“Vamos lá?” Na consola, o cirurgião controla a lente e os instrumentos. Com uma visão tridimensional do campo cirúrgico, avalia e age quase como se estivesse dentro do corpo. Os movimentos das suas mãos traduzidos em impulsos são transmitidos às pinças dos braços robóticos, que executam as ordens do médico através de pequenos orifícios introduzidos na barriga do doente. Kris Maes, coordenador do Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva do Hospital da Luz, em Lisboa, e pioneiro da cirurgia robótica mundial, prepara-se para fazer uma prostatectomia (remoção da próstata), através de cirurgia robótica, num paciente de 68 anos com um tumor de 11 milímetros.

“Como se trata de um tumor de alto risco, e apesar de os exames terem mostrado que não metastizou, temos de tirar a próstata e os gânglios linfáticos”, explica. Uma intervenção muito frequente (até ao final da semana, ainda vai fazer mais sete destas), mas sempre única, delicada e complexa porque “temos de preservar nervos fundamentais”.

Ao longo de mais de três horas, tudo decorre sem sobressaltos. Os braços robóticos cumprem os comandos dados pelo cirurgião na consola, assistido por uma equipa de mais dois cirurgiões, um anestesista e três enfermeiros. Primeiro, é preciso abrir caminho até ao tumor, só depois cortar e colar. Nos ecrãs, a visibilidade e a nitidez dos órgãos são impressionantes. Há que afastar, dissecar, drenar, garrotear, cortar, coser, limpar, eliminar… Com a precisão e a flexibilidade dos movimentos das pinças, tudo parece fácil, natural, senão mesmo intuitivo. “Quase nem precisamos de falar”, nota Kris Maes que, em 2010, veio da Bélgica para estrear a cirurgia robótica em Portugal.

Hoje, a urologia representa 75% da cirurgia robótica deste centro do Hospital da Luz, com o cancro da próstata à frente. Mas também há intervenções regulares de cirurgia geral, ginecologia e operações torácicas. No total, já são feitas anualmente cerca de 400 cirurgias robóticas neste hospital – no ano passado realizaram-se 397, uma média de 33 por mês. “Isto é o futuro da cirurgia? Não, isto é o presente! É assim que se opera em todo o mundo”, garante, Kris Maes.

Operando com o “Da Vinci” – A equipa do cirurgião Kris Maes prepara-se para fazer uma prostatectomia (remoção da próstata), através de cirurgia robótica, num paciente, de 68 anos, com um tumor de 11 milímetros. Foto: Luís Barra

Uma opinião partilhada por todos os que conhecem de perto as “enormes vantagens” desta tecnologia. Hugo Pinto Marques, diretor de Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática do Hospital Curry Cabral, fala da robótica como “o futuro da ciência”, convicto de que se trata da “maior evolução que a cirurgia teve nas duas últimas décadas”

E Margarida Martinho, responsável pela Unidade de Endoscopia do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Hospitalar São João, garante que “o futuro passará pela cirurgia robótica” e que “nada vai voltar atrás”.

Isto é o futuro da cirurgia? Não, é o presente! É assim que se opera em todo o mundo

Kris Maes, Coordenador do Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva, do Hospital da Luz

Também Javier Gallego-Poveda, coordenador de Cirurgia Torácica do Hospital Lusíadas Lisboa, está certo de que “no futuro, a maioria das especialidades que realizam cirurgias videoassistidas adotarão a robótica”, enquanto António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, diz que “a robotização na cirurgia veio para ficar”.

Dentro de um filme

Mas quais as razões de tanto entusiasmo e de tantas certezas? As vantagens da cirurgia robótica são, efetivamente, muitas: é mais precisa e segura, menos invasiva e dolorosa. Tudo graças à imagem (uma visão tridimensional aumentada dez vezes permite uma perceção de profundidade e detalhes muito mais precisos do que as visualizações bidimensionais convencionais), aos movimentos (com uma amplitude de 540 graus, que excede a capacidade da mão humana) e a uma gama de instrumentos cirúrgicos especializados que podem ser trocados facilmente e controlados com grande destreza. Tudo isto junto oferece-nos imensas possibilidades, da resolução de problemas complexos à redução de riscos.

Foto: Luís Barra

“O robot permite-nos fazer movimentos muito mais amplos, elimina o tremor e a precisão é enorme”, resume o cirurgião Hugo Pinto Marques, destacando ainda a “capacidade de ampliação da imagem e o uso de contrastes visuais que nos permitem ver coisas que o olho humano não consegue ver sozinho”. A isto, prossegue, junta-se “a possibilidade de haver uma agressão mínima”, exemplificando: “Numa cirurgia tradicional, podemos ter de fazer uma abertura grande no abdómen (de 20 centímetros ou mais) e isso dificulta muito a recuperação; enquanto aqui, a cirurgia é toda feita por cinco orifícios e, por isso, a recuperação é muitíssimo mais rápida. E não se trata apenas da recuperação física do doente, mas da capacidade de todo o organismo recuperar, porque não é submetido a uma agressão cirúrgica tão grande.”

Javier Gallego, também diretor da UMICS (Unit for Minimally Invasive Cardiothoracic Surgery), destaca igualmente esta capacidade de recuperação. “Os benefícios para os pacientes submetidos à cirurgia robótica incluem menor dor pós-operatória e menor tempo de internamento, com um retorno rápido às atividades diárias”, diz, para adiantar que mesmo “nos procedimentos que requerem sutura interna, como na cirurgia valvular mitral ou na cirurgia dos brônquios, a tecnologia robótica permite uma precisão de movimentos mais elevada e uma maior facilidade na realização das suturas”.

Fomos pioneiros ao realizar a primeira cirurgia de reparação valvular mitral em Portugal, há cerca de dois anos

Javier Gallego-Poveda, Coordenador de Cirurgia Torácica do Hospital Lusíadas, Lisboa

O “rigor técnico e a personalização dos gestos cirúrgicos” que permitem obter “melhores resultados clínicos e menor taxa de complicações para os pacientes” são igualmente referidos por António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, que considera ainda a robotização uma forma de atrair profissionais. “O investimento na evolução tecnológica dos serviços clínicos e hospitais é, sem dúvida, uma forma de cativar profissionais de saúde a manterem-se no Serviço Nacional de Saúde.”

“Não é só comprar o avião”

Independentemente dos avanços e das vantagens, há que ter em atenção que a robótica, só por si, não faz milagres. Kris Maes, perito e instrutor em formação robótica, não se cansa de sublinhar que “há uma curva de aprendizagem muito grande e difícil” e que “é muito importante ter profissionais bem treinados”. Porque, justifica, “a máquina não faz tudo sozinha”, tem de ser devidamente comandada

“Não é só comprar o avião, tem de se ensinar o piloto a comandar o avião.” Ou, recorrendo a outra imagem, “eu tenho de ter experiência suficiente para conhecer o carro e, assim, poder dar atenção ao trânsito, isto é, poder concentrar-me naquilo que é importante”, diz o coordenador do Robotic Fellowship Program no Hospital da Luz, Lisboa.

“Temos de investir muito em formação e exigir mais”, insiste o urologista. Afinal, “a cirurgia robótica só tem vantagens se alguém a fizer bem” e “tudo depende de quem a faz e de como a faz”. Infelizmente, aponta, “às vezes, subestima-se a aprendizagem”, lembrando, por exemplo, que “para fazer bem uma prostatectomia difícil são precisos muitos anos de trabalho”. Refira-se, aliás, que, no caso da cirurgia robótica, a prática pode mesmo ser ganha sem riscos – o Da Vinci integra um simulador que permite ao médico operar (e treinar) num corpo virtual.

Maes, que dirige aquele que é o único centro da Península Ibérica com graduação em Cirurgia Robótica e formação certificada pela Associação Europeia de Urologia, já ensinou muitos profissionais de todo o mundo. Naquele dia, no bloco operatório do Hospital da Luz, são dois urologistas brasileiros que lhe seguem, atentos nos ecrãs, as indicações e o curso das mãos. “Viemos aprender técnicas inovadoras, outras rotinas… E tem sido muito útil e positivo”, diz Vítor Pereira, no Hospital Roberto Santos, na Bahia, enaltecendo as “grandes qualidades” do mestre.

Já a ginecologista Margarida Martinho começa por sublinhar a capacidade de imersão. “É quase como um filme 3D… e nós sentimo-nos dentro do filme.” Uma visão “muito mais precisa e ampliada, que faz com que a avaliação seja amplamente melhorada”, nota. Por outro lado, prossegue, “o facto de manipularmos os comandos robóticos, permite-nos simular e até ampliar os movimentos que fazemos com a mão e o punho”. E como temos “movimentos que saem o mais natural possível, uma liberdade de ação e uma amplitude maiores, a manipulação dos tecidos torna-se mais precisa e mais segura”.

