Quando nasceu, em 1979, o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) constituiu-se como o estabelecimento incumbido de assegurar a formação inicial e contínua de juízes e magistrados do Ministério Público. Até hoje o CEJ assume o papel cimeiro na formação e preparação de magistrados, mas também no seu recrutamento mediante organização dos respetivos concursos de acesso. O seu nascimento surge num contexto de forte ebulição social e política em que muita da estrutura do Estado, desenhada no pós 25 de abril, começa a dar os seus primeiros passos. A própria filosofia em torno daquilo que deveria ser o papel do juiz era ainda objeto de discussão e debate. Nas palavras de Laborinho Lúcio, aquando do 25º aniversário do CEJ, “aos tempos empobrecedores nos quais a magistratura proclamava a sua independência ao espelho da lei e a partir de uma leitura formalista dos textos, acolhendo-se à sombra da máxima de Montesquieu de que ‘o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei’, sucederam-se outros, nos quais, sem quebra do respeito devido ao princípio fundamental do primado da lei, novas exigências de justiça, de eficácia, de exercício democrático do poder soberano próprio dos tribunais e de procura de uma mais próxima conformação da lei à realidade, vieram projetar-se na questão, agora também nova, da formação do magistrado”.
Sem prejuízo da sua ligação direta, desde a fundação, à tutela do Ministério da Justiça, mesmo em desalinho com recomendações do Conselho da Europa que apontavam no sentido da existência de uma autoridade competente em matéria de seleção e de carreiras dos juízes que fosse independente do governo e da administração (Recomendação nº R (94) 12), o que não é isento de crítica, o CEJ foi progressivamente consolidando o seu papel, formando múltiplas gerações de magistrados até aos dias de hoje.
Oriundos de vários pontos do País, durante décadas, os auditores de justiça fixavam-se em Lisboa, espalhando-se, em regra, por casas arrendadas pelos diversos senhorios da Graça até Alfama, constituindo o CEJ o culminar da superação de exigentes provas, mediante rigorosa avaliação por júris de composição plural com prestigiados representantes de várias áreas do saber jurídico.
O crivo apertado e a exigência avaliativa constituíam, então como hoje, garantias incontornáveis de capacidade técnica e humana e de legitimidade académica, científica e constitucional a cada curso de magistrados que se formava.
A bolsa paga aos auditores de justiça, ao longo dos tempos, permitia assegurar o básico: pagar a alimentação, a renda da casa, alguns livros de apoio ao estudo, os bilhetes do comboio ou do autocarro para o regresso às terras de origem aos fins de semana. Asseguradas as despesas da estadia em Lisboa, não permitia comprar viatura própria, não permitia comprar ou arrendar casa na cidade natal. Não permitia sustentar um filho ou pagar um infantário. Só o básico, mas ao menos o básico, estava assegurado.
Ainda assim, publicidade não era necessária. Recuando um pouco, em 2007, por exemplo, 2065 candidatos apresentaram-se ao CEJ para 50 vagas disponíveis para a Magistratura Judicial e outras tantas para a Magistratura do Ministério Público. Os melhores alunos das faculdades, sem prejuízo de outras saídas, equacionavam quase sempre as magistraturas como um percurso possível a abraçar.
Com o passar dos anos, tem-se assistido a uma quebra do número de candidatos e, como tal, objetivamente, a uma perda de interesse em considerar a Magistratura como uma opção. Algumas causas são patentes e impossíveis de ignorar. Com efeito, sabendo-se da exigência imposta no acesso ao CEJ, a verdade é que, ao longo de décadas esse fator não dissuadiu milhares de candidatos de se apresentarem às provas, mesmo sabendo que a probabilidade de entrada, face ao número de vagas, era necessariamente baixa. E na verdade, a nosso ver, essa não é a questão fulcral que explica a quebra acentuada no número de candidatos que se verificou na última década. Com o passar dos anos, começaram a surgir para os jovens licenciados melhores oportunidades no setor privado, designadamente em sociedades ou multinacionais, com oportunidades profissionais que lhes permitem contacto com outras realidades, designadamente a nível internacional, bem como melhores e mais rápidas hipóteses de progressão. Do mesmo modo, aqueles que equacionam as várias possibilidades de carreira após a Universidade têm conhecimento que as magistraturas enfrentam pesadas cargas de trabalho, aliadas a uma crescente pressão estatística e a números relevantes em termos de risco de burnout, ao que não é alheia também a progressiva redução do número de juízes e a inexistência efetiva de assessorias ao nível da primeira e segunda instâncias.
