decisão judicial, iniciou a deportação de alegados criminosos e membros de gangues para uma prisão de alta segurança em El Salvador.

Declaração de guerra O anúncio das “tarifas recíprocas”, com que Trump pretendeu castigar o resto do mundo. Irá recuar?

Para combater a imigração, uma das bandeiras da sua campanha, Trump assinou uma série de medidas executivas que, aos poucos, têm estado a ser contestadas na Justiça, por poderem violar a Constituição: proibir o asilo para quem entre pela fronteira sul, acabar com a cidadania por direito de nascimento para filhos de imigrantes sem documentos e declarar as travessias de pessoas na fronteira EUA-México como uma emergência nacional – a forma que encontrou para poder desbloquear financiamento federal, que permita fazer deslocar grandes quantidades de forças de segurança e proceder à expulsão de milhares de imigrantes.

A sua presidência transformou-se numa autêntica montanha-russa, repleta de guinadas inesperadas, descidas alucinantes e subidas ameaçadoras, em que dá sempre a ideia de querer dominar pelo medo, impondo o caos a seu bel-prazer, sem se importar com as consequências. E, aos poucos, vai destruindo a confiança do mundo nos EUA, a uma velocidade de tal forma elevada, que dificilmente poderá ser recuperada nos anos mais próximos. Em apenas uma centena de dias, Donald Trump fez desmoronar a liderança global dos EUA, assente, desde o final da II Guerra Mundial, numa ordem baseada em regras, na liberalização económica e no comércio livre global. Agora, o isolacionismo americano está em ascensão. E se, de início, muitos líderes sorriram quando Trump, na tomada de posse, anunciou a mudança de nome do Golfo do México para Golfo da América, aos poucos começaram a perceber que, afinal, todas as promessas que ele tinha feito ao longo dos últimos anos eram mesmo para serem levadas a sério – sem sorrisos, mas com redobrada apreensão.

Surpreendidos com o quê?

“O que tenho estado a fazer é exatamente tudo o que, na minha campanha, disse que ia fazer”, declarou Donald Trump à revista Time, na semana passada. Por mais que custe aos seus detratores e opositores, bem como a muitos líderes internacionais, o mínimo que se pode dizer é que o Presidente dos EUA tem inteira razão nessa sua afirmação. De facto, em todas as suas intervenções públicas e nas suas publicações – vertiginosas – nas redes sociais, ele nunca escondeu os seus planos, mesmo que tantos o considerassem disparatados ou até ilegais.

Com tarifas alfandegárias, deportações em massa, ataques violentos às políticas de diversidade, equidade e inclusão, uma obstinada negação da crise climática e das evidências científicas em matéria de Saúde, Trump tem estado a cumprir a sua agenda. E, conforme tinha prometido, a promover o isolacionismo da América como a única forma que conhece para combater o crescente poder económico da China. Ao contrário de muitos dos seus antecessores, Trump não procura aliados, mas apenas subjugar o resto do mundo aos seus interesses.

Em todas as suas
intervenções
públicas e nas
suas publicações
– vertiginosas – nas
redes sociais, Trump
nunca escondeu
os seus planos

Com Trump, a política externa americana passou a dar prioridade aos ganhos económicos imediatos, em vez de se preocupar com estratégias de longo prazo. Por isso, um após outro, foi-se afastando de todos os compromissos internacionais que poderão afetar a sua necessidade de gerar mais receitas, seja através da saída do Acordo de Paris contra as alterações climáticas, como até da Organização Mundial da Saúde – num caso para lhe permitir continuar a apostar no dinheiro rápido dos combustíveis fósseis, no outro para segurar a agenda conservadora dos seus apoiantes, nomeadamente em relação às vacinas.

A vertigem da montanha-russa de Trump não para, mas também ninguém consegue prever se irá abrandar nos mais de 1 300 dias que lhe restam deste mandado. Por agora, percebeu-se que os americanos já manifestam descontentamento, nas sondagens, com a sua atuação – não tanto por razões ideológicas, mas porque a sua promessa de crescimento económico pode estar a transformar-se numa inevitável recessão, com consequências diretas nas carteiras dos seus cidadãos. A era dourada prometida pode, porventura, ficar restringida à decoração da Casa Branca. Com o resto do mundo cada vez mais longe da América.