A propósito, realça também a importância dos “sistemas de segurança”. E exemplifica: “Se o robot deteta movimentos imprevistos e que possam ser arriscados para o doente, bloqueia o movimento das pinças. E se, por qualquer motivo, o cirurgião deixa de ter atenção ao campo cirúrgico e retira a cabeça da consola, o sistema bloqueia.” Além disso, prossegue, temos ainda o conforto do médico. “Estamos sentados e ergonomicamente instalados, podemos parar e descansar, enquanto cirurgias muito prolongadas e complexas podem ser procedimentos muito cansativos.” E isto é bom para todos porque “o doente beneficia sempre de um médico mais capaz, mais atento e a operar com maior conforto”.

Acresce ainda que esta técnica permite o acesso a zonas difíceis. “A laparoscopia já foi um avanço em relação à cirurgia aberta, mas aqui há um avanço ainda maior”, nota a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, sublinhando que “territórios de muito difícil acesso tornam-se mais facilmente acessíveis”. A par disto, a robótica pode ajudar a resolver casos “com um elevado grau de complexidade, por exemplo, histerectomias em que o útero é muito volumoso”.

Amplitude de movimentos – Uma cirurgia ao fígado no Hospital Curry Cabral. Foto: Marcos Borga

Da ficção para a realidade

O mesmo acontece na urologia. “Tenho doentes que foram recusados em cinco hospitais por terem um problema impossível de resolver por via convencional”, conta Kris Maes, contrariando assim a ideia por vezes difundida de que a cirurgia robótica só trata “casos fáceis”. Porque, concorda, “aqui somos capazes de chegar a sítios que seriam pouco acessíveis com as nossas mãos”. Por outro lado, acrescenta, a robótica pode ter vantagens na preservação das funções orgânicas, facto particularmente importante, por exemplo, numa remoção da próstata, em que o corte acidental de um nervo pode originar problemas de incontinência e impotência sexual.

Apesar de pouco conhecida para grande parte da população, há muito que a cirurgia robótica deixou de ser ficção. A ideia de criar uma máquina cirúrgica capaz de executar tarefas normalmente realizadas por mãos humanas surgiu há mais de 60 anos nos Estados Unidos da América, na altura pensada para permitir o tratamento de soldados feridos no campo de batalha. No entanto, o projeto não foi adiante devido a limitações técnicas e dilemas éticos, e o conceito só reapareceria 30 anos depois.

A ginecologista Margarida Martinho que sublinha a capacidade de imersão: “É quase como um filme 3D… e nós sentimo-nos dentro do filme”. Foto: Marcos Borga

Em 1999, a Intuitive Surgical, fundada na Califórnia, introduziu no mercado o primeiro e único sistema robótico cirúrgico (apelidado Da Vinci, em homenagem ao cientista italiano que já em 1400 idealizara um engenho automático). Um ano depois, tornou-se o primeiro sistema certificado pelo regulador americano para cirurgia geral, torácica, cardíaca, vascular, urológica, ginecológica e otorrinolaringológica.

Atualmente, contabilizam-se mais de 14 milhões de intervenções feitas em todo o mundo com este robot (o mais avançado e utilizado), que já vai na sua quarta versão. Segundo dados da Excelência Robótica, que comercializa o Da Vinci na Península Ibérica, só no ano passado realizaram-se mais de 2,2 milhões de cirurgias, números que refletem um crescimento fulgurante. E Portugal tem vindo a acompanhar a onda.

Em 2023, ainda de acordo com aquela empresa, foram realizadas por cá mais de duas mil cirurgias, das quais 54% em urologia, 29% em cirurgia geral, 11% em ginecologia e 6% em cirurgia torácica, indicadores que refletem um aumento de 25% em relação a 2022.

“Eles sabem o que fazem!”

Maria José Guerreiro, 66 anos, foi referenciada para o Hospital Curry Cabral para uma cirurgia oncológica complicada ao pâncreas. Quando soube que ia ser operada por um robot ficou um pouco apreensiva, mas confiou

A descoberta, há cerca de dois meses, de um tumor maligno no pâncreas obrigou à realização de uma cirurgia oncológica curativa. “Foi sujeita a uma pancreatectomia corpo-caudal com esplenectomia, ou seja, retirámos o corpo e a cauda do pâncreas”, explicou-nos o cirurgião Emanuel Vigia. Uma intervenção delicada. “Mexer no pâncreas é sempre uma cirurgia complexa porque é um órgão escondido, e para lá chegarmos é preciso tirar alguns órgãos da frente.”

Felizmente, Maria José teve a sorte de ser operada por um robot: 48 horas depois da pancreatectomia, conversou connosco na sala de estar do hospital. “Sinto-me muito bem”, diz, com um largo sorriso. Sem dores, animada e, sobretudo, muito grata pelos cuidados “excecionais” de médicos e enfermeiros.

Confessa que quando soube que ia ser operada por um robot, ficou “um pouco apreensiva”, mas depressa sossegou. “Fui à internet pesquisar, percebi que era uma coisa boa, e fiquei muito calma”, conta. Do que leu e ouviu, concluiu que o robot era capaz de chegar “onde a mão humana não chega”. E confiou em pleno. “Eles sabem o que fazem!”, pensou.

Tranquila – “não estava nervosa nem nada assustada” – mas curiosa, a primeira coisa que fez quando entrou no bloco operatório foi procurar o robot. “E lá estava ele, todo branquinho”, recorda. Disseram-lhe que a recuperação ia ser muito boa, mas nunca se imaginou “tão bem” passado tão pouco tempo. “Não tenho dores, já me levanto sozinha, só tenho uns furinhos na barriga… E em breve vou poder fazer a minha vida normal”, diz, reconhecendo a “sorte”, ou mesmo o privilégio, de ter sido contemplada com uma cirurgia robótica.

Pablo Diaz, diretor-geral da Excelência Robótica, diz que “embora Portugal esteja numa fase de adoção da tecnologia mais atrasada do que se verifica em Espanha, regista uma dinâmica muito semelhante à que se verificou, anteriormente, no país vizinho”, com os primeiros sistemas robóticos Da Vinci a serem inicialmente instalados nos sistemas de saúde privados e só mais recentemente a chegarem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Atualmente, revela, muitos hospitais estão em processo de concurso para integração de sistemas robóticos, o que significa que a utilização de cirurgia robótica está a arrancar rapidamente no País.”

Uma aposta confirmada pelo próprio diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, ao anunciar, em dezembro passado, a compra de seis novos robots cirúrgicos, o que fará aumentar de dez para 13 o número total destes equipamentos no serviço público. Esta “aquisição inovadora”, pode ler-se em comunicado, vai permitir a Portugal “dar um salto tecnológico nesta dimensão”.

O caminho começou em 2010, quando Kris Maes foi convidado a deixar o Hospital de Sint-Blasius, na Bélgica, para estrear o primeiro robot cirúrgico em Portugal, no Hospital da Luz, e formar médicos. “Na altura, ainda ninguém acreditava em cirurgia robótica”, recorda o renomeado urologista, confessando que “levou muito tempo a convencer o mundo cirúrgico” de todo o planeta para as potencialidades da robótica.

Menos cicatrizes – As pinças dos braços robóticos executam as ordens do médico, através de pequenos orifícios introduzidos na barriga do doente. O corpo vai recuperar muito mais facilmente porque foi menos agredido. Foto: Marcos Borga

Depois do Hospital da Luz, foi a vez de a Fundação Champalimaud adquirir um Da Vinci, em 2015, a que se seguiram a CUF Infante Santo (hoje Tejo) e o Hospital da Luz Arrábida, em 2016. Em 2019, a plataforma robótica chegou ao SNS graças a uma doação da Fundação Aga Khan ao Hospital Curry Cabral, em 2021 ao Hospital Lusíadas Lisboa e, no ano passado, ao Hospital de São João e à CUF Porto.

Ainda em 2023, o Curry Cabral recebeu um segundo robot, constituindo-se assim um Centro de Cirurgia Robótica da ULS São José (onde, só em 2023, já se realizaram cerca de 500 cirurgias). Além do Da Vinci, outros modelos têm chegado aos hospitais portugueses, como são os casos do Hugo, desenvolvido pela Medtronic, e do Rosa, da Zimmer Biomet, instalados no Hospital de Santo António, no Porto.

Remoção e reconstrução

Mesmo não sendo compatível com todas as especialidades nem podendo resolver tudo (há operações que vão continuar a ser feitas pela cirurgia convencional), a verdade é que a cirurgia robótica tem vindo a expandir-se em Portugal. Da cirurgia geral à torácica, passando pela urologia, a ginecologia, a obesidade ou a ortopedia, são muitas as áreas a beneficiar desta tecnologia avançada. Nas mais variadas situações. Vejamos apenas alguns exemplos.

No pioneiro Centro de Cirurgia Robótica e Minimamente Invasiva do Hospital da Luz, é usada sobretudo em urologia para remover cancros da próstata (70% da cirurgia robótica oncológica), mas também do rim e da bexiga, além da reconstrução da bexiga ou da hipertrofia benigna da próstata. Mas há mais. “Obesidade, cancro do reto, cirurgia hepática e cardíaca, ginecologia oncológica…”, enumera Kris Maes.

