Existe no horizonte a possibilidade de um futuro de ouro, com novo visto que não se vende ao quilate, mas que se poderia conquistar com o diploma certo. Um passaporte português para quem nos ajude a pensar o futuro, e não apenas a inflacionar o presente.
Transformámos os centros urbanos portugueses em postais turísticos habitados por fantasmas — não de gente que partiu desta para melhor, mas para o Barreiro, Alhandra e Seixal, que as rendas em Lisboa assustam mais do que almas penadas. Vendemos os centros históricos a retalho, os bairros ao metro quadrado, a identidade de um país ao desbarato e o passaporte ao branqueamento de capitais. O anterior visto gold ajudou a transformar os grandes centros urbanos em autênticos resorts, onde cada cliente nem precisava de pulseirinha para o all inclusive imobiliário. E se, agora, lhe déssemos uma nova vida, mas desta vez mais digna? Em vez de malas de dinheiro que rebentam com o orçamento mensal de quem tem de viver com muito pouco, a entrada podia faturar-se com boas ideias. Se é para trazer massa para o País, que seja também da cinzenta.
Antigamente, os turistas vinham pela sardinha, hoje, chegam pelo like no Instagram. Há um par de décadas, chuchavam a gordura dos dedos que pingava do pão, hoje, chupam palhinha de cocktail, em rooftops e sunsets. Somos a Flórida dos reformados do norte da Europa, a nova Cancún de “expats” e “criptodudes”, com tanto de conhecimento sobre mercados financeiros como sobre a história dos edifícios históricos que agora habitam. E atentem que vem aí nova fornada, que a bitcoin voltou a subir.
Se o visto gold ajudou a branquear máfias oligárquicas e empresários internacionais de currículo pouco recomendável, porque não oferecê-lo, agora, às grandes cabeças em fuga, quando a Europa desespera por inovação e boas ideias? Um Research Gold Visa, que o estrangeirismo ainda é necessário para aliciar forasteiros. Um passe dourado para quem tem grandes ideias e as quer pôr em prática. Engodo certo para cientistas, investigadores, empreendedores tecnológicos, grandes mentes em fuga da purga intelectual que está a assolar o nosso ex-aliado do outro lado do oceano.
Nos Estados Unidos, a nova vaga trumpiana apelida as universidades de inimigas da civilização ocidental e de ninhos de subversão. Há congressistas que acham que a ciência é uma conspiração globalista e acusam académicos de serem anti-cristãos — como se a ciência fosse um ato de fé — , lutam para despedir funcionários públicos, técnicos ambientais e climatologistas que se atravessem no caminho do carvão e do petróleo, entre muitos outros colecionáveis que fariam sucesso numa qualquer caderneta de cromos de estupidez. Por lá, sabemos ainda que os profissionais de saúde e toda a área da investigação médica correm perigo, quando o novo secretário da Saúde acredita que há químicos na água a trocar-nos os géneros e vacinas que provocam autismo. Aqui, na Europa, somos maioritariamente pelas vacinas, ainda que tenhamos consciência de que as únicas eficazes contra a ignorância sejam a ciência e o conhecimento. Bibliotecas esvaziadas, fundos cortados, vistos revogados. Estão a um pequeno passo de um novo Grande Salto em Frente, agora a Ocidente, que, tal como o original, terá seguramente um efeito contrário. Só falta começarem a matar todos os pardais, como o Grande Timoneiro chinês, convencidos de que assim terão maiores colheitas, deixando o país à sorte de fruta bichosa, numa espécie de fome intelectual. Um estado que desconfia da inteligência não pode ser grande amigo do seu futuro.
Se o país que outrora foi farol da inovação parece ameaçar apagão científico, que se acene vigorosamente com alguma luz deste lado do Atlântico, para que estes novos refugiados intelectuais encontrem porto seguro neste bonito país à beira-mar plantado. Em troca, em vez de um apartamento de 500 mil euros em Alfama, aceitamos a criação de bolsas de investigação, a integração num centro científico ou até o lançamento de uma startup tecnológica com base em conhecimento avançado. E, se é para sonhar em grande, que se aponte para o interior: crie-se um centro de investigação de saúde e biotecnologia no coração do Alentejo, um novo vale de silício no nordeste transmontano — talvez o silêncio os ajude a pensar com maior clareza — , um novo departamento de sustentabilidade no Sabugal, onde se estuda o clima com vista para a serra.
