Neste Jogos Olímpicos, a saúde mental conseguiu bater Snoop Dogg e estar mesmo em todo o lado: a competir, no media centre, nas bancadas. Medalha de ouro ex aequo à vulnerabilidade, à destigmatização e à importância da psicoterapia. Os preconceitos com as doenças mentais foram combatidos em cada acrobacia, tiro, mergulho, sprint. E a equipa vencedora fomos todos nós, quase 2 mil milhões e quem está nos arredores, que lidamos com a doença mental.
Eles parecem super-humanos, mas não são imunes à pressão, à competição, aos vazios pós-olímpicos, à derrota, ao imperativo da vitória contínua, ao perfecionismo, à saída do desporto. Nem ao estigma: para nós são heroicos, podem lá ser doentes mentais? Mas são: 50% dos atletas de elite têm sintomas ou doenças mentais, com prevalência da depressão, ansiedade e distúrbios alimentares – dados do Comité Olímpico Internacional em 2019. Os serviços psicológicos do Comité Olímpico dos EUA sinalizaram metade dos seus atletas, desde os Jogos do Rio 2016. Entre nós e este ano, o Observatório de Saúde Mental colocou a fasquia nos 40%.
Quando Simone Biles decidiu retirar-se dos Jogos de Tóquio para cuidar da sua saúde mental, ecoou pelo mundo o espanto estigmatizado. A super ginasta, fisicamente capaz do impensável, tinha uma doença mental?! Era um mundo muito desatento, este ainda pandémico de 2021: começávamos a perceber que as doenças mentais também são pandemia, mas tínhamos feito ouvidos mocos a Michael Phelps, o nadador das 23 medalhas olímpicas que, em 2015, começou a falar publicamente da sua depressão e ansiedade; ou a Ian Thorpe, o campeão australiano que, em 2016, fez o mesmo. Ambos deram o alerta, numa altura em que a integração dos psicólogos do desporto nas equipas (ou nas nossas vidas) era miragem. Em 2020, Noah Lyles, hoje o homem mais rápido do mundo, tweetava o seu diagnóstico de depressão e assumia que os antidepressivos o estavam a ajudar. Seguiu-se Naomi Osaka. Mas há um aS e um dS – antes e depois de Simone. Em julho de 2023, o COI lançou o primeiro “Plano de Ação para a Saúde Mental”, com várias medidas a serem implementas nos Olímpicos de Paris graças ao “efeito Biles” – e o tema destes Jogos foi escrito por ela, no Instagram, mal se tornou campeã olímpica: “Mental health matters”.
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Até aqui, o estigma era recordista absoluto em qualquer modalidade. Agora, os atletas equiparam-se de autocuidado, literacia e muita terapia, e reclamaram a dianteira para a sua saúde mental. Estes são os preconceitos atirados ao tapete, nos Jogos Olímpicos de Paris.
Eles têm tudo, não podem ter doenças mentais. Nesta sociedade instantânea, a aparência dita sentença e perceciona-se o sucesso, medalhas e fama como antónimos de doença mental. A lista de atletas que, com coragem olímpica, competiram vindos de problemas de saúde mental assumidos ou a lidar com doenças mentais ativas, põe este preconceito fora de jogo. Além de Biles e Lyles, Caleb Dressel (natação, EUA), Tom Daley (saltos para a água, GB), Gabriel Medina (surf, Brasil), Sha’Carri Richardson (atletismo, EUA), Adam Peaty (natação, GB), Sunny Choi (breaking, EUA), René Holten Poulsen (canoagem, Dinamarca), Ysaora Thibus (esgrima, França), Kimberly Woods (canoagem, GB), Bárbara Timo (judo, Portugal), Irina Rodrigues (lançamento do peso, Portugal), e muitos outros falaram publicamente da sua saúde mental. A verdade: As doenças mentais são multifatoriais e extremamente democráticas, podem acometer qualquer pessoa.
A depressão é coisa de preguiçosos e fracos. Se há pecado mortal que estes atletas não cometem é a preguiça. O treino rigoroso, os sacrifícios e anos de preparação são de disciplina constante, de extraordinária exigência física e mental – é impossível dizê-los fracos. Mais: num mundo estigma-recordista, assumir vulnerabilidade e doença mental no palco olímpico-mediático, revela muita força! A verdade: A depressão é uma doença complexa, de causas múltiplas e enorme sofrimento. Atribuir uma doença a capricho, preguiça ou fraqueza isso si, é coisa de fracos.
Depois de uma doença mental, perde-se competência na performance profissional. Simone Biles voltou à sua profissão em 2023: foi campeã mundial individual, por equipas, ouro no solo e trave e prata nos saltos; é campeã olímpica, com 3 ouros e 1 bronze. A canoísta britânica Kimberly Woods teve de ultrapassar uma depressão, comportamentos autolesivos e ideação suicida para chegar a Paris – ganhou 2 medalhas de bronze. Para Tom Daley, que lidou com depressão e distúrbios alimentares, estes foram os quintos Jogos e ganhou a quinta medalha. É preciso continuar? A verdade: Regressa-se diferente de uma doença mental, é uma experiência avassaladora. Mas plenamente válido e competente, com mais autoconhecimento. É crucial fazer o phase out do tratamento e o phase in de regresso ao trabalho de forma estruturada e adaptada.
As doenças mentais não têm cura. Pois não, têm remissão. Conseguem encontrar argumentos para validar tamanho preconceito, face à alegria, sucesso e resultados destes atletas? A verdade: O tratamento adequado, que atue sobre as causas, stressores e sintomas, remite a doença e dá-nos ferramentas para vigilância e manutenção da saúde mental.
A terapia é para malucos. A judoca Patrícia Sampaio faz psicoterapia para gerir a sua saúde emocional e os desafios competitivos. Rebeca Andrade, ginasta brasileira, faz terapia desde os 13 anos. Simone Biles teve um teleconsulta madrugadora com a terapeuta no dia em que se tornou campeã. Noah Lyles tem 3 terapeutas diferentes. A verdade: A terapia salva. A medicação é um precioso auxílio, mas só com psicoterapia se atua sobre as causas e previne reincidência.
O estigma é inquebrável. A lançadora do disco brasileira Izabella Rodrigues teve um intenso ataque de ansiedade, com vómitos e insónia, na véspera das classificatórias. Ficou em 17.º, não chegou à final, e deu o exemplo, explicando aos media porquê. Noah Lyles, a seguir ao ouro nos 100m publicou no X: “Tenho asma, dislexia, défice de atenção, ansiedade e depressão. O que têm não define o que podem vir a ser. Porque não tu?”
Eu, ex-deprimida e ansiosa ocasional, que não sei fazer a roda e levo 10 minutos para correr 100m, acrescento que se estes atletas dão músculo ao combate ao estigma, podemos todos ser meio-fundistas pela saúde mental. Knockout.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Descrito como um Mestre dos Retratos, o Honor 200 Pro é o irmão mais apetrechado (e caro) da nova família de smartphones da marca chinesa, que foca as suas atenções na fotografia. Aqui, o smartphone oferece uma experiência completa, embora tenha algumas arestas para limar. A surpresa chega no desempenho, deixando também uma muito boa impressão no ecrã e na autonomia.
Retratos com ‘assinatura’ parisiense
Com a fotografia a ser apresentada como um dos grandes pontos de destaque, é sem surpresa que a Honor aposta em grande na configuração de câmaras. Aliás, o sensor principal de 50 MP tem algumas semelhanças com o do Honor Magic 6 Pro, um modelo topo de gama que se enquadraria facilmente no nosso teste de melhores cameraphones.
A marca colaborou com o Studio Harcourt, conhecido pelos seus retratos, para desenvolver o Honor AI Portrait Engine, que combina Inteligência Artificial com a experiência do estúdio de fotografia parisiense. As câmaras traseiras contam também com uma versão atualizada do algoritmo Honor RAW Domain, que, segundo a marca, ajuda na captação de retratos com níveis equilibrados de exposição nas zonas mais claras, preservando detalhes mesmo em cenários de iluminação mais escuros.
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Honor 200 Pro – Câmaras vistas à lupa
Câmara principal de 50 MP (sensor ultra-grande 1/1,3 pol. H9000 OIS; 4-em-1 com equivalente 2.4 μm de grandes píxeis; abertura f/1,9)
Teleobjetiva de 50 MP (sensor ultra-grande HONOR x Sony IMX856; zoom ótico 2.5x e zoom digital até 50x; OIS; abertura f/2.4)
Ultra grande angular de 12 MP (2-em-1 com lente grande angular e macro; ângulo 112° ultra)
Câmara frontal de 50 MP (abertura f/2.1; algoritmo de iluminação otimizado para selfies)
Com todos estes ingredientes, parecem estar reunidas as condições para uma receita de sucesso. Mas a verdade é que a experiência não foi tão impressionante quanto esperávamos. A ‘alma’ está lá, mas a execução deixa, por vezes, a desejar.
Comecemos pelos aspectos positivos. Em condições de iluminação adequada, seja em espaços exteriores como interiores, a câmara principal é capaz de captar imagens com qualidade. As fotografias apresentam um bom nível de detalhe nas zonas claras e mais escuras, as cores são vívidas sem serem demasiado artificiais e há, de modo geral, equilíbrio nos níveis de exposição e contraste. O desempenho da teleobjetiva e da câmara frontal não ficam muito atrás e, apesar de ter uma menor resolução, o sensor ultrawide permite obter resultados satisfatórios.
Fotografias captadas com o Honor 200 Pro
É no modo Retrato onde encontramos três perfis ao estilo Studio Harcourt – Vibrant, Cor e Clássico – que estão apenas disponíveis para retratos com a câmara principal e com a teleobjetiva. Sentimos que o perfil Harcourt Clássico é o que mais se aproxima do estilo icónico do estúdio de fotografia, dando um toque de ‘dramatismo’ aos retratos a preto e branco. Já no perfil Cor, as cores assumem tons mais quentes e no Vibrant ganham um pouco mais de vivacidade.