O robot permite-nos fazer movimentos muito mais amplos, elimina o tremor e a precisão é enorme

Hugo Pinto Marques, Diretor de Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática do Hospital Curry Cabral

Já no Curry Cabral, Hugo Pinto Marques, diretor da Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática, estabeleceu inicialmente como áreas “prioritárias para o desenvolvimento da robótica” as cirurgias colorretal, da obesidade (sobretudo o bypass gástrico) e a hepática. A par disto, e à medida que o programa evoluiu, introduziram-se outras especialidades como a torácica, a ginecológica e a do pâncreas.

Referência nacional e internacional na cirurgia hepática, o Curry Cabral acabou por ser “pioneiro em certas intervenções ao fígado com robot, como a cirurgia dos tumores das vias biliares e a reconstrução de veias no fígado, e neste momento somos o centro da Europa que faz mais cirurgias de robótica”, revela o médico, adiantando que só no ano passado “foram operados, por robot, 100 doentes ao fígado”. Um recorde saboreado no dia 5 de fevereiro com mais um feito nesta especialidade: o primeiro transplante hepático da Europa (e o segundo no mundo) por cirurgia robótica.

Quase ao mesmo tempo, o Curry Cabral era ainda palco de outra estreia: a realização da primeira cirurgia robótica pediátrica em Portugal. Dirigida por Sofia Ferreira Lima, responsável pelo departamento de Cirurgia Pediátrica do Hospital de D. Estefânia, a intervenção (uma pieloplastia desmembrada) consistiu em eliminar uma obstrução que impedia a saída de urina do rim numa jovem de 17 anos, que “pela circunstância de estar a tirar o curso de bailarina, apresentava todas as vantagens em ser operada com recurso a robótica”.

No Hospital de São João, no Porto, que só estreou o seu programa robótico no início do ano passado, também já se fazem intervenções de urologia, ginecologia, colorretal, hepatobiliar e esófago-gástrica.

Margarida Marinho, responsável pela Unidade de Endoscopia do Serviço de Ginecologia daquele hospital, conta que “a ginecologia fez a sua primeira cirurgia robótica em março e, desde então, temos vindo a crescer em número”, com uma média de uma a duas cirurgias robóticas por semana de patologia ginecológica benigna e oncológica, do cancro à endometriose, passando pelo prolapso vaginal.

Também no Porto, mas desta vez do Hospital de Santo António, são os robots Hugo e Rosa a revolucionar os blocos operatórios. O primeiro serve a urologia, a ginecologia e a cirurgia geral em doenças como o cancro de próstata, rim ou colorretal, obesidade e hérnias da parede abdominal; o segundo dedica-se à prótese total do joelho (a intervenção mais regular), mas também a cirurgias ortopédicas da anca e da coluna vertebral.

“Em 2023 (praticamente nos últimos três meses) foram realizadas 30 próteses totais de joelho com apoio de robot, estando prevista para 2024 a realização de cerca de duas centenas, e esperando-se um incremento sustentado nos anos seguintes, substituindo progressivamente as cerca de cinco centenas realizadas anualmente pelo método tradicional”, diz António Oliveira, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António.

A cirurgia cardiotorácica é outra especialidade a beneficiar deste avanço. Javier Gallego conta que foram “pioneiros ao realizar a primeira cirurgia de reparação valvular mitral em Portugal, há cerca de dois anos” e, desde então, os casos multiplicaram-se, do bypass coronário às patologias congénitas, passando pelo cancro do pulmão ou os defeitos do septo interauricular.

No âmbito da cirurgia pulmonar, prossegue, “destaca-se a grande inovação na técnica Uniportal RATS, que consiste na utilização de uma única incisão de três centímetros para inserção dos braços robóticos, em contraponto às quatro ou cinco incisões que são realizadas nas técnicas convencionais”. Técnicas “inovadoras e menos invasivas” que lhe valeram recentemente dois prémios internacionais em cirurgia cardiotorácica e cardiovascular.

Inteligência Artificial para breve

Rendidos às inúmeras vantagens da robótica nos blocos operatórios, os cirurgiões anteveem novos desenvolvimentos e potencialidades.

É o caso da cirurgia à distância, uma realidade que parece cada vez mais próxima – recentemente, um minúsculo robot criado para fazer cirurgias em microgravidade, conseguiu concluir com sucesso a sua primeira demonstração na Estação Espacial Internacional.

O investimento na evolução tecnológica é, sem dúvida, uma forma de cativar profissionais de saúde a manterem-se no SNS

António Oliveira, Diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar Universitário de Santo António

O SpaceMIRA (sigla em inglês de Assistente Robótico In Vivo Miniaturizado) realizou várias operações em tecidos simulados no laboratório orbital enquanto era controlado por cirurgiões a aproximadamente 400 quilómetros abaixo, em Lincoln, no Nebraska. Uma conquista valiosa para expandir as opções cirúrgicas na Terra, bem como em áreas rurais ou campos de batalha. Refira-se que um dos grandes desafios ao tentar controlar um robot no Espaço a partir da Terra era a chamada latência (atraso de tempo entre o envio do comando e a sua receção pelo robot), que desta vez foi apenas de 0,85 segundos, margem considerada muito aceitável pelos especialistas.

O corpo num ecrã – Um pormenor da remoção de um adenoma de seis centímetros no fígado por cirurgia robótica, no Curry Cabral, com Hugo Pinto Marques, diretor da Cirurgia Geral e da Unidade Hepatobiliopancreática. Foto: Marcos Borga

A par disto, a indústria, de mãos dadas com a Ciência, tem vindo a trabalhar no desenvolvimento de novos equipamentos. No último congresso da Sociedade internacional de Cirurgiões Robóticos (SRS), realizado no ano passado, na Austrália, foram apresentados cerca de 50 robots, a maior parte deles cirúrgicos, prova de que “o futuro da medicina passa pela robótica”, garante Kris Maes. E não exclusivamente cirúrgica. “Há robots para oftalmologia, para a próstata, para o pulmão, para dirigir colonoscopias, para tirar cálculos renais, até está a ser desenvolvida uma ressonância magnética que define as lesões e faz biópsias e que pode ser usada no consultório”, revela o urologista, representante europeu no encontro. “A robótica é o grande avanço dos últimos anos e vai continuar a evoluir”, garante, convicto.

Uma evolução que contará inevitavelmente com o contributo da Inteligência Artificial (IA). E que, garante, trará ao cirurgião “uma grande ajuda”. Por exemplo, “o robot pode interpretar imagens e enviar-nos alertas, avisar de que não podemos cortar determinado nervo”. Tudo isto, obviamente, “com muito controlo” porque “não podemos dar autoridade indefinida à IA”, defende o pioneiro da urologia robótica.

Também Hugo Pinto Marques prevê a introdução da IA – que, reconhece, terá de ser “mais regulada” – e admite que o robot “vai provavelmente tornar-se autónomo em alguns tipos de intervenções estandardizadas”, ainda que o médico vá ter sempre “o papel do controlo de qualidade”.

Quanto ao resto, permanece a incógnita. Apesar de estarem a aparecer outros robots “francamente promissores” e de a IA parecer incontornável, “é difícil prever o que o futuro nos reserva”. Uma coisa, essa, parece certa. A cirurgia robótica veio para ficar… e está imparável. “Talvez não haja ainda evidência científica dos benefícios nalgumas áreas, mas quem tem experiência em robótica e quem percebe a qualidade com que as cirurgias se fazem, percebe que isto é o futuro.”

Dois dias depois desta conversa, num dos blocos operatórios do Curry Cabral, a remoção de um adenoma de seis centímetros no fígado por cirurgia robótica, uma intervenção aparentemente simples, acaba por se prolongar. Um fígado gordo e volumoso e um tumor localizado num “sítio complicado” obrigam a outros procedimentos e manobras de prevenção porque “o fígado é um órgão com uma rede vascular complexa e temos de evitar complicações no pós-operatório”, explica Pinto Marques, enquanto dirige os comandos na consola.

Apesar dos imprevistos, não há sustos nem hesitações, com as pinças mecânicas a cumprirem as ordens do cirurgião. “Vamos lá pôr o fígado no sítio!” Ao fim de mais de três horas, está tudo a postos para finalizar. Parte do fígado e a vesícula são colocados num saco para serem extraídos por uma pequena incisão no baixo-ventre.

Um pouco acima, só os orifícios dos braços robóticos deixarão uma marca ténue na barriga da paciente. Que, muito em breve, poderá ir para casa. Sem dores, grandes costuras ou riscos de complicações.