Por esta razão, a União Europeia criou o programa “Choose Europe for Science”, e já sabemos: portugueses são finos a aproveitar fundos europeus, sendo que aqui não temos de cortar oliveiras a favor da concorrência ibérica. França e Alemanha não precisaram do tiro de partida para se lançarem nesta corrida ao novo ouro intelectual. Podem ter melhores universidades, infraestrutura e capital, mas até os reformados franceses e alemães sabem que nada bate o nosso clima, os nossos encantos naturais e gastronomia. Aqui, temos mar, rios, montanhas, o pãozinho quente e o pastel de nata logo pela manhã. Oferecemos trabalho em ambiente de férias, com possibilidade de copo com sombrinha depois do trabalho e pezinho na areia. Por cá, ainda encontram custo de vida em saldos, até para um dólar a desvalorizar, um ambiente de segurança raro para toda a família, que prometemos ajudar a integrar na sociedade portuguesa, onde as crianças podem brincar na rua e encontrar livros e diversidade nas bibliotecas.
Mas o País não é só cenário para histórias com final feliz. Hoje, Portugal é reconhecido como viveiro de talentos nas áreas de programação e engenharia informática, por exemplo. Os grandes tubarões tecnológicos sabem-no bem, e tanto os levam para fora como os instalam em aquários tecnológicos nacionais, que apelidam de tech hubs, e que lhes saem bem mais em conta. Será esta a colheita de sementes plantadas há quase 20 anos, sob a forma de pequenos computadores Magalhães, que chegaram às mãos de miúdos de todo o País? Talvez. Mas este é o momento de plantar novas oportunidades, até porque um país que insiste em envelhecer precisa desesperadamente de manter esta fornada de talento em solo nacional. Temos gente preparada, especializada, pronta a abraçar novos projetos que facilmente poderiam nascer dessa migração americana. E convém lembrar, em Portugal, a quase totalidade das pessoas abaixo dos 50 fala inglês — e apesar do nosso sol que faz inveja a toda a Europa, não falam só inglês de praia. Não é fácil encontrar outro país europeu com um sotaque tão aberto ao mundo e tão propício à internacionalização.
Que se estenda a iniciativa à outra metade da equação, grandes empresas e laboratórios, com medidas concretas que incentivem o investimento e a instalação em Portugal. Espreitem o exemplo da Irlanda. Criem programas de cofinanciamento, incentivos fiscais à investigação e desenvolvimento, com especial favorecimento a regiões com baixa densidade populacional. Que se encontre, também, flexibilidade para a burocracia e regime laboral nestes casos, com modelos de avaliação anuais que permitam separar o trigo do joio ou a inteligência artificial do chico-espertismo.
Ainda podemos ser um país onde o conhecimento é um bem público, e não um luxo reservado a quem o pode importar. Não precisamos de fortunas para comprar e desabitar ruas inteiras de Lisboa ou do Porto, precisamos de gente com conhecimento e ideias para fazer de Portugal um novo motor da inovação europeia. Sei que parece impossível, mas este é um daqueles momentos raros para o tornar possível. Com sorte, daqui a uns anos, um desses investigadores de português martelado ainda nos ajuda a resolver o problema da habitação. Como eles dizem, é uma win-win situation.
Esta é uma oportunidade única de retribuição poética. Se os EUA receberam Einstein, Arendt e Fritz Lang quando a Europa perdeu o juízo nos anos 30 e 40, este é o tempo certo para lhes devolver o favor. Portugal tem todo o gosto em dar passaporte a todas as grandes ideias que já não cabem no velho sonho americano. Prometemos um país de paz, ainda intacta, à espera de se descobrir por quem ainda acredita que pensar é o mais revolucionário de todos os investimentos.
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