Retratos captados com o Hnor 200 Pro
Apesar das ocasionais dificuldades com o efeito bokeh nos retratos captados com a teleobjetiva, obtivemos composições muito agradáveis com este modo. Os retratos são detalhados, com as câmaras a captarem adequadamente os pequenos pormenores do rosto, e há um bom recorte do ‘sujeito’ principal.
Passando ao lado menos positivo da nossa experiência, notámos diferenças a nível de reprodução de cor entre os sensores e, em cenários noturnos, o desempenho das câmaras deixa a desejar. O zoom digital entrega resultados satisfatórios até 5x, a partir daí, quanto mais elevado, menor é a definição dos diferentes elementos nas fotografias. Em determinados casos, as câmaras têm dificuldade em ‘congelar’ o movimento e, por vezes, surgem efeitos visuais indesejados. Além de casos de lens flare, reparámos num efeito de clareamento em torno de certos elementos, numa espécie de auréola. Já no vídeo, a falta de estabilização destaca-se pela negativa.
Design e ecrã
Com uma forma inspirada pela Casa Milà, do famoso arquiteto Antoni Gaudí, o módulo de câmaras causa, num primeiro momento, alguma estranheza. As suas dimensões e espessura chocam com as linhas simples do smartphone e, à primeira vista, parece desajustado. Mas, com o passar do tempo, até nos habituamos ao seu impacto visual, embora cause intrusão durante o uso sem capa.
Se o módulo das câmaras se inspira na arquitetura, o design do smartphone tem a Natureza como principal fonte de inspiração. Por exemplo, o modelo que experimentámos, na cor exclusiva Ocean Cyan, tem um painel traseiro com um acabamento que faz lembrar uma linha costeira, seja pelos tons que remetem para as cores do mar, como pela combinação entre texturas e reflexos.
Note-se que para o mercado português chegam apenas os tons Moonlight White que, como o próprio nome já deixa antever, se inspira na luminosidade da Lua no céu noturno para um painel traseiro com textura frosted, e Preto, uma opção de estilo mais clássico com acabamento mate.
Honor 200 Pro nas versões Moonlight White e Preto
Apesar de ser fino e leve, o Honor 200 Pro apresenta uma construção relativamente sólida, com curvas suaves e cantos arredondados para um manuseio mais confortável, se bem que seja um pouco ‘escorregadio’.
Em linha com o design do smartphone, o ecrã AMOLED de 6,78 polegadas também tem curvas nas extremidades. Embora não seja totalmente ‘imune’ ao problema dos toques acidentais, frequente em modelos com ecrãs deste género, oferece uma experiência de navegação rápida e fluida, sobretudo quando ativamos a taxa de atualização a 120 Hz. De acordo com a Honor, o brilho máximo é de 4000 nits, o que ajuda a assegurar uma maior legibilidade sob luzes mais intensas, com o ecrã a adaptar-se bem a diferentes condições de iluminação.
Clique nas imagens para ver o Honor 200 Pro com mais detalhe
À semelhança de outros modelos da marca, o ecrã do Honor 200 Pro conta com características concebidas para um maior conforto ocular. Aqui incluem-se o escurecimento dinâmico PWM a 3840 Hz, que faz a diferença para quem tem olhos mais sensíveis à cintilação do ecrã, assim como o modo “Ecrã noturno circadiano”, que ajusta a temperatura da cor à medida que o dia progride para mitigar o impacto negativo da luz azul no sono.
A qualidade da imagem deixa uma muito boa impressão, o que torna este modelo particularmente apelativo para quem gosta de assistir a vídeos online ou até a séries em streaming a partir do smartphone. Com uma resolução elevada, o ecrã apresenta imagens nítidas e com boa riqueza de detalhe.
Quanto à reprodução de cor, é possível escolher entre duas opções – Normal e Vívida – e ajustar a temperatura a partir das definições. A segunda está ativada por predefinição e traz mais vivacidade às imagens, sendo aquela que mais nos apelou. Destacamos ainda o bom nível de profundidade nos tons mais escuros.
A par da qualidade da imagem, o smartphone também marca pontos no desempenho sonoro. O sistema de colunas duplas surpreendeu-nos com um volume potente, sem distorção de frequências. Se prefere usar auscultadores ou auriculares wireless, o áudio espacial HONOR Histen traz mais imersão à experiência de ouvir música ou de assistir a vídeos, numa funcionalidade que precisa de ser ativada primeiro nas definições.
Desempenho e autonomia
O ‘coração’ do Honor 200 Pro é Snapdragon, mas não bate ao mesmo ritmo de um topo de gama e, aqui, convém prestar atenção a uma pequena letra no nome dado pela Qualcomm. O processador Snapdragon 8s Gen 3 é um SoC diferente, concebido em especial para smartphones de gama média.
Apesar disso, o desempenho não deixa a desejar quando se trata de dar uma resposta rápida e eficaz às tarefas do quotidiano, na típica combinação entre navegação online e utilização de apps variadas.
E temos boas notícias para os gamers. O Honor 200 Pro permite jogar com qualidade, inclusive títulos um pouco mais exigentes a nível gráfico. Nos testes com Genshin Impact, por exemplo, o smartphone até aguentou-se bem mesmo com os gráficos no máximo. Notámos algum aquecimento, mas não ao ponto de ser preocupante.
O Snapdragon 8s Gen 3 também ajuda a impulsionar as funcionalidades de Inteligência Artificial integradas no smartphone, como a Magic Portal, que permite arrastar conteúdo, incluindo texto e imagens, para aplicações, ‘aprendendo’ com o comportamento dos utilizadores. A Magic Capsule é outra das funcionalidades em destaque no MagicOS 8.0 (baseado no Android 14), numa funcionalidade ao estilo da ‘Ilha Dinâmica’ do iPhone.
O Honor 200 Pro está equipado com uma bateria ‘generosa’ de 5200 mAh que, com um uso mais intenso, consegue oferecer autonomia para todo o dia. Se for um utilizador com um consumo muito mais regrado conseguirá ter energia para, no máximo, dois dias.
O smartphone suporta carregamento rápido (com fio) a 100 W, que promete encher a bateria até 50% em apenas 15 minutos – isto é, se tiver o carregador compatível. Se preferir, também pode optar por carregamento sem fios, neste caso a 66 W.
BENCHMARKS AnTuTu 993064; CPU 305001; GPU 257513; UX 199013; Memória 231537 • 3DMark: WildLife 6268 (37,54 fps) ; WildLife Extreme 1653 (9,90 fps) • PCMark: Work 3.0 11268 • Autonomia 13h44 • Geekbench: CPU (Single/Multi) 1421/4000; GPU 4296
Ecrã MuitoBom Autonomia MuitoBom Câmaras Muito Bom Construção Bom
Características Ecrã AMOLED de 6,78” (2700 x 1224, 120Hz, 4000 nits) • CPU Snapdragon 8s Gen 3 • GPU Adreno 735 • 12 GB de RAM • 512 GB de armazenamento • Câmaras: traseiras de 50 + 50 + 12 MP; e frontal de 50 MP • Bateria de 5200 mAh • MagicOS 8.0 (Android 14) • 163.3×75.2×8.2 mm • 199 g • IP65
Após duas semanas de competição, muitas conquistas, superações e também algumas desilusões, chegou ontem ao fim a XXXIII edição dos Jogos Olimpícos. Depois da inauguração, com um extraordinário espetáculo a decorrer nas margens do Sena, a cerimónia de encerramento de Paris 2024 regressou aos moldes tradicionais. Desde logo, a festa voltou a estar confinada: no Stade de France, desfilaram comitivas, atletas de todo o mundo, montou-se um espetáculo de luzes e som e, no final, atuaram as bandas francesas Phoenix e Air.
Em vez da abençoada chuva da inauguração, houve confettis em Saint-Denis. Para quem acompanhou a transmissão televisiva, foi um tanto ou quanto aborrecido. Valeu pelo mini-concerto (incluindo o facto de a organização se ter visto aflita para fazer sair os atletas do palco onde os músicos atuavam). Talya Minsberg, uma das enviadas especiais do New York Times, perguntava no feed do jornal ontem à noite: “Pode ser exaustão olímpica, mas perdi toda o sentido de espaço e tempo. Estarei no espetáculo do intervalo do Super Bowl?”
Ter à porta de casa dezenas de tuk-tuks a passarem, todos os dias, não é a situação mais agradável para quem, apesar do boom do turismo, se manteve a residir nas ruas mais pitorescas de Lisboa, Sintra ou Porto, como se de um privilégio se tratasse.
Os bairros tradicionais, repletos de casas destinadas ao alojamento local, estão com lotação esgotada, gerando o caos no trânsito, a escassez de estacionamento, o excesso de poluição e cacofonia que não preserva o sossego dos moradores.
Condutora de tuk-tuk em Lisboa há uma década, Maria Alfama, 58 anos, sente-se uma verdadeira embaixadora da capital e sabe que muito do que diz e mostra aos seus passageiros é a impressão com que ficam de Portugal e dos portugueses.
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Sobrelotação Tanto em Lisboa como no Porto, as zonas mais visitadas são junto a grandes monumentos, como o Mosteiro dos Jerónimos (em cima), e os respetivos centros históricos Fotos: Luís Barra e Lucília Monteiro
“No Miradouro da Senhora do Monte, na Graça, já vi outros condutores a apontarem para a Costa da Caparica e a dizerem que é Sintra ou ‘lá para cima é a Nazaré’, das big waves”, denuncia.
Tanto Maria Alfama como a Associação Nacional de Condutores de Animação Turística e Animadores Turísticos (ANCAT) advogam que seja criado um curso de certificação para os animadores antes da inscrição no registo nacional, que “continua a ser uma licença dada às cegas”. “É por isso que ninguém consegue dizer quantos tuk-tuks há em Lisboa. Defendemos que tenha de se passar por uma formação, para saber, no mínimo, a História de Lisboa e o mapa de Portugal”, acrescenta.
Estas e outras reivindicações já foram ouvidas numa reunião com Filipe Anacoreta Correia (CDS-PP), vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa com o pelouro da Mobilidade, de onde já saíram resoluções.