“A robotização é imparável”

Pablo Díez, diretor-geral da Excelência Robótica, empresa responsável pelo Da Vinci em Portugal, antevê um futuro promissor para a cirurgia robótica

Como é que a robótica pode beneficiar o rendimento do médico?
A cirurgia robótica Da Vinci pode ser muito eficiente, uma vez que aumenta a autonomia do cirurgião, permitindo-lhe controlar mais instrumentos, a câmara e um braço robótico adicional. Juntamente com as tecnologias avançadas à disposição do cirurgião, permite-lhe aceder a espaços mais pequenos e realizar cirurgias mais complexas que são impossíveis de realizar com outros tipos de técnicas.

Que avanços se esperam?
A robotização das salas de operações é imparável. Prevê-se que o mercado quintuplique nos próximos anos, liderado pelas empresas com capacidade de inovar constantemente e de criar valor para os doentes, profissionais médicos e sistemas de saúde. Gradualmente, assistiremos ao aparecimento de modelos de robots adaptados a várias patologias. A cirurgia com o sistema robótico Da Vinci irá evoluir para se tornar a técnica de eleição para muitas mais patologias.

O que está a ser investigado?
As investigações são realizadas pelo fabricante, Intuitive Surgical, que atualmente está a investir em ferramentas de Inteligência Artificial (IA) que ajudem o cirurgião na tomada de decisões, bem como no âmbito da cirurgia guiada, no qual, através de imagens, modelos, marcadores e outros elementos, poderão realizar-se cirurgias de forma mais rápida, precisa e segura.

O que podemos esperar com a aplicação da IA?
Avizinham-se progressos imparáveis na digitalização dos dados e nos sistemas de Big Data, bem como na aplicação da IA ao diagnóstico e à telemedicina. A IA trará diferentes ajudas ao cirurgião para conseguir cirurgias mais rápidas, mas também mais seguras, sistemas de navegação que identificam estruturas ou analisam dados em tempo real e que podem sobrepor modelos anatómicos à visão da consola. Por outro lado, outras tecnologias de diagnóstico precoce facilitarão tratamentos menos invasivos e mais económicos para os doentes. Estes avanços contribuirão para tornar mais eficiente o recurso mais escasso do sistema de saúde português durante a próxima década: os profissionais de saúde.

Robot e médico vão sempre complementar-se?
O robot é uma ferramenta que necessita sempre de um cirurgião experiente e capacitado. A robótica irá progredir ao longo dos anos e serão implementadas grandes melhorias na robótica, mas, na medicina, o cirurgião acabará sempre por tomar as decisões e a robótica fornecerá ajudas que lhe concederão uma melhor forma de tomar essas decisões.

Reportagem publicada na VISÃO Saúde nº 34, de fevereiro/março 2024

De acordo com as recentes previsões da Meteored Portugal, o mês de abril deverá ficar marcado por uma instabilidade do estado do tempo que se prolongará até à semana da Páscoa. As próximas semanas voltam a ser de grande instabilidade atmosférica, com períodos de chuva intensa e vento forte.

Os efeitos da primeira tempestade de abril (a 14.ª do ano), batizada de Nuria, já estão a fazer-se sentir em Portugal continental – com chuva ligeira e nebulosidade por todo o País – e deverão intensificar-se amanhã e permanecer até sábado. No entanto, esta não será a única tempestade prevista para este mês.

Como vai estar o tempo na Páscoa?

Para a semana da Páscoa – entre 14 a 20 de abril -, Alfredo Graça, geógrafo e editor-chefe da Meteored Portugal revela que poderá existir alguma instabilidade, com anomalias de precipitação positivas em todo o Continente e Arquipélago da Madeira. Deverá ocorrer mais precipitação nas Regiões Norte e Centro e para algumas zonas a sul do rio Tejo.

Já as temperaturas em abril costumam ser mais elevadas, apesar de as noites ainda serem frescas. Para a semana festiva estão previstas temperaturas dentro do normal para a época do ano, excepto para os distritos de Castelo Branco, Portalegre, Évora, Beja, Faro e algumas ilhas dos Açores, que deverão registar anomalias negativas de temperatura, ou seja, ligeiramente mais frias do que o habitual.  

O ministro dos Assuntos Parlamentares anunciou esta quarta-feira, através de um artigo de opinião publicado do Jornal de Notícias, que é o candidato do PSD à Câmara Municipal do Porto nas eleições autárquicas. “Hoje anuncio, por isso, a minha candidatura à presidência da Câmara Municipal do Porto. Faço-o com sentido de missão, com entusiasmo e com a felicidade inédita de quem partilha um sonho antigo: o sonho de entregar-me à construção de um Porto ainda mais humano, dinâmico e próspero, onde todos possam viver tranquilamente e com dignidade”, escreveu.

No artigo, o governante salientou que a sua candidatura não é sobre ele próprio, mas sobre todos os portuenses. “Esta candidatura não é sobre mim, é sobre todos nós. Juntos, podemos construir uma cidade mais inclusiva, mais preparada, mais competitiva”, disse. 

Duarte mencionou ainda os desafios que considera serem mais urgentes na cidade, incluindo a segurança, a mobilidade e a habitação. “Na última década, testemunhámos uma vertiginosa transformação na cidade. A adaptação contínua a essa mudança exige imaginação, audácia e, sobretudo, humanidade. A segurança, com criminalidade inaceitável; a mobilidade, com trânsito intolerável; e a habitação, com preços incomportáveis, são desafios urgentes que exigem respostas novas e eficazes”, referiu.

Além de Pedro Duarte, estão também na corrida pela Câmara Manuel Pizarro (PS), Diana Ferreira (CDU), Miguel Côrte-Real (Chega), Aníbal Pinto (Nova Direita) e os independentes Nuno Cardoso e Tino de Rans.

As eleições devem decorrer entre 22 de setembro e 14 de outubro de 2025.

A Vasco Electronics tem um novo tradutor universal. Desta vez, a empresa tenta capitalizar a popularidade dos auriculares sem fios para criar um produto de tradução que se apresenta como prático e discreto. Mas será o Vasco Translator E1 eficaz?

Antes de acordarmos o poliglota que há em nós, vale a pena dedicar algumas frases ao hardware. Pois deste ponto de vista, a tecnológica polaca teve uma abordagem original. A caixa do Vasco E1 tem a forma de um triângulo (de linhas arredondadas) que ocupa praticamente toda a palma da mão. O estojo está, no entanto, longe de ser fino, tendo uma espessura equivalente à de três ou quatro smartphones, o que significa que não poderá guardá-la no bolso das calças (mas num casaco ou mochila, sim). Esta caixa é, na realidade, composta por duas partes fixadas por um sistema magnético – quando aberta, revela um auricular em cada uma das metades.

Vasco Translator E1

A ideia, enquanto dispositivo tradutor, é simples: o utilizador fica com um auricular e entrega o outro à pessoa com quem pretende falar. Cada auricular, feito em plástico, tem um pequeno LED que pisca a azul enquanto o emparelhamento com o smartphone não estiver completo. Para utilizar o Vasco E1, vai precisar da aplicação Vasco Translate. Assim que tiver a app, o reconhecimento do dispositivo será automático e só tem de seguir as instruções dadas no smartphone para fazer a configuração (sem o smartphone, não há traduções).

Assim que o processo estiver concluído, aconselhamo-lo a alterar a cor do LED dos auriculares – desta forma saberá sempre qual o seu e qual deve entregar ao outro interlocutor. É também através da aplicação para smartphone que definimos os idiomas da conversa – no nosso, devemos indicar a nossa língua materna; no secundário, devemos indicar a língua que queremos ver traduzida.

Vasco E1: Feito para partilhar

A Vasco optou pelo design certo, criando um auricular de formato aberto (pousa sobre a orelha, mas nunca entra no ouvido), o que segundo a marca é uma opção mais higiénica para um dispositivo que é suposto ser usado por mais do que uma pessoa. Concordamos a 100%.

Depois começa uma espécie de dança linguística. Para que o equipamento possa perceber de forma ordeira quem está a dizer o quê, a predefinição é que cada um dos interlocutores tenha de ativar o modo ‘falar’. Cada auricular tem, na zona que fica em contacto com a cara, um botão de borracha de grande dimensão. A ideia é que o utilizador possa pressionar o auricular contra a cara/orelha, ativando o botão, mas sem magoar o utilizador. No entanto, a nossa experiência prática não foi assim tão simples. A resposta física do botão é pouco pronunciada, o que significa que por vezes pressionamo-lo, mas não volta logo à posição inicial. Além disso, por mais do que uma vez julgamos estar a pressionar corretamente o botão, quando isso não estava a ser feito, o que faz o sistema perder parte da conversa.

Para ajudar nesta questão, o Vasco E1 inclui um sinal sonoro que avisa o utilizador sobre quando começou a captação de áudio e quando a mesma foi interrompida. Ainda assim, numa futura geração, estes botões precisam de ser revistos e melhorados (um botão físico exterior faria mais sentido). De sublinhar que cada auricular tem ainda dois botões físicos para controlo de volume, uma adição útil, pois falar numa sala de reuniões com alguém é muito diferente de fazê-lo num restaurante.