Por outro lado, apesar do prestígio ainda associado às funções de soberania em geral, a verdade é que as remunerações, numa carreira de absoluta exclusividade profissional, não são apelativas tendo em conta as exigências e responsabilidades das funções, sobretudo para jovens talentos e com perspetivas de poderem singrar noutras profissões e noutras latitudes. Estes preferem, cada vez mais, percursos profissionais mais flexíveis, com progressões mais rápidas e compensadoras, sendo que a perceção da desvalorização do papel dos magistrados e das tensões associadas ao exercício da sua função também constituem fatores de dissuasão a ter em conta.
Urge por isso que se repense com cuidado a carreira das magistraturas, sendo que esta questão deve ser vista com seriedade e sem a habitual tendência para a sua redução a uma mera reivindicação socioprofissional. Trata-se, na verdade, de uma questão de Estado e de como esse mesmo Estado pretende fazer valer a Constituição e de como pretende assegurar que os seus cidadãos façam valer os seus direitos. E a questão é simples: se, efetivamente, se quiser pugnar por um melhor serviço, o sistema deve estar preparado para atrair os melhores e não se deixar colapsar pelos insistentes défices de recrutamento face ao número previsível de jubilações.
Terminou na semana que passou o prazo para apresentação de candidaturas ao mais recente concurso de acesso ao CEJ. Assistiu-se, desta vez, a um ligeiro aumento, sendo cerca de 1000 os candidatos ao 42º Concurso de Ingresso em Curso de Formação de Magistrados para os Tribunais Judiciais e ao 12º Concurso de Ingresso em Curso de Formação de Magistrados para os Tribunais Administrativos e Fiscais, com preponderância para o 42º Curso, com cerca de 800 candidatos. Melhor estudo sobre a caracterização e proveniência destas candidaturas será feito a seu tempo, porém, ao aumento verificado poderá estar associada, além do mais, a abertura do novo polo do CEJ em Vila do Conde, que permitirá que os auditores de justiça residentes na zona norte do país vejam mitigado o problema do valor das rendas a pagar, sobretudo se não tiverem necessidade de mudar de residência. Todavia, o valor da bolsa do Auditor de Justiça continua a não lhe permitir pagar uma renda em Lisboa ou no Porto, continuando a constituir um entrave para muitos candidatos que não têm possibilidades financeiras ou que, optando pelas magistraturas, dependam do valor da bolsa como única fonte de rendimento. E este problema não se cinge ao início de carreira, atravessando uma estagnação persistente que, na perspetiva de atração de novos valores para a magistratura, não constitui o melhor dos cartões de visita.
Do mesmo modo, o novo polo do CEJ não se encontra ainda plenamente alocado a instalações definitivas, sendo muito importante que se empreendam as necessárias medidas para que a formação que ali vai ser ministrada tenha, sem experimentalismos, a mesma qualidade, os mesmos meios e as mesmas soluções que a ministrada no Limoeiro.
Os tempos e as mentalidades mudaram rapidamente nas últimas décadas, mas não mudou o que queremos enquanto país. Se o nosso desejo coletivo é prosseguir como uma sociedade democrática, progressista e bem firmada na salvaguarda dos direitos constitucionais dos cidadãos, impõe-se uma adaptação rápida à nova realidade e que a tão falada atratividade da carreira das magistraturas não seja politicamente relativizada e olhada como algo de somenos. Trata-se de conseguir os melhores para os colocar ao serviço do Povo e de os manter ao longo de uma carreira de dedicação exclusiva a um pilar essencial da soberania nacional, o poder judicial. Trata-se, em suma, de dar à comunidade aquilo a que ela tem direito, e que o Estado, sem tentações populistas, tem o dever de providenciar.
Voltando às palavras de Laborinho Lúcio: “Ao cidadão deixado Kafkianamente à entrada da lei, sucede o cidadão moderno reclamando o conhecimento daquela, e o seu direito à interioridade, ou à participação ativa no interior dos sistemas que visam, afinal, servi-lo”.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.