Em breve, empresários e condutores podem esperar “tolerância zero” nas áreas destinadas ao estacionamento, com operação conjunta de fiscalização a cargo da Polícia Municipal, da PSP e da EMEL.
Passarão a ser obrigatórios a formação dos operadores dos veículos e o seu licenciamento junto da autarquia – e não só do Turismo de Portugal, como acontece até agora –, para que possam estacionar os veículos nas zonas específicas e legais. Haverá também restrição a veículos elétricos em algumas zonas da cidade, ainda a designar.
Contando que existam mil tuk-tuks a circular em Lisboa, o objetivo é limitar para metade (500) os que ficam habilitados a estacionar em 250 lugares autorizados.
Regular a atividade é a forma de colocar um travão à circulação desmesurada de tuk-tuks. Desde 2016, a situação tem vindo a piorar e no bairro da Graça há segunda, terceira e quarta filas de estacionamento, congestionando o trânsito, com táxis que ali ficam bloqueados, com carros que não conseguem sair da garagem, com ânimos exaltados. Ao caos do tráfego turístico da Graça juntam-se o do Castelo de São Jorge, o do Rossio, o do Miradouro das Portas do Sol, o de Belém e o do Terreiro do Paço.
Mais transporte público
Há mais de 30 anos, em 1992, a UNESCO alargou as categorias do Património Mundial e acrescentou a de Paisagem Cultural, com esta classificando Sintra três anos depois. Uma paisagem agora adornada com 50 faixas afixadas em diferentes locais das estradas da serra de Sintra, da Estefânia, de São Pedro e de Vila Velha. Nas telas penduradas às janelas e varandas, nos cartazes expostos nas montras de lojas, cafés e restaurantes leem-se mensagens contra o caos provocado pelo excesso de carros, a exigir políticas sustentáveis e lembrando que “Sintra ≠ Disneyland”.
Nem os moradores do centro histórico (cada vez em menor número) nem os turistas, portugueses e estrangeiros, beneficiam de um desordenamento tão grande. “Queremos Sintra viva e habitada”, “Não ao turismo de massas” ou “Património Mundial sim, parque de diversões não!”, são palavras de ordem da QSintra em defesa da vila, a sofrer uma descaracterização acelerada.
Para Madalena Martins, munícipe e membro da direção da associação, a questão é complexa e, por isso, a solução tem de ser ampla e integrada. “Existe a necessidade de uma gestão multidisciplinar. Sintra tem de ser tratada com pinças”, alerta.
Para travar o trânsito caótico, Madalena fala numa rede com mais transportes públicos, mais eficientes, de preço acessível ou preferencialmente gratuitos, desencorajando levar o transporte particular para a vila.
Os autocarros turísticos também não deveriam circular em estradas estreitas, porque “basta um automóvel mal estacionado para o autocarro não passar, bloquear a via e, por vezes, chega a haver engarrafamentos de vários quilómetros até Mem Martins. É um perigo também em caso de uma emergência médica, com as ambulâncias a não conseguirem chegar rapidamente à ocorrência”.
Madalena Martins considera que os condicionamentos de trânsito, como a proibição da entrada de carros no centro histórico, exceto a residentes, estão pouco e mal divulgados. O que faz com que todos os condutores tentem entrar e tenham depois de inverter a marcha, entupindo as zonas de Colares e de Monserrate.
“Não hostilizamos nem os turistas nem o turismo, não pode é ser fator de destruição e de pandemónio”, sublinha a ativista.
Pelos principais monumentos da vila, como o Castelo dos Mouros e o Palácio Nacional, geridos pela Parques de Sintra, passam mais de 3,5 milhões de visitantes por ano. Um valor que levou a edilidade a reduzir o limite de entradas nos monumentos.
O Palácio da Pena, por exemplo, monumento com maior pressão turística, ao reduzir em cerca de 15% os visitantes diários (seis mil desde o início deste ano), baixou também o total de entradas em 16,5% relativamente a 2023. A mesma medida será aplicada, em setembro, na Quinta da Regaleira, gerida pela Fundação CulturSintra.
Quem mora na principal zona de passagem do fluxo turístico, o eixo que vai do Ramalhão para São Pedro de Sintra, quando sai de casa de manhã, por volta das dez e meia, para ir fazer algo rápido, ao regressar chega a demorar 45 minutos para estacionar o carro.
No que ao trânsito diz respeito, a autarquia construiu um parque de estacionamento periférico na estação da Portela de Sintra, com 550 lugares, mas usados sobretudo por quem trabalha em Lisboa e segue no comboio. Em breve, haverá mais dois parques de estacionamento, no final do IC19 e junto à principal entrada de Sintra: Ramalhão 1, para veículos e autocaravanas, e Ramalhão 2, com 500 lugares. A novidade serão os shuttles previstos para transportar os visitantes até ao centro da vila.
Engarrafamentos no mar
Os problemas replicam-se também no Porto onde, em 2017, já existiu uma tentativa de regular o transporte turístico na cidade e, em setembro do ano passado, a Assembleia Municipal decidiu que tuk-tuks, comboios e autocarros turísticos só poderiam circular entre as dez da manhã e as dez da noite, uma forma de aliviar a pressão quando o congestionamento rodoviário matinal é maior.
Agora, das novas regras, que poderão entrar em vigor no final de agosto, fazem parte as excursões turísticas que, em vez de estacionarem na Cordoaria ou na Avenida dos Aliados, terão de parar nos terminais das Camélias, da Asprela ou na Alfândega, e fazer o pagamento de taxas.
Da zona da Alfândega à Praça da República e da Rua de Cedofeita à Rua de Dom João IV, só poderão entrar os veículos turísticos licenciados. Apesar de o número estimado de tuk-tuks a circular no Porto, cerca de uma centena, seja apenas 10% do que existe em Lisboa, no máximo está prevista a circulação de 40 tuk-tuks e de 24 autocarros de percursos turísticos. Todos terão de ser elétricos, de utilizar um dístico distribuído pela Polícia Municipal e de ceder o sinal de GPS aos serviços da autarquia.
Concorrida Visitar Sintra tornou-se insustentável, uma vila apinhada de turistas, autocarros turísticos, TVDE, tuk-tuks e charretes Fotos: Luís Barra
Não é apenas em terra que o turismo de massas se faz notar. No Algar de Benagil, em Lagoa, um dos bilhetes-postais do Algarve – que recebe um milhão de visitantes, 21% do total de visitantes do Algarve (4 732 165) –, a partir de 13 de agosto há proibições a respeitar.
O acesso às grutas de Benagil, compreendidas entre a Praia do Vale do Lapa e a Praia de Albandeira, inseridas no perímetro do Parque Natural Marinho do Recife do Algarve – Pedra do Valado, não vai permitir o desembarque ou o uso do areal no interior do algar a particulares e empresas, o aluguer de caiaques sem guia nem o acesso a nado ou com meios auxiliares de flutuação. Enquanto o lado poente fica destinado a embarcações a motor (três minutos), o lado nascente será para caiaques, pranchas e canoas (cinco minutos). No máximo, e em simultâneo, poderão estar três embarcações motorizadas (menos de 12 metros de comprimento) e grupos de seis equipamentos flutuantes, acompanhados por outro com guia certificado (máximo de oito minutos). Todos sem sistemas de amplificação de som de forma a não produzir poluição sonora.
Quem gosta de explorar as profundezas do mar deve saber que é proibido, no interior das grutas e nas imediações, mergulhar com escafandro autónomo ou em apneia, exceto em ações de investigação científica, e fazer pesca submarina e recreativa (apeada ou embarcada).
Europa impõe limites
O que tem acontecido em cidades portugueses é em tudo semelhante ao que se passa no resto da Europa, sobretudo em países como Espanha, Itália e Grécia, onde nos últimos tempos se têm realizado manifestações de rua, com uma atitude que ostraciza os turistas.
O Holidu, portal de reservas para casas de férias, fundado em 2014 e com sede em Munique, na Alemanha, elencou as 36 cidades mais sobrelotadas da Europa. Para tal, usou os dados do Euromonitor International, fornecedor britânico de estudos de mercado, e analisou o número de chegadas a cada cidade, em 2023, em comparação com a sua população.
O resultado é a lista de cidades com o maior número de turistas por habitante. E Portugal lá consta, com Lisboa em oitavo lugar, com 11 turistas por habitante, e o Porto logo a seguir, com dez turistas por habitante.
Dubrovnik, na Croácia, lidera o ranking, com 27,42 turistas por habitante – muito graças à euforia gerada por Guerra dos Tronos, série ali gravada –, seguida de Rodes (26,33), na Grécia, e Veneza (21,26), em Itália. As cidades menos “invadidas” são Varsóvia (1,37), na Polónia, Istambul (1,33), na Turquia, e Hamburgo (1,05), na Alemanha.
Contando que existam mil tuk-tuks a circular em Lisboa, o objetivo é limitar para metade (500) os que ficam habilitados a estacionar em 250 lugares autorizados
Em Itália, por exemplo, Veneza continua a impor novos limites, que se estendem às ilhas Murano, Burano e Torcello: 25 pessoas, sem contar com crianças até aos 2 anos, por grupo de excursão com guia, sem megafones para proteger a tranquilidade dos residentes; proibido parar em ruas estreitas, pontes ou locais de passagem (exceto visitas de estudo).
Em abril, a cidade dos canais já se tinha tornado a primeira cidade do mundo a introduzir um sistema de pagamento, cinco euros, para os turistas que não pernoitassem e residissem fora da região de Veneto. Em 29 dias, ao longo dos três meses que durou a iniciativa, foram arrecadados mais de dois milhões de euros, mas sem o efeito esperado na redução de multidões. Assim, em princípio, em 2025, a taxa regressará mas inflacionada.
Segundo uma análise do jornal The Economist, que usa dados macroeconómicos da CEIC Data, de estatísticas governamentais e da consultora Oxford Economics, em termos absolutos de chegadas internacionais, Londres e Tóquio lideraram no ano passado, com 20 milhões de visitantes cada, seguidas por Istambul (17 milhões). No entanto, dividindo os turistas pela população, Amesterdão, Paris e Milão ocupam os três primeiros lugares, com dez, oito e seis chegadas por habitante.