Vasco Translator E1

Sobre a qualidade de som propriamente dita, conseguimos ouvir sempre tudo com boa nitidez e definição, pelo que não será pela componente de áudio que ficará sem perceber o que as pessoas estão a dizer. A marca avisa, no entanto, que os dois auriculares nunca devem estar a mais de dez metros um do outro – caso contrário, perde-se força da ligação (para o smartphone, neste caso), o que significa traduções incompletas. 

Meter a conversa em dia

Fizemos diferentes experiências com o Vasco E1 para atestar a eficácia das traduções. Experimentamos em conversa com outra pessoa, mas também colocamo-lo à prova com traduções de pessoas nativas noutras línguas, algo que fizemos através de vídeos com áudio de boa qualidade do YouTube, e através do modo multilingue do ChatGPT. A grande conclusão a tirar da eficácia do sistema de tradução é que é muito boa… dependendo do idioma.

Apesar de a Vasco Electronics dizer que suporta 51 idiomas com estes auriculares (e de efetivamente termos conseguido traduções em idiomas menos comummente falados, como islandês, grego, turco, árabe e dinamarquês), pareceu-nos claro que  a eficácia das traduções é melhor nos idiomas ‘populares’ como inglês, espanhol, francês e alemão. E também ficamos com a certeza que a qualidade do falante influencia o resultado da tradução – quanto mais ritmada for a conversa (não tanto em termos de velocidade, mas mais em termos de estrutura bem delineada das ideias e frases), melhor será o resultado. Isto nota-se, por exemplo, quando é preciso traduzir uma frase mais demorada (é muito fácil alguém ficar um minuto a falar de seguida, sem grandes interrupções).

Veja aqui alguns exemplos das traduções feitas:

Nestes cenários, o tradutor conseguiu apanhar melhor as ideias dos idiomas populares, enquanto que em idiomas menos falados acabou por cometer erros de tradução que geraram algumas frases sem nexo. Já do lado de quem fala (por exemplo, neste caso um português a falar inglês), de sublinhar que conseguiu perceber traduzir muito bem o que dissemos, mesmo considerando que o nosso inglês não é totalmente perfeito. 

Três modos de funcionamento

A ideia do Vasco E1 é que duas pessoas possam manter uma conversa, usando um dos auriculares cada uma delas. Mas não precisa de ser assim. Além deste modo de funcionamento, existem mais dois. Um deles usa o smartphone como intermediário, mais indicado para utilizações espontâneas – o utilizador tem o auricular no ouvido, mas o smartphone faz a tradução, em voz alta, para o outro interlocutor. E depois existe o modo de conversa natural, em que cada pessoa usa um auricular, mas não é preciso ativar o botão dos auriculares para iniciar a tradução, o dispositivo reconhece automaticamente quando cada um dos interlocutores está a falar. No entanto, pela nossa experiência, este último modo exige alguma etiqueta de conversa, pois é importante que as pessoas não se interrompam enquanto falam, sob pena de se perder parte da tradução.

Mas há uma questão que se levanta – alguém que investe cerca de 400 euros num tradutor quer ter acesso a traduções sem barreiras, sem limites, em qualquer idioma. O que nos leva ao nosso remate final – se pensa que este é um supertradutor, que coloca no ouvido e ouve tudo perfeitamente traduzido, como se a diferença entre idiomas não existisse, é justo dizer que ainda não atingimos esse patamar de evolução tecnológica, não pelo menos nos Vasco E1. É útil, é eficaz, mas não é infalível.

Vasco E1: Falta IA

A Vasco diz que aplica diferentes motores linguísticos nos seus sistemas de tradução, mas pelo menos em português, ficamos sempre com a sensação que o sistema usado é fortemente influenciado pelo Google – até a voz é a mesma que costumávamos encontrar no Assistente Google. Esperávamos, por esta altura, que a tecnológica já tirasse partido da revolução dos grandes modelos de linguagem (como os que alimentam o ChatGPT) para ter feito uma atualização aos sistemas de tradução. Já ouviram o ChatGPT falar turco ou grego? Parece fluente nessas línguas, enquanto as traduções de voz do Translator E1 ainda são muito robotizadas.

E esta crítica serve também para questionar a própria necessidade de um sistema de tradução dedicado como este – não seria preferível pagar 20 euros e ter acesso ao ChatGPT Plus, em situações específicas, para conseguir manter uma conversa com pessoas de outros idiomas que não domina?

Há um elemento que nos agrada na abordagem da Vasco. Apesar de cada Vasco E1 trazer dois auriculares, é possível na realidade ter mais auriculares emparelhados (até 10 unidades), o que torna tudo mais integrado do ponto de vista da gestão da tradução. E há algo apelativo no facto de termos no nosso ouvido um sistema que, a nosso pedido ou de forma automática, traduz o que outra pessoa está a dizer e que em condições normais para nós seria ‘chinês’.

Mas o próprio formato escolhido também traz alguns desafios. Por exemplo, imagina-se ir jantar a um restaurante no Japão e entregar um auricular ao funcionário só para fazer o pedido do jantar? Já numa reunião de negócios, onde o contacto não é tão esporádico, mas mais estruturado, aí sim já faz sentido assumir ‘tenho aqui um equipamento que vai ajudar-nos a chegar a um entendimento’. 

Portanto, mesmo dentro do universo da tradução, não nos parece que esta seja uma solução indicada para toda a tipologia de cenários. Para utilizações mais espontâneas, o Vasco V4 parece-nos mais indicado. Já para uma utilização mais profissional, este formato do Translator E1 faz-nos mais sentido.

Vasco V4

Os auriculares Vasco E1 não suportam ligação à internet, o que significa que precisam de estar ligados a um equipamento que a tenha. Como em alguns destinos o preço do roaming é proibitivo, é possível emparelhar o dispositivo com o tradutor Vasco V4 – sendo a vantagem desta combinação o facto de o V4 ter ligação à internet gratuita e ilimitada (para traduções, claro) em dezenas de países. A marca vende inclusive os dois equipamentos em ‘pacote’, com um preço de 689 euros (menos 90 euros do que se comprasse os dois equipamentos em separado).

Consideramos que, sobretudo pela dependência que tem do smartphone (ou do Vasco V4, ver caixa), o preço está desajustado, mesmo considerando o formato mais prático e discreto. Para que se justificasse por completo, teria de ser mais do que um tradutor (poderiam eventualmente funcionar como auriculares sem fios para música?), o que aumentaria ao mesmo tempo o número de potenciais utilizadores deste gadget.

Tome Nota
Vasco Translator E1 | €389
vasco-translator.pt

Tradução Muito bom
Latência Bom
Autonomia Muito bom
Aplicação Bom

Características Tradução: 51 idiomas • 2x microfones por auricular • Bluetooth 5.2, USB-C • Bateria: 70 mAh (auricular), 400 mAh (caixa) • 12,5 g (auricular) • 46x57x25 mm

Desempenho: 4
Características: 3,5
Qualidade/preço: 3

Global: 3,5

Menos de um ano depois da Imprensa Nacional ter lançado a sua poesia completa e de o festival Escritarias, de Penafiel, o ter escolhido como homenageado, Arnaldo Antunes está de volta à música, com um álbum mais próximo do rock. Nada de demasiado surpreendente para quem conhece o seu percurso.

Recorde-se que o músico brasileiro começou, nos anos 80, por  liderar os Titãs, banda de punk-rock que deixou uma marca na música brasileira, em temas como “Comida”, “Pulso” e “Polícia”. O seu percurso deu várias voltas e as suas canções foram vestidas de arranjos diferentes, mas sempre servindo um imenso corpo de poesia.

No disco anterior, chegara ao extremo do intimismo, trabalhando apenas com Vítor Araújo, um jovem e virtuoso pianista.

Novo Mundo, que agora chega às lojas e às plataformas de streaming, marca o regresso de Arnaldo Antunes ao formato de banda. O álbum é eminente político. Faz um alerta para o estado do mundo, traçando um cenário quase apocalíptico, mas, ao mesmo tempo, guarda espaço para canções de amor.

Depois de três anos em digressão, com o pianista Vítor Araújo, sentia falta de um álbum de banda?

Há muito que eu não fazia um trabalho de banda, porque o Real Resiste, gravado antes da pandemia, já era um disco sem bateria, só com instrumentos de corda e piano. Depois quis perseguir a proposta de forma mais serena, fazendo um show só de voz e piano, coisa que nunca tinha experimentado. E a seguir à pandemia saiu o Lágrimas no Mar. Houve uma grande sintonia com o Vítor e tudo correu bem, mas depois de três anos fazendo esse show, comecei a sentir saudades de uma coisa mais vibrante, mais dançante, mais pesada. A tournée de reencontro com os Titãs, que foi um parêntesis dentro desse período, também me deu um empurrão. O disco foi feio com uma banda nova e um produtor novo, para realmente renovar a minha sonoridade.

