O Sumo Pontífice morreu esta segunda-feira, aos 88 anos, ao início da manhã, avançou o cardeal Kevin Farrell. “Esta manhã, às 07:35 (06:35 em Lisboa), o bispo de Roma, Francisco, regressou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e da sua Igreja”, pode ler-se numa nota da fonte oficial do Vaticano.

De acordo com o Vaticano, a causa de morte foi um Acidente Vascular Cerebral (AVC), que conduziu a um coma e a uma insuficiência cardíaca irreversível. “Certifico que Sua Santidade Francisco (Jorge Mario Bergoglio) nascido em Buenos Aires (Argentina) a 17 de dezembro de 1936, residente na Cidade do Vaticano, Cidadão do Vaticano, faleceu às 7h35 do dia 21/04/2025 na residência papal Casa Santa Marta (Cidade do Vaticano) de: Acidente Vascular Cerebral (AVC), coma, e colapso cardiovascular irreversível”, lê-se no comunicado, que cita Andrea Arcangeli, médico responsável pela certidão de óbito.

Neste domingo, dia de Páscoa, o Papa Francisco esteve presente na varanda da Basílica de São Pedro, no Vaticano, para dar a tradicional bênção “Urbi et Orbi”. Sentado na cadeira de rodas, o pontífice desejou uma “Boa Páscoa” aos fiéis e pediu ao mestre de cerimónias que lesse a sua mensagem de Páscoa perante as 35 mil pessoas presentes na praça de São Pedro.

O Papa Francisco tinha estado internado durante cinco semanas, em estado muito grave, no Hospital Universitário Agostino Gemelli, em Roma, no início deste ano, mas teve alta há cerca de um mês.

De acordo com a Santa Sé, o corpo do papa vai ser depositado numa urna, ao final da tarde desta segunda-feira, na capela da residência de Santa Marta, no Vaticano, onde residia. “Esta noite, segunda-feira, 21 de abril, às 20h00 locais (19h00 em Lisboa), a sua eminência o reverendíssimo cardeal Kevin Joseph Farrell, cardeal camerlengo da Santa Igreja Romana, presidirá ao rito de certificação da morte e à colocação do corpo na urna”, lê-se em comunicado.

O funeral realiza-se daqui a nove dias e o conclave para a eleição do sucessor terá lugar dentro de um mês.

1. ‘‘Igreja que é santa não rejeita os pecadores; não rejeita nenhum de nós, não nos rejeita porque chama todos, acolhe-os, está aberta até aos que estão mais longe dela. Chama todos a se deixarem envolver pela misericórdia, pela ternura e pelo perdão do Pai’’

2. “Há momentos difíceis na vida, mas, com esperança, a alma progride e olha em frente para aquilo que nos espera”

3. ‘‘Ninguém pode crescer se não aceitar a sua pequenez’’

4. ‘‘Temos de recuperar a esperança dos jovens, ajudar os idosos, estar abertos ao futuro, espalhar o amor. Ser pobres entre os pobres. Precisamos de acolher os excluídos e de pregar a paz’’

5. ‘‘Se nos agarramos demasiado à riqueza, não somos ricos, somos escravos’’

6. ‘‘Santidade significa entregarmo-nos ao sacrifício, todos os dias. E por isso a vida de casado é um enorme caminho para a santidade’’

7. ‘‘Eis como se escuta a palavra de Deus: escuta com os teus ouvidos e ouve com o teu coração’’

8. ‘‘Sempre que encontramos outra pessoa apaixonada, aprendemos alguma coisa nova sobre Deus’’

9. ‘‘Liberdade e esperança caminham de mãos dadas… Onde não há esperança, não pode existir liberdade’’

10. ‘‘Na vida, todos cometemos muitos erros. Aprendamos a reconhecer as nossas falhas e a pedir perdão’’

11. “O melhor é não confundir otimismo com esperança. O otimismo é uma atitude psicológica em relação à vida. A esperança vai para além disso”

12. “A sociedade tecnológica conseguiu multiplicar os momentos de prazer, mas teve muita dificuldade em gerar alegria”