Deixem as gueixas em paz!
O turismo de massas não ignorou o outro lado do globo e o Japão agiu em conformidade. Dia 1 de julho pôs em prática as mais recentes restrições no acesso ao Yoshida, o mais popular e acessível trilho para principiantes para subir ao monte Fuji. No máximo, podem ali circular quatro mil alpinistas por dia, pagando cerca de €12 (dois mil ienes) e o acesso fica vedado entre as 16h e as três da manhã, impedindo a entrada de quem não reservou estada num dos abrigos de montanha.
Em Quioto, no bairro de Gion, desde 2019 é proibido tirar fotografias às gueixas. Este verão, passou a ser proibido aceder às ruas típicas estreitas onde as jovens trabalham e circulam, exceto à principal artéria, arriscando uma multa de cerca de 63 euros. Só assim as autoridades locais e municipais esperam que os turistas parem de filmar, fotografar e tentar tocar nos quimonos das jovens mulheres.
Em breve, a cidade imperial de Osaka poderá vir a cobrar aos turistas estrangeiros uma taxa de entrada para reduzir as hordas de visitantes.
Outra forma de combater o turismo excessivo é não autorizando a construção de novos hotéis, como anunciou o governo local de Amesterdão, nos Países Baixos. Só se fechar uma unidade hoteleira poderá abrir outra e sem aumentar o número de camas.
Entretanto, na Grécia, o presidente da Câmara Municipal de Atenas, Haris Doukas, mandou fazer um estudo sobre a capacidade de carga turística da cidade, isto é, “o número máximo de pessoas que podem visitar um destino turístico ao mesmo tempo, sem causar a destruição física, económica, sociocultural e ambiental e um inaceitável decréscimo da satisfação dos turistas”, segundo a definição da Organização Mundial do Turismo. Porque primeiro estão os residentes.
Será turismofobia?
Em Espanha, a luta continua
Embora Espanha não entre no top 10 do ranking feito pela Holidu, tem registado uma série de manifestações de rua com pregões hostis. Depois das ilhas Canárias, foi a vez de Maiorca, nas ilhas Baleares, reclamar alto e bom som: “Maiorca não está à venda”, “Nómadas digitais vão para casa”, “Não é turismofobia, são números. Somos 1 232 014 habitantes, 18 milhões de turistas”. 20 mil pessoas, incluindo as de 110 organizações cívicas, marcharam no final de julho contra os impactos negativos do turismo excessivo, como sejam o colapso social e ambiental, a descaracterização do comércio local, a descida dos salários, a perda de qualidade de vida e o aumento do preço das casas. Na mesma altura, três mil pessoas protestavam por iguais motivos em Barcelona – a capital da Catalunha é a cidade mais visitada de Espanha, recebendo em média 32 milhões de visitantes por ano. Hotéis e esplanadas de restaurantes também encerraram, juntando-se ao protesto. “Queremos que o modelo económico da cidade dê prioridade a outras economias muito mais justas. E para isso consideramos que temos de diminuir o turismo”, disse Martí Cusó, da associação Vizinhos do Bairro Gótico, citado pela agência noticiosa Associated Press. No País Basco, a cidade costeira de San Sebastián, tal como Veneza, também limitou a 25 pessoas os grupos turísticos no seu centro histórico e proibiu aos guias o uso de megafone. Em Sevilha, capital andaluza, pode estar para breve o pagamento de bilhete dos não residentes para entrarem na carismática Plaza de España.
A palavra desporto aparece em quase todas as linhas do currículo dos 75 anos de vida de José Manuel Constantino. Foi atleta federado, professor de Educação Física, dirigente desportivo em clubes e federações, presidente tanto da Confederação como do Instituto do Desporto, líder da empresa municipal de Oeiras que gere espaços e equipamentos desportivos, culturais e de lazer e, desde há uma década, presidente do Comité Olímpico de Portugal. É, por tudo isto, um observador atento da vida desportiva, mas também do País. Durante uma conversa de uma hora, revela-se, mais uma vez, um pensador lúcido e de discurso elegante, mesmo nos momentos em que aponta erros e chama a atenção para as carências que, ao fim de décadas, continuam a impedir um maior desenvolvimento do desporto português – e, com isso, da própria sociedade em geral.
Quais as expectativas para Paris 2024? Como acha que a comitiva portuguesa vai ser vista pelos portugueses?
Se tiver sucesso, vai ser bem-vista. Se não tiver sucesso, vai acontecer aquilo que é habitual: vão chover as acusações de que os atletas foram fazer turismo, que estamos muito aquém de países com níveis demográficos equivalentes, que se gastou mal o dinheiro e que continuamos na cauda dos países em termos de capacidade competitiva. Se correr bem… o mérito será dos atletas.
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A probabilidade de correr mal é superior à de correr bem?
Sou relativamente moderado nessa matéria. Recordo-me, e você porventura conhecerá esse problema bem melhor do que eu, da nossa missão olímpica aos Jogos de Pequim, com vários campeões do mundo, primeiras posições nos rankings internacionais. Tudo levaria a supor que iríamos ter resultados excecionais. E aconteceu o que aconteceu. Portanto, aquilo que acontece antes dos Jogos permite-nos estabelecer, de algum modo, algumas previsões, mas o que acontece depois é completamente distinto daquilo que nós estimávamos. E, portanto, temos de ter sobre esta matéria uma posição de muita moderação. A circunstância da comitiva ser mais curta – porque o número de provas foi reduzido e porque os critérios de seletividade aumentaram –, além de termos perdido dois elementos de topo, a Auriol Dongmon [campeã mundial de lançamento do peso em pista coberta] e a Patrícia Mamona [medalha de prata no triplo salto nos Jogos de Tóquio], naturalmente que nos debilita do ponto de vista competitivo.
Mas qual é, então, face às circunstâncias, a sua real expectativa?
A minha expectativa é de que aqueles que vão representar Portugal consigam, no mínimo, obter resultados equivalentes aos que estiveram na origem dos seus apuramentos. Se isso for conseguido, já será muito bom. Se isso não for conseguido, não será bom. Se for ultrapassado, será excecional.
Mas, mesmo sendo excecionais, serão sempre resultados inferiores ao dos países europeus de igual dimensão demográfica…
Eu sei que habitualmente é feita essa comparação, até com outros indicadores do PIB, etc. Mas o elemento mais relevante, do ponto de vista da construção de uma elite desportiva, não são esses indicadores, embora sejam condicionantes. O mais importante é a base de recrutamento. Não tem, por isso, grande relevância comparar-nos a países com dimensões demográficas similares, mas que têm uma base de praticantes que duplica ou triplica a nossa, ou seja, com uma capacidade de recrutamento incomensurável, que nós não temos.
O importante, na sua opinião, não é o número de habitantes, mas sim o número de praticantes desportivos?
A base demográfica é um fator influenciador, condicionante, como a base financeira, a cultura desportiva. Mas o número de praticantes é o indicador fundamental. É a base que permite selecionar os melhores e construir uma elite. Do que vale compararmo-nos com a Hungria, que coleciona centenas de medalhas olímpicas, só pelo lado da população? Temos é de comparar a base de praticantes no âmbito do alto rendimento na Hungria com a base de praticantes no alto rendimento em Portugal. Essa é a questão crítica fundamental. E se nós não percebermos isto, e não tivermos políticas públicas que aumentem a base dos praticantes, estruturas que os possam acolher ‒ com o respetivo enquadramento, com treinadores, equipas médicas de qualidade e de apoio ao alto rendimento ‒, nós podemos continuar a fazer essas comparações, mas elas não chegam a uma conclusão que seja crítica para alterar a situação da realidade desportiva nacional, do ponto de vista da competitividade externa.
Portanto, considera que o problema não se resolve só com melhor preparação no treino dos atletas, mas sim com melhores políticas?
São necessárias as duas coisas. Mas, a montante, é preciso que exista uma política de promoção da prática do desporto e critérios de seletividade que permitam identificar aqueles que, tendo melhor qualidade desportiva, possam e queiram dedicar-se ao alto rendimento. Sem isso, teremos muitas dificuldades de competir em condições de igualdade com países que têm indicadores demográficos ou produto interno bruto semelhantes. Podem ser indicadores academicamente muito utilizados, mas que, do ponto de vista funcional, têm pouco efeito.
Porque não existem essas medidas? Por falta de vontade política ou falta de cultura desportiva?
Eu creio que há aqui um problema transversal, que antes de ser político é cultural e que, portanto, condiciona todas as políticas. Por outro lado, o desporto padece também, por fatores de natureza histórica, de enormes fragilidades, porque não tem lobby.
E ter lobby é assim tão importante?
Veja o que se passa na Cultura, que tem fortíssimos lobbies, quer em torno da maçonaria quer em torno do lobby gay, o que não acontece no desporto. Nós já tivemos numa das orientações maçónicas uma importante figura do desporto nacional, mas que não teve qualquer consequência do ponto de vista da construção das políticas públicas. E nos últimos anos tivemos algum recrutamento na área maçónica, que não é propriamente bom exemplo para o País. E do ponto de vista dos movimentos gay, eles estão muito centrados nas questões da inclusão, da igualdade de género, da linguagem inclusiva e da cultura woke, e não propriamente no domínio das políticas públicas. Falta, portanto, na área do desporto, um movimento lobista que pressione a construção de políticas públicas em sentidos distintos daqueles com que elas têm sido construídas nos últimos anos.
Mas quer dizer que as políticas públicas em Portugal são construídas sempre com base em lobbies?
Bem, as políticas públicas em Portugal são, em primeiro lugar, construídas sem memória. A generalidade dos governantes, e não apenas no desporto, chega aos seus lugares de poder e acha que o País começa a partir do momento em que se inicia a sua governação. E, portanto, tem um défice de cultura histórica nas suas áreas de governação que prejudica a construção das políticas públicas. Ora, não é possível construir novas políticas sem fazer uma boa avaliação das razões por que as anteriores falharam. Dou-lhe um exemplo sobre um tema que é muito querido, até dos dirigentes desportivos, que é a questão do planeamento estratégico. Nós temos dezenas de planos estratégicos, temos alguns até, cerca de meia dúzia, em funcionamento e agora quer fazer-se mais um. Mas eu não conheço, até à presente data, qualquer estudo que avalie porque é que os outros falharam. Porque alguns eram, do ponto de vista doutrinário e teórico, muito bem construídos e muito bem elaborados. Existe esta tendência de não olhar para o passado, para a história, para o nosso trajeto e procurar construir novas políticas. Ou, em alguns casos, nem se constrói: anunciam-se novas políticas, desprezando completamente a memória. Não creio que isso seja positivo para Portugal.