Este novo mundo é apresentado de alguma forma logo na primeira canção: “Bem-vindos ao novo mundo que se vai desintegrar no próximo segundo”. Isto é um alerta ou um desespero?

Estamos vivendo um período de muita intolerância, ódio, guerra, uma crise ambiental sem precedentes, uma economia global predatória, uma distribuição de renda absurda, a ascensão da extrema-direita e dos ódios impulsionados pelos algoritmos, com o papel crescente da tecnologia na nossa vida, causando também crises de ansiedade em todo mundo. Por isso, o disco tem esse lado crítico, o que é um pouco inevitável. Há essa visão distópica, até um pouco apocalíptica, mas é um alerta. A tomada de consciência daquilo que se está vivendo é necessária para encontrar respostas de como reagir a isso. E o disco acaba oferecendo algumas possíveis respostas de sobrevivência nesses tempos terríveis, através de um lado mais solar, mais amoroso, em canções como “Acordarei”,  “Pra Não Falar Mal” ou É Primeiro de Janeiro”.

Esta música também tem uma participação do rapper Vandal. Sente uma particular afinidade com o hip-hop?

Sim, adoro os Racionais, acho que tem muita coisa interessante. Eu próprio já fiz algumas experiências com canto mais falado dentro do ritmo. Adorei o trabalho do Vandal, entra de um jeito muito adequado na canção, com uma letra pertinente, e aquela forma de cantar meio berrada que me lembra a maneira como eu cantava no começo dos Titãs.

O disco também passa a Ana Frango Elétrico, que é uma outra voz com uma energia incrível e muito especial. Como é que ela veio aqui parar?

Acompanho o trabalho dela já há algum tempo, adoro as canções, o som e o charme da sua voz. O último disco eu acho primor. Quis chamar para participações músicos com quem nunca tinha trabalhado, à exceção da Marisa [Monte], que é essa parceira de há muitos anos. A música para a qual convidei a Ana é, na verdade, um dueto, porque o final de um verso acaba por se sobrepor ao início do verso seguinte.

Também há dois temas como o David Byrne. É uma estreia?

Tenho uma grande admiração e uma identificação com o seu trabalho desde o começo dos Talking Heads. Quando assisti o Stop Making Sense, no começo dos anos 80, fiquei pirado. Ele também está sempre a renovar-se, experimentando coisas novas. E tem esse interesse pela música brasileira, trabalhou com o Tom Zé, com a Marisa… Então fazia sentido, de certa forma, fazer-lhe o convite. Ele, na verdade, já tinha escrito, há mais de 20 anos, um prefácio de uma antologia da minha poesia que foi publicada na Espanha.

Mas nunca tinham trabalhado juntos?

Não. Mandei-lhe duas ideias para ele escolher. Ele acabou fazendo a colaboração nas duas, com um resultado incrível. Ficamos quase um ano trocando e-mails e compondo as canções, vagarosamente. Até que chegámos a um resultado satisfatório. A base foi gravada no Brasil, ele pôs a voz lá em Nova Iorque, eu gravei a minha aqui.

Como é que se faz essa parte, que não parece assim tão simples quanto isso, de casar as duas línguas?

Isso acontece de forma diferente nas duas músicas. No “Não dá para ficar parado aí na porta”, mandei a melodia com a letra, pensando que ele faria uma parte em inglês. Ele acabou fazendo uma versão em inglês e mandou uma gravação com uma melodia nova, contrapondo, parecida com a minha. Enfim, ficou uma parceria e aí a gente quis intercalar as partes com a voz dele e com a minha e acho que ficou interessante. Agora, já o “Body e corpo”, mandei uma letra, ele musicou e fez a versão em inglês. Eu achei o meu canto por cima dos intervalos entre os versos, fui fazendo como se fosse uma tradução simultânea.

Esses duetos obedecem todas as lógicas diferentes. Talvez o mais clássico seja o com a Ana Frango Elétrico..  Com a Marisa, por exemplo, parece que este canto em harmonia se tornou uma voz dupla.

Sim, já é uma marca conhecida nossa, aquilo ganha vida própria, uma entidade, as nossas vozes andam juntas. Claro que em grande parte por causa dos Tribalistas, também com a voz do Carlinhos [Brown].

Uma das canções mais bonitas do disco é o “Viu Mãe”, de onde vem esta parceria com o Erasmo Carlos? Onde é que estava esta canção?

É uma canção póstuma. Foi um presente que o filho dele me deu através de um produtor. Recebi a letra e musiquei. É engraçado, porque é o processo contrário das parcerias que fiz com o Erasmo durante a vida. Era sempre ele que me mandava uma melodia e eu fazia a letra. Esta é uma música muito doce, muito amorosa. O tema da mãe é um tema recorrente também na obra dele.

Musicalmente, é um trabalho bastante complexo, mesmo a nível dos arranjos. Como foi toda essa parte, não só da composição, mas depois também dos arranjos e da produção?

Chamei o Pupilo para trabalhar comigo, que é super inventivo e com essa liberdade de transitar em vários géneros, mas sempre com muita originalidade. E aí arregimentamos essa banda, o Kiko Dinucci, o Vítor Araújo e o Betão Aguiar. Criámos os arranjos todos juntos ali no estúdio. Fora essa formação, teve só o Tomé, meu filho, que participou para brincar fazendo a guitarra e o arranjos de cordas

Estão previstos concertos em Portugal?

Ainda não está nada marcado, mas todos os meus show têm passado por Portugal. Espero que este também, porque gosto muito do público daí.

Palavras-chave:

Segundo um estudo realizado pelo Pew Research Center, instituto de pesquisa americano, e repercutido pela revista Veja, cerca de 52% dos brasileiros acreditam que a Bíblia deveria exercer grande influência na elaboração e aprovação das leis, sendo que, em caso de conflito entre o texto bíblico e a vontade do popular, o livro sagrado deve prevalecer na legislação. Apesar disso os dados também apontam que apenas 22% das pessoas ouvidas acham que a Bíblia já exerce bastante influência sobre as leis no Brasil.

Mas o fenómeno não se verifica apenas no Brasil, já que a maioria da população de muitos outros países, mesmo de religião diferente, considera que o seu livro sagrado deveria exercer grande influência sobre as leis. São os casos do Bangladesh (82%), Quénia (68%), Malásia (62%), Indonésia (59%), Colômbia (57%), Índia (52%), Filipinas (51%) e Peru (50%).

Curiosamente, a investigação revelou a existência de uma situação diametralmente oposta nas populações dos países mais desenvolvidos, nos quais mais da metade considera que a Bíblia (ou outros livros sagrados) não deveria ter nenhuma influência sobre as leis. São os casos da Suécia (67%), França (66%), Espanha (61%), Holanda (60%), Austrália (59%), Alemanha (57%), Canadá (55%), Reino Unido (51%) e Itália (50%). A exceção reside nos Estados Unidos, onde 49% dos adultos defendem que a Bíblia deveria influenciar as leis nacionais de forma “razoável”.

Mas este panorama preocupante enferma de vários equívocos. O primeiro deles é saber qual é a autoridade legítima para definir os tais valores religiosos, quem a instituiu e como aconteceu tal coisa? No caso da Bíblia, quem é a autoridade hermenêutica reconhecida por todos os crentes, tanto a nível nacional como universal? 

O segundo equívoco é que os valores religiosos e princípios de fé não devem estar na pedra da lei mas na carne do coração, isto é, interiorizados pelos crentes, que deste modo farão a diferença e supostamente influenciarão a sociedade no sentido positivo. No caso da fé cristã, o poder transformador do evangelho não se reflete na letra da lei mas na vivência quotidiana. Mais. A lógica das leis dos homens é que são feitas para encontrar formas de as contornar e infringir, enquanto na lei de Deus é suposto que Ele não se deixa enganar por truques humanos, além disso conhece os corações.

O terceiro equívoco é que ninguém pode nem deve impor aos outros, seja a quem não tem fé, ou aqueles que não têm a mesma fé que a nossa, a sua ética religiosa pessoal. Essa prática tem um nome: abuso religioso, normalmente temperado com fundamentalismo.

O quarto equívoco é que a única forma de se viver numa sociedade harmoniosa e em paz é respeitar as diferenças, e cada indivíduo ter a liberdade de viver segundo a sua filosofia, desde que não atropele os direitos humanos. Será tão difícil entender isso?

Por exemplo, se alguém é contra o divórcio simplesmente não se divorcia, mas a lei permite aos cidadãos em geral que, querendo, o façam. Uma lei que permite o aborto em determinadas condições não obriga ninguém a abortar. Então quem entende que a prática abortiva é contrária à sua fé não tem que o fazer. Apenas permite aos outros, que não têm fé religiosa ou outra forma de ver que o façam se assim entenderem. Quem não gosta do casamento com pessoa do mesmo sexo não é obrigado a fazê-lo, mas permite a outros que o façam se optarem por isso. Por que motivo teríamos de obrigar os outros a viver de acordo com os nossos padrões e escolhas pessoais?