A rebentar a escala

As principais decisões – e indecisões – de Donald Trump nos primeiros 101 dias de Presidência

20 janeiro
Muda o nome do Golfo do México para Golfo da América. Determina o encerramento de todos os programas de “diversidade, equidade e inclusão”, bem como programas de justiça ambiental, em todo o governo federal. Restaura a pena de morte federal. Concede clemência a todos os acusados no ataque ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021. Revoga 78 das ordens executivas de Joe Biden. Ordena ao governo que reconheça apenas dois sexos: masculino e feminino. Anuncia a retirada dos EUA do Acordo de Paris e da OMS.

21 janeiro
Promete impor tarifas aduaneiras ao Canadá e ao México. Anuncia uma iniciativa de Inteligência Artificial no valor de 100 mil milhões de dólares.

22 janeiro
Declara os rebeldes hutis como “organização terrorista estrangeira”.

25 janeiro
Interrompe programa global de remoção de minas terrestres. Insiste que os EUA vão comprar a Gronelândia.

28 janeiro
Tenta convencer milhões de funcionários federais a demitirem-se.

1 fevereiro
Anuncia oficialmente tarifas aduaneiras sobre importações do Canadá, do México e novas sobre a China.

2 fevereiro
Volta a afirmar que os EUA poderão tomar o controlo do canal do Panamá.

3 fevereiro
Adia a entrada em vigor das tarifas no México e no Canadá, mas declara: “Gostaria de ver o Canadá tornar-se o nosso 51.º estado”.

4 fevereiro
Propõe que os EUA assumam o controlo de Gaza. Inicia o desmantelamento total da USAid.

5 fevereiro
O secretário de Estado Marco Rubio procura esclarecer que Trump estava apenas a propor limpar e reconstruir Gaza e não reivindicar a posse do território.

7 fevereiro
Suspende a ajuda financeira à África do Sul e apela à “reinstalação de refugiados” brancos nos EUA.

9 fevereiro
Designa o dia 9 de fevereiro como o Dia do Golfo da América (conhecido internacionalmente como Golfo do México).

10 fevereiro
Anuncia “tarifas recíprocas” de 25% sobre as importações de aço e alumínio. Ameaça cortar a ajuda dos EUA à Jordânia e ao Egito.

12 fevereiro
Anuncia um plano para trabalhar com a Rússia num cessar-fogo para pôr fim à guerra na Ucrânia. Nomeia-se a si próprio presidente da instituição cultural Kennedy Center.

13 fevereiro
Anuncia, para breve, uma série de “tarifas recíprocas” que poderão reformular o sistema de comércio global.

14 fevereiro
Anuncia tarifas sobre a importação de carros estrangeiros, para entrarem em vigor a 2 de abril. Elogia os comentários do vice-presidente JD Vance, na Conferência de Munique, em que este declarou o seu apoio aos partidos de extrema-direita e criticou os líderes europeus por “não defenderem os valores democráticos”.

18 fevereiro
Determina que todos os procuradores da “era Biden” fossem demitidos. Inicia conversações de alto nível com a Rússia, sobre a guerra na Ucrânia.

19 fevereiro
Culpa Zelensky pela guerra na Ucrânia.

21 fevereiro
Diz, numa entrevista de rádio, que Zelensky não precisava de participar nas conversações de paz entre a Ucrânia e a Rússia.

23 fevereiro
Demite mais de 2 000 mil funcionários da USAid, a principal agência humanitária dos EUA.

24 fevereiro
Opõe-se a uma resolução na ONU, aprovada de forma esmagadora, em que se exigia a retirada da Rússia da Ucrânia.

25 fevereiro
Partilha um vídeo nas redes sociais, feito por Inteligência Artificial, em que apresenta Gaza como um resort de luxo. Anuncia que a Casa Branca passaria a selecionar os jornalistas que acompanham as suas atividades.

26 fevereiro
Afirma que a União Europeia foi formada para “prejudicar os EUA”.

27 fevereiro
Declara que as tarifas sobre o México e o Canadá entrariam em vigor a 4 de março.

28 fevereiro
Recrimina publicamente Zelensky, na Sala Oval, quebrando, na prática, uma parceria de três anos entre Washington e Kiev.