Deveria haver um Ministério do Desporto?
Não creio, porque já houve e não resolveu nada. A questão, aqui, é mais substantiva, mais de construção das políticas públicas e de uma ideia desportiva para o País que não faça tábua rasa daquilo que é o seu passado, a sua trajetória, e que olhe para a realidade e estude as suas debilidades. Porque de nada servirá ter um Ministério do Desporto se continuar a repetir, até à exaustão, todos aqueles lugares-comuns com que habitualmente somos confrontados. Alguns dos quais, como a questão do desporto escolar, não têm qualquer evidência, do ponto de vista empírico ou científico. Porque Portugal, no caso do desporto escolar, tem até indicadores de prática muito superiores aos indicadores europeus. De resto, por insuficiente que seja a prática desportiva e escolar, o tecido associativo não tem capacidade de acolhimento de todos aqueles que querem continuar a praticar desporto. Portanto, o problema não reside tanto na escola, mas antes na debilidade do nosso tecido associativo e na incapacidade que tem de acolher o número de praticantes que desejam prosseguir uma via desportiva. Logo, acaba por ter uma lógica estritamente seletiva, acolhendo apenas os melhores, e com as dificuldades que nós conhecemos.
Desculpe a provocação: por que razão Portugal precisa de ter um desporto forte e ativo em todas as camadas da população? É só para ganhar medalhas nos Jogos Olímpicos ou é mais do que isso?
Bom, em primeiro lugar, porque o desporto é um elemento da cultura, da cultura do corpo. E é um elemento que, quando devidamente orientado, tem efeitos de natureza formativa sobre o caráter e a construção da personalidade do próprio cidadão. Em segundo, porque há algumas dimensões da prática do desporto que têm efeitos na promoção de estilos de vida saudável. Em terceiro, porque é um elemento de agregação e de identidade nacional. E, finalmente, porque é um elemento que hoje, à escala global, avalia a competitividade das nações. Creio, portanto, que todos estes elementos justificariam que a nossa política desportiva tivesse uma escala, uma dimensão, uma robustez, um músculo completamente distinto daquele que tem.
Considera que o futebol, e tudo o que gira em torno do futebol, acaba por ofuscar o resto do desporto?
Sim, mas o problema não é do futebol, que, à sua escala, desempenha o seu papel. O problema é que, na minha conceção, se existe um Estado é para corrigir assimetrias e debilidades, para ajudar os mais fracos e apoiar os mais necessitados. O Estado deve criar níveis de desenvolvimento equilibrados, designadamente sustentando os desportos e modalidades que, pela sua natureza e pelas suas características, não têm as possibilidades de aglomeração de recursos e de meios que o futebol como negócio tem. Portanto, deveria haver um papel corretivo do Estado. Mas o Estado, com exceção dos valores do iluminismo ‒ da igualdade, da liberdade e da fraternidade ‒, está hoje completamente vendido ao neoliberalismo e à escola de Chicago. O Estado vive do negócio, apoia o negócio e estimula o negócio. E não há, nas diferentes famílias políticas, diferenças significativas naquilo que o Mário Soares designava como capitalismo de casino. É pouco expectável que, mesmo aqueles que são herdeiros de um pensamento socialista ou social-democrata, corrijam esta rota e não se deixem embalar pelas teses do Silicon Valley, das startups, da globalização, enfim… todas essas teorias que têm dado cabo da Europa e do mundo.
E de que maneira o desporto em Portugal sofre desse excesso de neoliberalismo?
Pela forma como as políticas públicas são encaradas, e até à presente data, pelos míseros orçamentos com que é financiado, valendo-se daquilo que é o mérito da recolha de fundos por parte da Santa Casa da Misericórdia ‒ não é com os impostos dos portugueses. Através de uma manobra interna, conseguiram integrar a receita dos jogos no perímetro do Orçamento do Estado. É basicamente daí que vem o financiamento ao desporto. E que faz com que a dotação que o Estado central tem, até à presente data, para apoio ao desenvolvimento desportivo seja inferior ao orçamento de algumas federações, designadamente a do futebol.
Isso faz com que, por exemplo, Portugal raramente consiga levar desportos coletivos aos Jogos Olímpicos?
Não creio que seja por insuficiência financeira que o futebol e o andebol não estejam nos Jogos Olímpicos de Paris. Foi por insuficiência desportiva, não foi por falta de meios nem de recursos que não conseguiram o apuramento.
Como avalia o financiamento do Estado ao desporto, numa escala de 0 a 10?
Cinco. Em relação ao Estado central, porque as autarquias têm uma linha de apoio ao desporto que está num nível até ligeiramente superior aquele que é a média da União Europeia. E muito do financiamento que é feito ao desporto, sobretudo à escala local, é garantido pelas autarquias. Em relação ao Estado central, o financiamento é perfeitamente miserável, em relação aos valores alocados ao Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) para este distribuir pelas diferentes federações desportivas.
Valores que se mantém mais ou menos iguais de ano para ano, numa repartição sempre feita com base no orçamento do ano anterior…
Sim, sim. De resto, posso estar enganado, e peço desculpa se estiver enganado, eu nunca vi nenhum técnico do IPDJ a acompanhar as competições desportivas das federações e a verificar no local o trabalho que está a ser feito, como é que os recursos são aplicados. É sempre à secretária, no computador, de um ponto de vista estritamente administrativo. Não levantam o rabo da cadeira. Estão ali, como burocratas, a olhar para os planos e, em função das disponibilidades financeiras que têm ‒ haja bom trabalho ou mau trabalho ‒, a avaliar se aquilo que foi pedido foi aplicado para o que se destinava, ou se estava bem fundamentado. São burocratas, não são técnicos desportivos.
Estamos agora a celebrar os 50 anos do 25 de Abril. E convém lembrar que, logo nos primeiros Jogos a seguir à Revolução, em Montreal 76, Carlos Lopes ganhou uma medalha que, na época, parecia que iria ser o sinal de uma nova era no desporto em Portugal. Cinquenta anos depois, como avalia a progressão que existiu?
São coisas distintas. Esse momento ocorreu numa circunstância em que o diretor-geral do Desporto era o Alfredo Melo Carvalho, era o Partido Comunista e o MDP-CDE, que tinham uma cultura marcadamente desportiva e que receberam, então, um conjunto de apoios excecionais para o apoio ao alto rendimento e à participação olímpica. Depois foram afastados…
Esse apoio foi, nessa altura, decisivo?
Muito importante. Muito mérito também do Moniz Pereira, com aquela sua atitude permanentemente chata, de reivindicar tudo.
Havia lobby nessa época…
O Moniz Pereira era um lobista encartado [risos]. Mas, nessas circunstâncias, as coisas correram bem. Depois a situação política alterou-se e houve mudança dos titulares. Mas eu não avalio estes 50 anos como um retrocesso. Acho que evoluímos de forma positiva em muitos setores ligados ao desporto, mas assente basicamente no papel das autarquias, que tiveram e têm um papel decisivo, quer na promoção da atividade física, quer na promoção do desporto, quer na promoção de apoios financeiros, logísticos, operacionais ao tecido associativo local. E, nesse sentido, nós temos hoje, 50 anos depois, um quadro desportivo completamente diferente, para melhor, daquele que tínhamos, naturalmente, quando em 1974 ocorreu o 25 de Abril.
Mas, na altura, pensou-se que poderia ser melhor, quer dizer, da mesma maneira que também há 50 anos os portugueses pensaram que Portugal ia ficar ao nível de outros países europeus numa série de setores, a esperança não foi cumprida totalmente no desporto?
Imediatamente a seguir a esse período há um governo do Bloco Central que decidiu construir escolas sem ginásios. Tem aí a resposta à pergunta que me está a fazer. Um País que toma esta decisão é inclassificável. De resto, fui professor de Educação Física durante 21 anos e, talvez durante 15 desses anos, dava aulas na rua e nos recreios.
Mas em que escolas? Da região de Lisboa?
Caxias e Miraflores. Dava aulas na rua, onde hoje é a estação da Carris. E, portanto, um País que num processo de democratização, de abertura ao mundo e à Europa, tomou a decisão de construir escolas sem ginásios não tem classificação. Sofremos as consequências.
E continuamos hoje a sofrer as consequências?
Hoje, já não. Hoje, há excelentes instalações de Educação Física por esse País fora. Mas há um problema. Há setores muito significativos da Educação Física que não gostam do desporto.
Quais?
Professores de Educação Física. O que é, de algum modo, uma reposição histórica daquilo com que o Pierre de Coubertin foi confrontado, quando ele propôs a renovação dos Jogos Olímpicos, no final do século XIX. Nessa altura, as principais oposições vieram das sociedades médicas, alegando que aquilo faria mal à saúde, e dos professores de Educação Física, centrados na ginástica voluntária, na ginástica respiratória e muito inspirados no modelo sueco. Ele teve imensas dificuldades para fazer valer a sua tese. Essa influência não desapareceu. De resto, tem o exemplo da Escola Superior de Educação Física de Lisboa que mudou de nome para Faculdade de Motricidade Humana, num exercício perfeitamente inovador à escala global, porque havia, naquela altura, hoje é diferente, uma tendência profundamente crítica relativamente ao desporto. E há escolas de formação superior onde alguns dos docentes foram responsáveis pela elaboração dos programas para o Ensino Secundário profundamente críticos relativamente a essa matéria. Nós, a seguir aos Jogos do Rio, fizemos uma reunião com todas as federações desportivas e as faculdades de desporto. Você não imagina como é que aquilo correu. Os tipos mandaram-se aos dirigentes de uma forma perfeitamente inqualificável.