Quem quer ser respeitado tem que começar por respeitar os outros nas suas opções e escolhas, em especial quando são diferentes das suas. Num estado laico, pretender criar uma legislação que obrigue os outros – sob pena de multa, prisão ou morte – a viver de acordo com os nossos padrões pessoais, baseados em interpretações frequentemente discutíveis de um livro sagrado duma religião, é presunção, abuso ou loucura, é confundir a beira da estrada com a estrada da Beira.

No caso da fé cristã, o evangelho não é uma imposição mas uma proposta. Tudo quanto for além disso não tem a marca de Jesus Cristo. Quando enviou os discípulos a anunciar a boa nova do reino de Deus disse-lhes: “E, quando entrardes nalguma casa, saudai-a. E, se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas, se não for digna, torne para vós a vossa paz. E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés” (Mateus 10:12-14). Ou seja, se receberem o vosso testemunho, ótimo, senão segui viagem.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:

Escassas semanas após o início do seu segundo mandato na Casa Branca, Donald Trump anunciou que iria aplicar novas tarifas alfandegárias a produtos importados de países em relação aos quais os Estados Unidos da América (EUA) estão em desvantagem comercial. China, Canadá, México e União Europeia, os maiores parceiros comerciais, são os principais destinatários da estratégia de intimação do novo Presidente.

Nada de muito novo. No primeiro mandato, Trump já tinha rompido com a tradição de desregulamentação e de livre comércio que vinha desde o final da II Guerra Mundial. Não hesitou em impor tarifas de milhares de milhões de dólares aos bens importados da China e de outros países para combater supostas práticas comerciais desleais, reduzir o enorme défice comercial dos EUA e incentivar a produção em nome da segurança nacional e do crescimento económico. O sucessor, Joe Biden, manteve algumas dessas taxas em vigor e acrescentou outras, embora mais discretamente.

Adversários ou aliados?
Donald Trump e Vladimir Putin podem trocar de posições numa guerra comercial

Tanto o atual como o anterior Presidente não foram os únicos a erguer barreiras à importação de bens estrangeiros. O próprio conceito de tarifa é tão antigo como a Rota da Seda. No século III a.C., durante a Dinastia Han, a China usou o seu poder militar para expandir e manter o controlo do tráfego comercial através da Ásia Central. Gregos e romanos usavam as tarifas como um imposto cobrado à entrada de produtos estrangeiros nos seus mercados. Na Idade Média, as cidades-estado italianas aplicavam taxas sobre os bens que entravam por via marítima nos seus portos. As grandes nações europeias impunham pesadas tarifas para reduzir as importações e concediam subsídios generosos às exportações. Lutavam para garantir o acesso privilegiado a certos mercados e entregavam os monopólios a gigantes como a Companhia Britânica das Índias Orientais, a fim de protegerem o comércio com as colónias e aumentarem as suas receitas.

Não foi por acaso que muitas guerras comerciais evoluíram para conflitos armados. Em 1839-1842 e 1856-1860, a Grã-Bretanha e a China travaram as duas Guerras do Ópio. Com a Revolução Industrial, os britânicos tornaram-se grandes consumidores de produtos chineses como o chá, as sedas e as porcelanas. O comércio entre os dois países tornou-se altamente deficitário para a Grã-Bretanha, já que os chineses mantinham o mercado fechado e não mostravam apetência por produtos estrangeiros. A exceção era o ópio, uma droga extraída da papoila, abundante na vizinha Índia, que os britânicos começaram a exportar em grandes quantidades para a China, apesar de a sua comercialização ser proibida. Em 1839, o governo de Pequim destruiu cerca de 20 mil caixas de ópio confiscadas nos depósitos britânicos e expulsou os responsáveis, o que constituiu um pretexto para o início do conflito. A Primeira Guerra do Ópio terminou em 1842 com a derrota dos chineses, que foram forçados a abrir os seus portos a produtos estrangeiros – incluindo ao ópio – e a entregar Hong Kong aos vencedores. Em 1856, teve início a Segunda Guerra do Ópio, quando o governo chinês tentou proibir a entrada de navios ingleses. O conflito terminou quatro anos depois, com nova vitória dos britânicos. Nos Estados Unidos da América, a história das guerras comerciais é quase tão antiga como a independência do país, declarada a 4 de julho de 1776.

1789
O primeiro Tariff Act

Na data simbólica de 4 de julho, o Presidente George Washington assinou o Tariff Act de 1789, a primeira peça legislativa aprovada pelo Congresso após a ratificação da Constituição dos EUA. Tinha dois objetivos: proteger as indústrias emergentes e aumentar a receita do governo federal para pagar a dívida da guerra pela independência. Cobrava uma tarifa de 5% sobre o preço de um conjunto de produtos importados e impunha uma taxa de 50 cêntimos por tonelada de mercadoria transportada por navios estrangeiros, contra apenas 6 cêntimos por tonelada de mercadoria descarregada de navios norte-americanos. Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro dos EUA, foi um grande defensor da introdução de tarifas e subsídios para proteger as jovens indústrias nacionais da concorrência estrangeira. A sua teoria serviu de base à política comercial durante praticamente todo o século XIX, e as tarifas tornaram-se uma das maiores fontes de receitas do governo federal até à introdução do imposto sobre rendimentos, em 1913. Com o Underwood-Simmons Tariff Act, aprovado nesse ano, o governo começou a romper com a sua longa tradição de protecionismo, promulgando uma lei que reduziu as tarifas em cerca de um terço, de aproximadamente 40% para 27%. Mas a Primeira Guerra Mundial e a eleição do republicano Warren Harding para a presidência, em 1920, sinalizariam de novo o fim das tarifas baixas, a pretexto de proteger os agricultores norte-americanos.

O conceito de tarifa é tão antigo como a Rota da Seda. No século III a.C., a China usou o seu poder militar para expandir e manter o controlo do tráfego comercial através da Ásia Central

1930
As Tarifas Smoot-Hawley

Em outubro de 1929, o crash na Bolsa de Wall Street mergulhou os EUA na Grande Depressão, um período de turbulência económica que duraria praticamente até à Segunda Guerra Mundial. Meses depois, em junho 1930, o Presidente Herbert Hoover assinou o Smoot-Hawley Act, proposto pelo senador Reed Smoot, do Utah, e pelo congressista Willis Hawley, do Oregon, ambos republicanos. Apesar do lançamento de uma petição, subscrita por mais de mil economistas, a alertar para os riscos da medida protecionista, a lei avançou a pretexto de proteger os agricultores norte-americanos da concorrência estrangeira. As novas tarifas, no valor de 20%, em média, foram estendidas a milhares de produtos industriais. Quase de imediato, começaram as retaliações. O Canadá, por exemplo, aplicou taxas alfandegárias sobre dezena e meia de produtos que, à época, representavam cerca de um terço das exportações dos EUA. Grã-Bretanha, França e Espanha também responderam com novas tarifas. O resultado foi uma redução significativa das trocas internacionais, enfraquecendo ainda mais a economia norte-americana. Os especialistas estimam que as exportações dos EUA tenham recuado cerca de 61% em 1933. A lei Smoot-Hawley é ainda hoje frequentemente apontada como um dos fatores que mais contribuiu para agravar a Grande Depressão. Com a economia a afundar-se cada vez mais, a popularidade de Hoover caiu a pique e, nas eleições de 1932, foi derrotado pelo democrata Franklin D. Roosevelt. Em junho de 1934, o novo Presidente assinou o Reciprocal Trade Agreements Act, que previa uma redução das tarifas e a realização de acordos comerciais bilaterais com outros países para anular os efeitos da lei Smoot-Hawley. O texto do novo diploma afirmava que “uma recuperação económica completa e permanente depende em parte do comércio internacional renascido e fortalecido”. Nos cinco anos seguintes, o governo de Roosevelt negociou acordos comerciais com cerca de duas dezenas de países. Depois da lei Smoot-Hawley, o Congresso, até então soberano em assuntos de política comercial, começou a delegar cada vez mais as decisões no poder executivo. Presidentes democratas e republicanos usaram essa autoridade para aumentar tarifas, alegando que a concorrência estrangeira ameaçava o tecido industrial e punha em causa a segurança nacional, ou firmar novos acordos comerciais ‒ incluindo o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), precursor da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Década de 1960
“imposto do frango”

Durante a Segunda Guerra Mundial, a carne vermelha foi racionada nos EUA. O governo iniciou uma campanha para encorajar a população a consumir mais peixe e carne de aves. Como resultado, a produção industrial de frango aumentou e começou a ser feita a sua exportação para a Europa, a preços muito baixos. Até que, em 1962, os membros da então Comunidade Económica Europeia (CEE) ‒ França, Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo ‒ impuseram tarifas sobre o frango norte-americano. No ano seguinte, quando a exportação de carne de aves para a Europa caiu drasticamente, em cerca de 30%, o Presidente Lyndon B. Johnson retaliou com taxas de 25% sobre vários produtos europeus agrícolas e industriais. Ainda hoje, as carrinhas pick-up de fabrico europeu pagam o “imposto do frango” (“chicken tax”) à entrada nos EUA… Desde então, as pick-ups fabricadas localmente tornaram-se campeãs de vendas. Para contornar as restrições, os fabricantes europeus começaram a construir modelos comerciais com especificações de veículos de passageiros ou instalaram fábricas naquele país.