3 março
Anuncia que vai suspender toda a ajuda militar dos EUA à Ucrânia.

4 março
Impõe tarifas de 25% sobre todas as importações do Canadá e do México e uma tarifa de 10% sobre todas as importações da China, criando ondas de choque na economia global.

5 março
Suspende as tarifas sobre os automóveis do Canadá e do México durante um mês.

7 março
Suspende temporariamente o acesso da Ucrânia às imagens de satélite dos EUA.

10 março
O secretário de Estado Marco Rubio declara que a Ucrânia deve estar preparada para ceder território à Rússia para alcançar a paz.

11 março
Notifica os canadianos de que devem registar-se quando atravessarem a fronteira com os EUA. Anuncia que os EUA vão retomar a ajuda militar à Ucrânia.

12 março
Entram em vigor as tarifas sobre as importações de alumínio e aço.

14 março
Anuncia a expulsão do embaixador da África do Sul em Washington.

16 março
Anuncia que o governo enviou centenas de pessoas acusadas de serem membros de gangues venezuelanos para El Salvador.

20 março
Assina uma ordem executiva com o objetivo de eliminar o Ministério da Educação.

24 março
Ameaça impor tarifas de 25% contra qualquer país que compre petróleo da Venezuela. Sabe-se que foram divulgados planos de guerra, pelo conselheiro de segurança nacional, num grupo do Signal, que incluía o jornalista Jeffrey Goldberg.

25 março
Ordena que os diplomatas no exterior examinem as redes sociais dos requerentes de visto para impedir a entrada nos EUA de suspeitos de criticar os EUA e Israel.

26 março
Anuncia que, a 3 de abril, entrarão em vigor tarifas de 25% sobre a importação de automóveis e respetivas peças. Cancela mais de 12 mil milhões de dólares em subsídios de saúde aos estados. Solicita ao Supremo Tribunal que autorize o cancelamento de subsídios para formação de professores. Cancela o financiamento a dezenas de estudos sobre vacinas.

28 março
Aproveita uma visita de JD Vance à Gronelândia para reiterar a sua intenção de se apoderar do território.

29 março
Demite quase todos os 10 000 funcionários do Instituto da Paz, em Washington.

30 março
Sugere bombardear o Irão, se o governo de Teerão não concordar com um acordo nuclear.

1 abril
Suspende dezenas de subsídios federais à Universidade de Princeton. Revoga o visto de Óscar Arias, Prémio Nobel da Paz que foi Presidente da Costa Rica, por este o criticar.

2 abril
Anuncia um pacote de “tarifas recíprocas” global que, rapidamente, desencadeia várias ondas de choque por todo o mundo.

4 abril
Com as bolsas em polvorosa, apela a Jerome Powell, presidente da Reserva Federal, para que corte as taxas de juro.

7 abril
Ameaça impor tarifas enormes à China como resposta à retaliação de Pequim. Corta o financiamento dos EUA ao Programa Alimentar Mundial.

8 abril
Assina várias ordens executivas destinadas a revitalizar a indústria do carvão.

9 abril
Anuncia a suspensão, por 90 dias, da maioria das “tarifas recíprocas”. O alívio, no entanto, não chega à China, que continua sujeita a tarifas de 125%.

10 abril
Demite o comandante da base aérea dos EUA na Gronelândia por este ser ter distanciado da visita de JD Vance, a 28 de março.

11 abril
Emite uma regra para isentar das tarifas produtos eletrónicos produzidos na China, como telemóveis e computadores pessoais.

13 abril
Classifica como “erro” o recente ataque aéreo da Rússia na Ucrânia.

14 abril
Anuncia o congelamento de um financiamento de dois mil milhões de dólares à Universidade de Harvard.

15 abril
Anuncia que pode avançar com a imposição de novas tarifas sobre medicamentos e ingredientes farmacêuticos importados. Aumenta os planos para fechar embaixadas e consulados pelo mundo.

17 abril
Promete negociar um acordo com a União Europeia sobre as tarifas.

18 abril
Anuncia que os EUA abandonariam os esforços para pôr fim à guerra na Ucrânia se as conversações não conseguissem progressos significativos nos próximos dias.