Mas invocando o quê?
A seletividade, a competitividade, a alienação, a segregação, o elitismo… Enfim, um conjunto de críticas de quem não percebe o que é o desporto, a sua história, a sua evolução e, sobretudo, as dificuldades dos próprios dirigentes. Nunca mais repeti essa iniciativa, que não correu nada bem.
É também por causa disso que, sendo Portugal, segundo o Eurostat, um dos países mais sedentários da Europa, não existe um sobressalto na sociedade?
Mais grave é terem manipulado o estudo. Porque os dois únicos indicadores que nos prejudicam são a taxa de filiação associativa e a taxa de participação do movimento associativo na promoção da prática do desporto. Todos os outros indicadores, inclusive o da atividade física, inclusive o do desporto escolar, são superiores àquilo que é a média europeia. E, portanto, a construção das políticas públicas deveria incidir sobre os fatores que nos desvalorizam, que nos desqualificam e que nos colocam naquela posição, e não os outros. A prática da promoção da atividade física tem, à escala de Portugal, indicadores muito superiores à média europeia. Basta ir à rua e ver as pessoas a correr, a nadar, a andar de bicicleta. Só que isto não é desporto organizado…
… É atividade física.
… Atividade física que vai buscar alguns elementos à prática desportiva. Não é aí que está o problema, mas sim no facto de não termos um quadro associativo suficientemente robusto, capaz de acolher e desenvolver todos aqueles que, revelando disponibilidade de interesse e qualidade para a prossecução de uma carreira desportiva, o possam fazer.
E não temos esse quadro porquê?
Por insuficiência financeira e de recursos humanos. Precisamos de renovar o dirigismo desportivo, que está muito envelhecido.
Batemos sempre no ponto da insuficiência financeira…
Batemos nós e os outros setores. O desporto não é menos do que os outros, tem custos e precisa de apoios financeiros. Em especial, para os grupos sociais mais carenciados, que não têm possibilidade de agarrar nos filhos ou netos e pô-los na natação, na ginástica, no ballet, no voleibol, nas escolinhas de futebol…
Posso estar a ser injusto, mas sinto-o pessimista em relação ao futuro do desporto português…
Sou pessimista do ponto de vista da razão, mas sou otimista do ponto de vista da vontade, do sentido de alterar as coisas. E, portanto, procuro encontrar algum equilíbrio relativamente a esta matéria. Mas tenho a idade que tenho e passei por várias fases. Venho ainda do tempo da ditadura e, por circunstâncias várias, contactei de perto com vários titulares e responsáveis pela área do desporto. E, por obrigação profissional, também acompanhei sempre este setor. É natural que tenha alguma sensibilidade, umas vezes com razão, outras vezes de forma injusta, mas tenho alguma sensibilidade.
É um observador próximo desta temática há muitas décadas. Qual é a leitura que faz dessa evolução. Sentiu alguma vez que andou a pregar no deserto?
Isso sinto muitas vezes. E tenho alguma frustração, gostaria que as coisas pudessem ir por outro caminho. Da minha parte, dou tudo o que tenho, e coloco tudo o que aprendi à disposição do movimento desportivo do País. Em certos casos, com algum sucesso em outros casos sem qualquer sucesso.
Quais foram as derrotas que lhe custaram mais?
Eu tive dois momentos muito dolorosos, um do ponto de vista pessoal e outro do ponto de vista institucional. Do ponto de vista pessoal, foi a atitude que o comodoro Patrick Monteiro de Barros tomou nos Jogos do Rio, em que destratou o Comité Olímpico de Portugal por causa do vestuário oficial da missão, que era da Salsa Jeans, e que tinha sido escolhido pela comissão de atletas. As declarações públicas que ele fez magoaram-me profundamente. Eu sei que ele tem um problema pessoal comigo, relacionado com a circunstância de, por incúria pessoal, não ter declarado um medicamento que tomava para a hipertensão e ter tido uma sanção antidoping. Mas eu, pese embora as pressões políticas que tive para abafar o caso, cumpri aquilo que era a minha obrigação.
E do ponto de vista institucional?
Aquilo que se passou com o anterior titular da Agência Nacional Antidopagem, que colocou Portugal em termos internacionais pelas ruas da amargura. E que foi um processo profundamente doloroso de ser gerido. Com riscos, muito elevados, para a suspensão de Portugal na participação em competições internacionais. E que é uma história que nunca se vai escrever, quer pelas proteções que a personalidade em causa tem quer porque… já passou. Ninguém está interessado em perceber como foi possível o Estado português ter entregado uma área de tamanha responsabilidade a uma pessoa que não estava qualificada para o exercício daquelas funções.
E as vitórias que recorda?
O carinho dos atletas, o apoio da generalidade das federações desportivas e as manifestações de solidariedade que tenho recebido da parte de um número muito significativo de pessoas ligadas ao desporto.
O Estado, com exceção dos valores do Iluminismo — da igualdade, da liberdade e da fraternidade —, está hoje completamente vendido ao neoliberalismo. O Estado vive do negócio, apoia o negócio e estimula
Foi professor de Educação Física, que conselho daria aos professores de hoje?
Que estudassem a história da Educação Física. Que deixassem por uns tempos o computador e lessem.
E, com esse estudo, fazerem depois o quê com os alunos?
Em primeiro lugar, perceberem a origem da Educação Física, a origem do desporto, os seus fundamentos, não apenas de caráter sociológico, mas sobretudo de caráter filosófico. E, depois, perceberem que a Educação Física, ou a educação do corpo se quiserem, é um elemento essencial na construção da personalidade dos jovens, se bem orientada. Não é pelo simples facto de se distribuírem umas bolas às crianças que, por osmose, os valores que estão associados à prática do desporto são assimilados e interiorizados. É preciso uma ação pedagógica e essa tem de ser garantida por parte do professor.
Já disse que as autarquias foram fundamentais para o desenvolvimento desportivo do País. Também trabalhou muitos anos numa câmara municipal. Que conselhos daria aos autarcas nesta área?
Que se preocupassem com a promoção do desporto, equilibrando-a com a promoção da atividade física. A promoção da atividade física enche o olho, a promoção do desporto é complexa, difícil, trabalhosa e conflituosa. Ter 100 campos de minivoleibol ou de minifutebol no Estádio Nacional tem um grau de complexidade completamente distinto do que fechar a Avenida Marginal ao trânsito e permitir que as pessoas a usem. Sem perderem a perspetiva da promoção do estilo de vida saudável, perceberem que o desporto é um exercício complexo, trabalhoso, que exige qualificação e que pede uma intervenção mais equilibrada com as políticas de promoção da atividade física.
Também foi presidente do Instituto do Desporto, um cargo de escolha política. Que balanço faz desse período? Eu sei que foram apenas dois anos. Não deu para fazer nada?
Olhe, deu logo tempo para eu não aceitar os delegados distritais que, por acordo que havia entre o PS, o PSD e o CDS, já estavam pré-designados. Eu fiz questão de não aceitar ninguém sem previamente os entrevistar. E houve alguns que não aceitei. Deu oportunidade para uma separação de águas entre aquilo que é o Governo e aquilo que é a Administração Pública. Eu era funcionário do Estado, não era funcionário do Governo. Deu para ganhar autonomia, que me foi respeitada pelo secretário de Estado Hermínio Loureiro, para o exercício das minhas funções e das minhas obrigações. Deu-me oportunidade para pôr o meu lugar à disposição quando percebi que queriam entregar parte do Estádio Nacional aos privados.
Mas isso quer dizer que já nessa altura era contra o neoliberalismo no desporto?
Completamente. De resto, a primeira questão que coloquei ao governante foi esta: mas eu nem fui votante do PSD. Portanto, vocês estão a escolher uma pessoa que nem foi vosso votante? Disseram-me que isso não era problema, disseram-me. Depois, editei um livro em que coligi uns textos que escrevia para o jornal Record, em que manifestava posições críticas relativamente ao presidente do Governo Regional da Madeira. Ainda me perguntaram se era possível evitar a publicação. Eu respondi: não, já está impresso. E saiu. Ninguém me levantou qualquer problema. A minha autonomia foi inteiramente respeitada. Eu só tenho de dizer bem do Hermínio Loureiro, como de todos os titulares da pasta do Desporto, com uma pequena exceção, que também foi curta, que foi a do secretário de Estado de Desporto Alexandre Mestre.
Porquê?
Porque ele homologou um parecer da Inspeção-Geral de Finanças completamente assassino para o Comité Olímpico de Portugal, numa matéria em que ele é especialista, e em que nós éramos obrigados a repor cerca de meio milhão de euros, correspondentes ao período em que os meus antecessores, presidente, secretário-geral e tesoureiro foram remunerados. Matéria que está perfeitamente regulada em termos de Carta Olímpica, e em que Portugal e Andorra são as únicas exceções em termos europeus, cujos titulares não são remunerados. E, portanto, criou-nos imensas dificuldades. Isto, além de se ter envolvido numas conversações para tentar evitar a minha eleição para presidente do COP. Quanto ao resto, não tenho qualquer razão de queixa, com nenhum titular, do ponto de vista pessoal, do ponto de vista institucional. Mas com divergências políticas, naturalmente.
Quais divergências?
Temos, naturalmente, uma divergência de fundo em relação ao financiamento. Eu admito que os titulares do Desporto fazem tudo o que lhes é possível para melhorarem o orçamento. Mas os tipos das Finanças e do Orçamento estão-se completamente nas tintas para aquilo que eles dizem. E o ministro que os tutela não tem músculo suficiente para chegar à mesa e impor algo ao primeiro-ministro. Portanto, eles gerem aquilo que têm, fazem umas aritméticas e apresentam as coisas da forma que, do ponto de vista da argumentação política, lhes é mais favorável.
Acabámos de mudar de governo. Não sente diferenças substantivas?
Até à presente data, não. Não me ocorre nenhum facto político relevante que eu possa comentar. Só que tenho uma excelente relação de natureza pessoal e institucional com o secretário de Estado, dr. Pedro Dias. Mas, do ponto de vista político, não tenho ainda o que comentar.