1987
Tarifas sobre carros japoneses

Uma das maiores guerras comerciais iniciou-se em 1987, quando o Presidente Ronald Reagan decretou tarifas de 100% sobre importações japonesas a partir de determinados montantes, afetando principalmente a compra de automóveis daquele país asiático. Com o intuito de conter o défice norte-americano, o governo exigia a abertura do mercado nipónico à entrada de semicondutores made in USA. As exportações japonesas levaram um rombo e, na década de 1990, o Japão entrou em recessão.

Regra do jogo
Durante o primeiro mandato na Casa Branca, Donald Trump aumentou as tarifas sobre a importação de painéis solares e máquinas de lavar, entre outros artigos

1993
Bananas vs. queijo brie

Durante 20 anos, a União Europeia (UE) e 11 países latino-americanos mantiveram uma guerra tarifária sobre o comércio de bananas, que só terminou com a assinatura de um acordo apadrinhado pela Organização Mundial do Comércio. Tudo começou em 1993, quando o bloco europeu levantou barreiras à importação de bananas de países latino-americanos para proteger os pequenos agricultores de antigas colónias caribenhas e africanas de países como a França, Grã-Bretanha e Holanda. Os EUA, cujas empresas detinham a maioria das plantações de banana na América Latina, envolveram-se no conflito e decretaram tarifas de 100% sobre produtos europeus, como a caxemira escocesa ou o queijo francês brie. Em 2012, a Europa começou a reduzir, de forma gradual, as tarifas sobre a importação da banana latino-americana, de 176 euros para 114 euros por tonelada, aceitando pôr fim ao conflito.

2002
Guerra do aço com a Europa

Para desenvolver a indústria siderúrgica, o Presidente George W. Bush aplicou tarifas de até 30% sobre o aço de países estrangeiros, visando especialmente a Europa. Como retaliação, a UE ameaçou levantar barreiras contra produtos norte-americanos, incluindo as laranjas da Flórida e as motos Harley-Davidson. Dias antes de a Europa começar a aplicar as tarifas, os EUA suspenderam as barreiras contra o aço europeu.

2005
Guerra do “suco” de laranja

O Brasil, maior exportador mundial de sumo de laranja, foi acusado pelos EUA de práticas de dumping que lhe permitiam vender para países terceiros a custos inferiores aos da produção. Durante o conflito, iniciado em 2005, os norte-americanos taxaram o produto em até 60%. O Brasil acabou por recorrer à OMC, que lhe deu razão. A acusação dos EUA baseou-se apenas nas marcas mais baratas de sumo de laranja do Brasil, quando a OMC estabelece que o método de cálculo do preço deve incluir todas as marcas exportadas por um país.

2018
Primeira guerra tarifária de Trump

Durante o primeiro mandato na Casa Branca, Donald Trump aumentou as tarifas sobre a importação de painéis solares e máquinas de lavar, entre outros artigos. Embora não diferenciasse esses produtos pela sua origem, o maior fabricante de painéis solares a nível mundial era então a China. Trump aplicou também uma tarifa de 25% sobre o aço e uma de 10% sobre o alumínio, afetando principalmente o Canadá, o México e os países da UE. O governo de Pequim respondeu, cobrando direitos alfandegários sobre mais de uma centena de produtos norte-americanos, incluindo soja e aviões. Os EUA condenavam a China por práticas comerciais desleais, roubo de propriedade intelectual e manipulação cambial. A China, por sua vez, acusava os EUA de protecionismo e violação dos princípios do livre comércio. As tréguas entre os dois países aconteceriam apenas em 2020, quando a China, embora mantendo o seu excedente comercial sobre a outra parte, já tinha sido substituída pelo México como principal parceiro comercial dos EUA.

Artigo publicado na Exame nº488 de março de 2025

Palavras-chave:

Bom dia, caro leitor! Se é dos costuma ler os textos que costume escrever neste espaço diário da VISÃO já terá percebido que gosto de futebol e de falar de futebol. Não que me ache uma sumidade na matéria, apenas porque é um desporto que me apaixona e, portanto, um tema sobre o qual acho que posso ter alguma coisa interessante a dizer. E era precisamente sobre o jogo, nomeadamente os jogos determinantes que se aproximam, que me apetecia escrever, não fosse a inqualificável birra do ex-presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) ter vindo provocar o caos no seio do futebol nacional.

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Ben Gonthier chegou a Lisboa há 11 anos enquanto jovem arquiteto. Travou conhecimento com vários artistas e decidiu que, antes de montar os equipamentos no seu atelier, gostaria que estes beneficiassem do espaço.

O atelier nunca chegou a acontecer. De projeto em projeto, o local foi-se transformando num espaço de programação de exposições, evoluindo progressivamente para uma verdadeira galeria de arte, a Foco, atualmente num espaço de 300 m2, na Rua Antero de Quental.

A 20 de março deste ano levou, até Paris, os 13 artistas que representa, em Lisboa, a fim de mostrar o seu trabalho na exposição Lisboa Não Sejas Francesa, mostra mostra que quer promover o diálogo intercultural entre as duas cidades e que se encontra patente, até 17 de maio, na L’Atlas Galerie des Mondes.

“A exposição não é apenas um convite para descobrir obras, mas uma exploração dos laços profundos entre a arte contemporânea portuguesa e as realidades culturais e sociais que moldam estes artistas”

ben gonthier – fundador galeria foco

Representar artistas portugueses foi um objetivo desde o início da galeria?

A nacionalidade nunca foi um critério para a galeria. O meu objetivo foi sempre colaborar com artistas cujo trabalho ressoasse com a linha artística do projeto, independentemente da sua origem. Claro, estando a galeria instalada em Portugal, a maioria dos artistas com os quais trabalhamos são portugueses. Há também alguns artistas franceses (que residem em Lisboa), o que aconteceu naturalmente por afinidade e pela facilidade de comunicação ligada à minha origem. No entanto, procuro manter um equilíbrio e não representar demasiados artistas franceses, para evitar qualquer perceção errada que possa levar a crer que me limito a uma única comunidade ou que não procuro integrar-me plenamente no contexto artístico local.

Como surgiu a ideia de levar os artistas da Foco para a L’Atlas?

Há já vários anos que desejava dar visibilidade à criação contemporânea portuguesa de Lisboa através dos artistas da galeria. Foi durante a ARCOmadrid que os diretores do projeto L’Atlas me fizeram a proposta. Aceitei de imediato, porque, na minha opinião, representa uma oportunidade ideal para a galeria estabelecer-se na cena cultural parisiense.

O que significa apresentar na própria cidade os artistas que se representa na cidade de adoção?

Apesar de já terem passado 11 anos e de ter a intenção de ficar em Lisboa, Paris fará sempre parte de mim. Poder reunir essas duas partes da minha vida num momento tão especial foi algo muito importante e profundamente significativo. Acredito também que o público francês tem muito a ganhar em descobrir esta exposição que, à sua maneira, reflete uma visão de Lisboa.

O que é que gostavas que o público francês retirasse desta exposição?

Que sentisse a essência de Lisboa e de Portugal, mas também a energia criativa que emana dos artistas que represento. Não é apenas um convite para descobrir obras, mas uma exploração dos laços profundos entre a arte contemporânea portuguesa e as realidades culturais e sociais que moldam estes artistas. Gostava que a exposição suscitasse uma reflexão sobre as diferentes facetas de Lisboa e de Portugal, mas também sobre a forma como estes artistas se inspiram no seu ambiente para questionar e reinventar a sua própria realidade.

Qual a importância de iniciativas como esta?

São essenciais, pois oferecem a oportunidade de apresentar o trabalho de vários artistas num contexto distinto do das feiras, criando uma experiência mais aprofundada. Estes projetos geram um espaço propício à reflexão sobre a arte em toda a sua diversidade, permitindo uma abordagem menos mercantil das obras. Mas também permitem alargar a perspetiva sobre a cena artística portuguesa, inserindo-a num diálogo enriquecedor com outras culturas. Este tipo de exposição promove os intercâmbios entre artistas e públicos, facilitando uma melhor compreensão das práticas contemporâneas, ao mesmo tempo que reforça a visibilidade dos artistas portugueses a nível internacional. É uma forma de participar ativamente na evolução da cena artística global, valorizando as vozes e as realidades de países como Portugal.

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