Palavras-chave:

É na escuridão que melhor se veem as estrelas que podem iluminar-nos o caminho. E é também nos momentos mais difíceis e inesperados que damos conta das nossas vulnerabilidades, dos erros que andamos a cometer, das certezas pouco sustentadas que adotámos como dogma e, no fundo, da nossa ínfima pequenez no mundo. Como também é nesses momentos que melhor percebemos a importância da vida em comunidade, do espírito de entreajuda, do insubstituível valor da confiança nos serviços, públicos ou privados, de que dependemos para viver em sociedade.

Apesar de alguma aflição momentânea, o apagão da rede ibérica de eletricidade, na segunda-feira, 28 de abril, teve uma virtude: obrigou-nos a refletir, nem que fosse fugazmente, sobre a nossa vulnerabilidade e a nossa dependência absoluta da eletricidade. E, ao contrário do que aconteceu nos momentos de isolamento durante a pandemia, desta vez a reflexão teve de ser imperiosamente individual – uma raridade nos tempos em que vivemos. Sem rede de telemóvel nem ligação à internet, o apagão obrigou a que essa reflexão fosse feita apenas com base naquilo que observávamos e vivíamos, sem sermos contaminados pelas “opiniões” habitualmente debitadas nas redes sociais à velocidade da luz – que, neste caso, estava apagada.

Era bom que não nos esquecêssemos desse momento e das lições que dele podemos retirar. Devemos lembrar-nos de que, por necessidade e absoluta ausência de alternativa, voltámos a valorizar, naquelas horas de maior preocupação, a importância de ter acesso a informação objetiva, factual e direta. Porque é a única que interessa e tem utilidade nas situações de crise, pois não há teoria de conspiração, por mais criativa ou “iluminada” que se apresente, que seja capaz de nos carregar a bateria do telemóvel, fazer funcionar a máquina de multibanco ou pôr as carruagens do metro a circular. Já a informação rigorosa, sem procurar o alarmismo, permite-nos ter noção da realidade e, com isso, tomar as melhores decisões.

Devemos lembrar-nos também de como um meio de comunicação social tão antigo como a rádio – tantas vezes adjetivado de obsoleto – continua a ter o poder e a capacidade de se tornar indispensável, em especial nas situações de emergência, como difusor da informação útil e necessária, sem a preocupação de agradar aos algoritmos que manipulam a nossa atenção. E como a realidade tem sempre uma força avassaladora, este apagão também nos ajudou a dar maior importância aos conselhos básicos de segurança, mesmo aqueles que podíamos classificar como anedota: afinal, agora já todos devem ter percebido a importância de ter um rádio a pilhas e a razão por que esse é um dos objetos do kit de emergência que, há poucas semanas, a Comissão Europeia aconselhou os cidadãos a terem, para estarem prevenidos e informados em cenários de guerra ou de outras catástrofes.

Este apagão demonstrou também, em plena campanha eleitoral, como é importante ter um Estado sólido e eficiente, dotado dos melhores profissionais para zelarem pelos equipamentos que servem o bem comum. Como as 11 horas sem eletricidade, as últimas já de noite, acabaram por ser mais uma manifestação eloquente de que Portugal é um país seguro, sem os níveis de criminalidade e de violência vociferados por alguns populistas, sempre a utilizar o medo como forma de criar o caos. Afinal, no meio do que poderia ser uma situação caótica, com muitos estabelecimentos comerciais fechados e muitas ruas vazias e sem luz, não se registou nada de anormal. Antes pelo contrário, foram muitas as demonstrações de solidariedade e de espírito de comunidade de que se teve conhecimento um pouco por todo o País.

Ao ocorrer em clima de campanha eleitoral, este apagão ajudou ainda, de uma forma ou de outra, a vincar diferenças na postura e no comportamento dos dois principais líderes políticos. Naturalmente, tanto Luís Montenegro como Pedro Nuno Santos tentaram aproveitar o momento para mostrar as suas habilidades políticas, ao verem-se confrontados com uma crise inesperada e grave. A avaliação do comportamento dos dois será feita pelos eleitores, a 18 de maio. Mas há uma pergunta que este “dia de reflexão”, suscitado pelo apagão, impôs claramente na agenda política: quem, numa situação de emergência, quer ter à frente do Governo? Ou seja: em quem confia quando as coisas correm mal? É essa a reflexão que este apagão devia iluminar. 