O olimpismo criado por Pierre de Coubertin era quase uma filosofia. Acha que ainda tem essa capacidade de poder mudar o mundo?
O olimpismo hoje é um negócio.
É só um negócio?
Completamente.
Se o movimento olímpico invoca um estatuto pacificador de relações entre os povos e as nações, então não pode ficar mudo e quedo quanto ao que está a acontecer na Palestina
Já não tem presente os ideais de Coubertin?
Isso é apenas para ornamentar o discurso político. Quando nós vemos o Gianni Infantino, presidente da FIFA, como membro do Comité Olímpico Internacional a opinar sobre as grandes questões do olimpismo, fica tudo explicado. O olimpismo é hoje um negócio puro e duro, vendido aos patrocinadores, com muito dinheiro distribuído pelos comités olímpicos nacionais, e, portanto, está completamente subjugado ao neoliberalismo e ao negócio. E o exemplo mais gritante disto é essa ideia peregrina de integrar os desportos eletrónicos no sistema das práticas desportivas. Não há outra razão, que ajude a explicar esta circunstância, que não seja o negócio.
Os ideais de Coubertin foram traídos?
Esqueça isso! Esqueça isso! Quais ideais de Pierre de Coubertin? Esqueça isso! Os ideais de Pierre de Coubertin servem para pôr lá nas paredes e para invocar isto e aquilo. A maior parte dos titulares dos órgãos da decisão não é do Comité Olímpico Internacional nem tem cultura coubertiana. Não estudou o olimpismo nem se preocupa com essa matéria. Se verificar os recrutamentos que são feitos para o Comité Olímpico Internacional, o que vai encontrar são políticos ou homens de negócios. Não vai encontrar filósofos, não vai encontrar pensadores, não vai encontrar intelectuais, não vai encontrar gente que ajude a pensar o desporto e que o ajude a promover um mundo melhor e um mundo mais pacífico.
E, no atual momento do mundo, acha que estes próximos Jogos Olímpicos vão ser profundamente políticos também?
O Thomas Bach tem declarações contraditórias. Uma, que os Jogos são políticos e, outra, que os Jogos são apolíticos. Mas a melhor resposta para dar à pergunta que me está a fazer é olharmos para a posição do Comité Olímpico Internacional relativamente a Israel. Não está a acontecer nada na Palestina? Qual é a posição do Comité Olímpico Internacional? Conhece-a? Que haja uma cultura anti-Rússia da parte do Thomas Bach, por razões até de origens históricas e culturais, e por força da violação quer da trégua olímpica quer do direito internacional por parte da Rússia, você não vê algo semelhante relativamente aos israelitas ‒ que criaram um grupo terrorista chamado Hamas e o armaram, rejeitando as negociações com as forças moderadas palestinianas ‒, que estão a massacrar e a dar cabo na Palestina. Pergunto: qual é a posição do Comité Olímpico Internacional? Conhece-a? Eu não conheço.
E devia ter?
Deve ter em relação à Rússia, como deve ter em relação a todos os conflitos que violam direitos fundamentais dos cidadãos. Se o movimento olímpico invoca um estatuto pacificador de relações entre os povos e as nações, não pode ficar mudo e quedo relativamente ao que está a acontecer na Palestina. Portanto, tem de fazer o mesmo que faz o secretário-geral das Nações Unidas, que é denunciar. E, se for caso disso, castigar.
Vivemos também numa época em que o discurso xenófobo e racista se tornou mais visível. O desporto deve ser uma arma contra esse discurso?
Sim, claro.
Os atletas devem ter intervenção política?
O desporto tem uma capacidade inclusiva, como agora se diz, muito significativa. E nós observamos isso, nós olhamos para as seleções no Europeu de futebol e verificamos que há muitos atletas com origens diferentes, que estão socialmente integrados. O desporto seguramente que deu um contributo positivo ‒ e oxalá continua a dar ‒ para a inclusão dessas pessoas. Mas tendo também consciência de que, com a forma desregulada como a Europa absorveu as diferentes imigrações e com o crescimento da extrema-direita, se criaram imensas dificuldades a uma política inclusiva.
O Comité Olímpico de Portugal apoia atletas refugiados. É o sinal certo que a sociedade deve dar?
Claro, devemos fazer tudo aquilo que está ao nosso alcance para ajudar aqueles que precisam. Se há cidadãos que foram expulsos ou tiveram de fugir a guerras, Portugal, tendo condições, deve dar-lhes todo o apoio para que se sintam socialmente integrados e responsáveis perante o país que os acolhe.
Um atleta que use o palco dos Jogos Olímpicos para exprimir as suas opiniões políticas ou a defesa dos direitos humanos ou a denúncia de alguma atrocidade deve ser penalizado ou não?
Não. Os Jogos Olímpicos devem ser um espaço de liberdade e, portanto, os atletas devem ter toda a liberdade para poderem exprimir as suas opiniões, devendo, porventura, naturalmente fazê-lo em contextos próprios. Mas o princípio geral, o da liberdade de expressão, deve ser perfeitamente salvaguardado em relação aos atletas, aos dirigentes, enfim, às pessoas em geral. Era o que mais faltava que houvesse uma mordaça para que, durante os Jogos Olímpicos, os atletas não pudessem exprimir as suas opiniões.
Muito bem, quais foram os momentos mais importantes do desporto português nos últimos 50 anos?
Eu creio que os títulos internacionais que o País tem alcançado, nas mais diferentes modalidades. Para um país pequeno, com as dificuldades que temos, apesar de tudo, em algumas modalidades e em certos contextos, temos um nível de competitividade externa extraordinário. E isso deve ser valorizado, até pelas dificuldades de base com que somos confrontados.
E, em termos particulares, quais foram as vitórias que mais o marcaram?
As medalhas que alcançámos nos Jogos Olímpicos. E alguns diálogos que tive com os atletas que, por razões óbvias, ficam apenas entre mim e eles.
Alguma vez, Portugal conseguirá organizar os Jogos Olímpicos?
Durante os meus anos de vida, acho que não. A organização de uns Jogos Olímpicos envolve dimensões, escalas e valores para as quais não temos qualquer capacidade.
Há quem defenda que uma candidatura seria importante, porque obrigava o País a pensar o desporto de outra maneira, a criar planos de longo prazo.
É falar com os gregos, com os brasileiros e até com os chineses e perguntar quanto aquilo custou e para que serviu. A Grécia, então, é um caso paradigmático. Eu creio que os países ricos do Golfo Pérsico vão dinamitar completamente a organização deste tipo de acontecimentos e os petrodólares vão marcar o futuro do mundo desportivo.
Quem mensagem gostaria de deixar aos portugueses para os Jogos de Paris?
Que apoiem a missão olímpica portuguesa, que apoiem os atletas portugueses, que tenham presente que estar nos Jogos Olímpicos já não é como no passado, em que bastava ter dinheiro para pagar a participação. Participar nos Jogos Olímpicos é hoje um exercício extremamente difícil, complexo, trabalhoso, que demora muito tempo a construir. Só está nos Jogos quem já revelou um valor desportivo extraordinário. Estou seguro de que, se as coisas correrem bem, o carinho e o apoio não faltarão. Espero que, se não correrem bem, essa compreensão tenha algum peso na avaliação final aos resultados da missão.
(Entrevista publicada originalmente na VISÃO nº 1638)
Não tenho, mas gostava de ter, o conhecimento direto e único do Rui Tavares Guedes sobre os Jogos Olímpicos. Poucos viram o que ele viu e estiveram onde ele esteve. Mas de longe, a maior de todas as impressões com que fiquei destes jogos, que correram impecavelmente, foi a verdadeira utilização da cidade de Paris para a sua realização.
Estes foram mesmo os Jogos Olímpicos de Paris! A Torre Eiffel e todos os lugares históricos e imponentes da capital serviram de palco para memoráveis exibições desportivas, e isso encantou os locais e os que vieram do mundo para participar e assistir a estas Olimpíadas.
Percebe-se, por isso, o custo mais contido desta organização, que deve ter atingido os 10 mil milhões de euros. O Japão gastou 35 mil milhões de dólares, e o Brasil ultrapassou os 16 mil milhões. O retorno estimado e calculado ainda está por apurar, mas o turismo, o comércio e o investimento em infraestruturas impulsionaram e renovaram a cidade.
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É um exemplo feliz a ser seguido. Paris sentiu diretamente os Jogos, nas suas ruas, nos seus palácios, nos seus estádios e no seu Sena (mais “lavado” apesar de tudo). Nada de construir, e depois abandonar, olímpicas “cidades” e “aldeias”. Foi uma grande ideia, uma grande organização e um grande sucesso. Como vão ser os Jogos em Los Angeles?
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
No consultório, situado na Avenida de Roma, em Lisboa, destacam-se várias gravuras emolduradas, feitas com tinta da china. Boa parte delas, da autoria do pai, convivem com desenhos oferecidos por pacientes. “É uma forma de reconhecimento”, esclarece o anfitrião, oferecendo a sua cadeira e sentando-se numa das outras, dispostas em círculo. O sotaque açoriano e o apelido sugerem uma ligação, que confirma, ao escritor João de Melo, presente no lançamento do novo livro: “O avô dele era primo do meu avô.”
Em Lugares Escondidos da Mente – Do mais sombrio ao mais luminoso da natureza humana (Bertrand, 208 págs., €16,60), o coordenador do Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria no Hospital Fernando Fonseca aborda as muitas facetas que nos definem enquanto humanos e convida os leitores a percorrerem os lugares mais recônditos e obscuros da psique. João Carlos Melo tem marcado presença em podcasts de saúde mental e, como na palestra sobre a cura pelo amor na personalidade borderline (TEDxLisboa), realizada no início deste ano, volta a sublinhar a função transformadora dos afetos e da esperança em tempos de brumas e de incertezas várias.
Após décadas de experiência clínica, que mudanças assinala na relação entre médico e doente? Desde 2004 que estou no Hospital de Dia (do Amadora-Sintra), mas regressei ao Internamento durante a pandemia e notei grandes diferenças. O papel deu lugar ao computador e muitas pessoas queixam-se, porque o médico não olha para elas. O tipo de patologia também mudou. Em Lisboa e Vale do Tejo, por exemplo, há mais doentes graves. As urgências e os internamentos em Psiquiatria estão cheios, até nos hospitais privados. As pessoas sentem-se mais sozinhas, a vida é mais stressante e, com as redes sociais, tem-se a ilusão de comunicar em rede, mas falta contacto humano.
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No novo livro, aborda as nossas facetas luminosa e sombria como se estivesse a conversar à mesa de um café. Qual é a sua técnica? Procuro não me repetir na forma de escrita e nos temas que me interessam. Grande parte do meu dia é a atender pessoas e, quando tenho alguma pausa, vou juntando fragmentos e ideias, tomo notas, faço um índice provisório e, mais tarde, vem o texto corrido: escrevo, revejo, emendo, deixo de lado, volto lá. Neste livro, quis abordar o outro lado das coisas: o consciente e o inconsciente, o sadismo e o masoquismo, a bondade e a maldade, as questões do corpo e da mente e, ainda, quantos lados tinha a solidão. Como esse capítulo ficou maior do que os outros – e esse período coincidiu com a pandemia –, decidi transformá-lo numa obra autónoma [Uma Luz na Noite Escura]. Só então retomei o que estava em standby, sobre os mecanismos que estão por detrás da aparência.
Como explica a nossa faceta sombria e violenta? No reino animal, há espécies que matam os seus – os suricatas, os veados e as gazelas e os primatas –, mas nenhuma o faz com gozo e sadismo como a humana. Um modelo que ajuda a explicar isso refere que, há seis milhões de anos, havia uma população de símios semelhantes a alguns chimpanzés, numa zona de África que compreende o atual Congo e a Etiópia. Fenómenos geológicos profundos separaram a população em duas: uma evoluiu até chegar a nós, a outra conduziu ao chimpanzé comum, descoberto há 400 anos, e ao bonobo, há cem. Estes, mais parecidos connosco em elegância e empatia, têm uma comunidade matriarcal e resolvem problemas com sexo. Os outros, guerreiros, hierárquicos e pouco empáticos, matam os da sua espécie. Temos um pouco de cada um deles.
Por que razão a psicopatia não está classificada como uma doença mental? Classicamente, não se considera doença, mas não é normal. Na doença mental, a pessoa não tem responsabilidade sobre o seu comportamento ou sintomas, da mesma forma que não escolhe ter febre ou dores. A psicopatia é uma perturbação do caráter que se manifesta num funcionamento social, que não é harmonioso nem saudável. Porém, se sabe o que está a fazer, a pessoa deve ser responsabilizada por isso.
O que distingue um psicopata de um psicótico, já que os termos, parecidos, se prestam a confusão? Um psicótico tem alucinações e delírios que o afastam da realidade. Um criminoso comete atos pelos quais pode ser preso. Alguns psicopatas não cometem crimes, mesmo que seja à custa de estudar o Código Penal, sabem o que fazer, ou não, para evitar serem apanhados, mas muitos serial killers são psicopatas, porque não têm empatia. Uma pessoa com síndrome de Asperger também não a tem, é capaz de chegar ao pé de alguém e dizer “estás tão gordo!” por lhe faltarem neurónios-espelho, sem perceber que pode magoar o outro e deixá-lo triste. Se lhe explicarem isso, pode comportar-se de outra forma, mas um psicopata não respeita nem tem sentimentos pelos outros, eles são um meio para ele obter o que quer.
Esse tipo de funcionamento é fomentado pelo ambiente? Se houver predisposição, circunstâncias como a falta de valores e princípios e de educação, a competitividade, a rivalidade ou a necessidade de poder podem favorecer atos psicopáticos.
Já se cruzou com alguém assim, na clínica ou na vida pessoal? Tive doentes com algumas características psicopáticas. Um psicólogo francês construiu uma escala – mais usada em contexto forense – e, se a pontuação for superior a 30, pode dizer-se que a pessoa é psicopata, mas há que levar em conta os gradientes entre zero e trinta. Estima-se que existam 2% da população com estas características, mas não as identificamos se nos cruzarmos com indivíduos que as têm. Alguns são mais sedutores, mais fascinantes ou com mais carisma.
Quase se confundem com o perfil do narcisista. Um indivíduo com características narcísicas que não tenha empatia, compaixão, culpa ou remorso também é um psicopata. Dou-lhe um exemplo: um homem que tem sentimentos de grande inferioridade, baixíssima autoestima e uma masculinidade devastadora, se for mais neurótico – mais normal –, isto manifesta-se de determinada maneira, porque tem consciência de que não vale nada, fica angustiado e a mente arranja forma de transformar isto em sintomas como a disfunção erétil ou ejaculação precoce. Quem é perverso não sente essa inferioridade, que se manifesta em comportamentos. Por exemplo, ir a escolas, abrir a gabardina e mostrar o pénis, que dá a ilusão de ter um poder fálico.
Como lida com psicopatas que recorrem à terapia? Quem é psicopata não tem propriamente uma doença e não pede ajuda. Pode fazê-lo se estiver deprimido, ansioso ou com insónia – e falo no masculino, porque a maioria são homens – mas, assim que o problema fica resolvido, deixa de vir às consultas. Ou então faz falsos pedidos de psicoterapia: aparece porque a mulher lhe fez um ultimato e ele não quer perder a pessoa para evitar a perda. Nesses casos, digo que não vale a pena, pois, se não admite que quer mudar, o tratamento seria uma farsa.
Assistimos ao avanço dos populismos e da direita radical, mas há também grandes grupos que resistem e têm influência para mudar esse rumo. O caminho faz-se entre a luz e as trevas
Pode explicar o que quer dizer quando fala em violência com máscara de sanidade? O psicopata tem uma imagem confiante e dele se diz “é um grande líder”, “é autoritário mas tem de ser” e coisas do género, mas quem lida com ele queixa-se: humilha sem dó nem piedade, faz bullying e assédio e tem atitudes que enlouquecem os outros. Se lhe perguntam “porque me humilha?” vai negar e dizer “está a precisar de umas férias”, invalidando o que o outro sente. O abuso de poder também acontece em privado. Nas relações amorosas, escolhe a vítima, dá-lhe o que precisa para se fazer necessário e ligar-se a ela, e depois seduz quem está à volta.
A sociedade que temos está a atravessar um período mais negro? Há fenómenos cíclicos e uma tendência para as sociedades e culturas se autorregularem. Assistimos ao avanço dos populismos e da direita radical, mas há também grandes grupos que resistem e têm influência para mudar esse rumo. O caminho faz-se entre a luz e as trevas.
Critica-se os media por só darem más notícias, levando a mais ansiedade e descrença. É assim? O cérebro humano está programado para destacar as notícias que têm sangue e estimulam a curiosidade. Por exemplo, “sabias que fulano, que é diretor, bate na mulher?” De um modo geral, os jornalistas querem transmitir factos e acredito que muitos gostariam de divulgar coisas boas, mas, se alguns decidirem fazer isso, podem ser engolidos pelos que apostam nas notícias bombásticas. As boas também existem e há media que as divulgam. Costumo ouvir uma rubrica na Antena 1, Histórias com Final Feliz, mas o que vende é o Cristiano Ronaldo que falhou o penálti e o outro que o criticou.
Há um século, o lema era transformar o sofrimento histérico em infelicidade comum. E hoje? Hoje, assiste-se à ditadura de ter de ser feliz. Ao mesmo tempo, há movimentos de oposição a isso. Ocorre-me o livro A Arte Subtil de Saber Dizer Que Se F*da [Mark Manson], que vendeu muito por ser um manifesto contra esta tendência. Aceitar a imperfeição é mais realista e saudável, pois quem se submete a uma fasquia criada por si e influenciada pelo meio social, centrado na felicidade, sente-se um falhado.
A proximidade dos clínicos com os seus públicos – nas redes sociais e número de seguidores, por exemplo – comporta riscos? Na minha formação, aprende-se que o psicoterapeuta não deve falar de si nem expor coisas da sua vida, mas também é verdade que os pacientes mais graves apreciam ver a face humana dos seus terapeutas e se sentem orgulhosos por eles terem visibilidade.
Era um jovem no 25 de Abril. A democracia está na crise da meia-idade? Eu tinha 13 anos e estava no liceu. Mandaram-nos para casa, por estar a haver uma revolução. Pensei que era uma coisa má, porque essa era a palavra que o meu pai usava quando chegava a casa e via os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Mais tarde, ouvia os colegas do liceu a dizer “o professor tal é fascista” e assim fui ganhando outra visão dos acontecimentos. Lembro-me de, na escola primária, todos vestirem a farda da Mocidade Portuguesa no 10 de Junho e de o meu pai não deixar que isso acontecesse, porque éramos diferentes dos outros, e ninguém nos fez mal por causa disso. Dessa experiência retirei a coragem dele e o caráter pacífico daquela sociedade, que era pobre e com atraso a muitos níveis.
Mas voltando à democracia… Não senti a crise da meia-idade e prefiro falar em maturidade, em que há lugar para desilusões e, também, entusiasmos. Noto a mesma coisa na sociedade: pode não haver aquele fascínio, a revelação do que foi a liberdade, mas ver o espírito de festa e tantos jovens nos 50 anos do 25 de Abril é um exemplo desse entusiasmo.
Há razões para ter esperança na Humanidade e admitir que há, mesmo, almoços grátis? Acredito na capacidade de autorregulação e de renovação das sociedades. Sendo realista e baseando-me na minha experiência, posso concluir que, para algumas pessoas, não há almoços grátis, porque nunca dão ponto sem nó e, se dão alguma coisa, cobram mais tarde, mas outras fazem-no sem estar à espera de receber, e isso é um almoço grátis. As pessoas que têm apresentado os meus livros, nada tinham a ganhar com isso, fizeram-no por generosidade, e estou grato.
Portanto, que os lados bons não sejam apagados pelos maus, que chamam mais a atenção. É isso? É. As coisas negativas da natureza humana destacam-se mais, mas as partes boas, luminosas e brilhantes existem e devemos agarrar-nos a elas.