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A semana, entre feriados, começou com um apagão. Portugal, Espanha e outros países na Europa viram algo muito pouco comum, na forma de uma falha geral de energia. As pessoas ficaram sem o conforto e distrações a que se habituaram nos seus lares. As empresas e outras organizações (com exceção dos hospitais e outros serviços essenciais) reduziram a sua atividade e, em muitos casos, cessaram a sua atividade.

Cerca de doze horas depois da falha, que também afetou as telecomunicações, tudo parece ter voltado ao normal. O Governo e as entidades competentes farão agora o seu trabalho de descobrir as causas do acontecimento e sobretudo vão pensar em formas de que numa próxima vez, tudo possa correr melhor.

Aos consumidores comuns e aos empresários coloca-se a questão de pensar em alternativas. Uma delas, óbvia e muito usada, é a dos geradores, muitas vezes alimentados através de combustíveis que, num dia como o de segunda-feira, também podem não estar ao dispor. 

Outra passa por aproveitar um dos recursos que não faltam ao nosso país: o sol. O recurso a painéis solares com baterias, permite que particulares e empresas possam recolher energia solar e transformá-la em energia elétrica para seu uso, com a vantagem adicional de poder guardar energia, que, em caso de falha, possa servir como backup.

A energia solar, já se sabe há muitos anos, permite que cada um possa reduzir a sua dependência energética, ao mesmo tempo que poupa dinheiro, a médio prazo e poupa o ambiente, desde a primeira hora.

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A Sony Semiconductor Solutions Corp é o braço da Sony Group Corp na produção e comercialização de semicondutores. Agora, sabe-se que o grupo está a equacionar vender a sua posição neste segmento e o negócio pode mesmo ficar concluído ainda este ano, segundo fontes anónimas ouvidas pela Bloomberg. O objetivo da Sony passa por otimizar a sua operação e focar-se no entretenimento.

As deliberações estão a decorrer nesta altura e muito pode ainda mudar, especialmente se tivermos em consideração a volatilidade dos mercados trazidas pelas medidas de Donald Trump. A estratégia para já passa por distribuir a posição maioritária na unidade de semicondutores e depois manter uma posição minoritária depois da alienação.

Fonte oficial da Sony desmente o negócio, afirmando que “este artigo é baseado em especulação e não há quaisquer planos concretos”.

A unidade de semicondutores da Sony produz sensores de imagem que alimentam as câmaras de telefones da Apple e da Xiaomi, entre outros e rendeu, no último ano fiscal, cerca de 12 mil milhões de dólares. O crescimento tem vindo a abrandar devido à redução na procura global de smartphones e a aplicação das tarifas comerciais pelos EUA não pinta um cenário animador. A concorrência trazida pelos fabricantes chineses tem obrigado a baixar os preços e reduzir as margens, o que também ajuda a cimentar a decisão da alienação.

A margem de lucro desta unidade baixou de 25% para 10% nos últimos anos e, em sentido inverso, os segmentos de jogos e música lideraram o crescimento dos lucros, com 37% e 28% respetivamente no trimestre que terminou em dezembro.

Apesar de a Nintendo Switch 2 só chegar aos mercados dentro de um mês sensivelmente, há um jogador que já chegou ao final da nova versão de Breath of the Wild. O criador de conteúdos Ikaboze publicou um vídeo no YouTube no qual mostra o feito conseguido durante uma sessão de previsualização da Nintendo em Tóquio. Todos os que estiveram no evento puderam jogar uma demonstração do jogo durante dez minutos, tempo suficiente para Ikaboze realizar a façanha.

O criador precisou apenas de sete minutos para conseguir passar o título até ao fim e derrotar Ganon, na épica batalha final. O Engadget clarifica que isto não significa que Ikaboze tenha completado todo o jogo, operação que demora cerca de 23 minutos para os jogadores mais hábeis. Ao invés, Ikaboze carregou um ficheiro de autosave que fez surgir fora do Castelo Hyrule, onde imediatamente largou todo o equipamento e correu em direção a Ganon para o enfrentar (e derrotar).

Os funcionários da Nintendo terão reconhecido que Ikaboze foi o primeiro a concluir o jogo na versão de demonstração. Breath of the Wild e Tears of the Kingdom vão estar disponíveis para a Switch 2 logo na altura do lançamento da consola.