13. “Que nunca nos acostumemos à pobreza e à decadência à nossa volta. Um cristão tem de agir”

14. “A vida é uma viagem e quando paramos de nos mexer as coisas não correm bem”

15. ‘‘O verdadeiro amor não dá atenção aos males que sofre, rejubila quando faz o bem’’

A Sabedoria do Papa Francisco, de Andrea Kirk Assaf (Planeta, 256 págs., €8,90, edição bilingue, em português e inglês)

Palavras-chave:

Por causa de uma bonita jovem, de inteligência cativante, o Papa Francisco podia não ter existido. Foi o próprio Jorge Mario Bergoglio quem o revelou numa série de conversas com o rabino Abraham Skorka, o que deu um livro – Sobre o Céu e a Terra (ed. Clube do Autor). Seminarista tardio (entrou para o noviciado da Companhia de Jesus já com 20 anos), Bergoglio relatou ao amigo Skorka como a sua convicção vocacional foi muito abalada logo à nascença.

“Quando eu era seminarista, fiquei deslumbrado com uma rapariga que conheci no casamento de um tio”, contou. “Surpreendeu-me a sua beleza, a sua luz intelectual e, bem, andei desorientado durante bastante tempo, dando voltas à cabeça.” No regresso ao seminário, vindo do copo-d’água, o atual Papa confessa que não conseguiu rezar “durante uma semana, porque, quando me predispunha a fazê-lo, assomava à minha mente a imagem da tal rapariga”. Foram dias duros, admite Bergoglio. “Tive de pensar seriamente no que estava a fazer. Ainda era livre, pois era seminarista, podia voltar para casa, e ciao, ciao. Tive de repensar a minha opção de vida. Voltei a eleger – ou a deixar que elegessem para mim – o caminho religioso.”

Anos antes, tinha acontecido algo de parecido. A 21 de setembro de 1953, Dia do Estudante e também, na Argentina, Dia da Primavera, Jorge Mario Bergoglio, quase com 17 anos, dirige-se a uma estação ferroviária, ao encontro de amigos, e com destino à festa da praxe. No grupo que o aguardava, encontrava-se a rapariga que andava a cortejar e a quem estava decidido a confessar o seu amor naquela oportunidade. Ainda caminhava no bairro de Flores, no centro de Buenos Aires, onde nasceu e cresceu, numa família de classe média-baixa, quando se sentiu impelido a entrar na basílica local. Essa igreja era o centro da sua vida religiosa na adolescência: não só a frequentava quando ia à missa aos domingos, com a família, como também ali participava nas reuniões noturnas da secção dos jovens da Ação Católica.

Preocupação O Papa no final de um encontro, no Vaticano, para erradicar o abuso de crianças no seio da Igreja

Mas naquele dia foi diferente – Jorge Bergoglio entrou na basílica “como se tivesse sido cuspido de um cavalo”, diria mais tarde. “Encontrei lá um padre que não conhecia e senti necessidade de me confessar”, contou. “Foi para mim a experiência do encontro. Encontrei alguém que me esperava há algum tempo. Depois da confissão, senti que qualquer coisa tinha mudado. Já não era o mesmo. Tinha sentido como que uma voz, uma chamada: estava convencido de que tinha de ser sacerdote. Nós dizemos que temos de procurar Deus, de ir ter com Ele para pedir perdão, mas, quando vamos, Ele já está à nossa espera, já o estava antes.” O alto e elegante Bergoglio já não irá até à estação ferroviária, ao encontro dos amigos. Regressa a casa para meditar. E a declaração de amor à rapariga do bairro, pela qual se enamorara, seria cancelada – para sempre.

Jorge Bergoglio entrou, em 1957, para o seminário de Villa Devoto, em Buenos Aires. Mas, passado pouco mais de um ano, contraiu uma grave tuberculose, que o deixou à beira da morte. Seria salvo por uma intervenção cirúrgica, em que lhe foi extraída uma parte de um pulmão. Esta aflição serve como metáfora da difícil vida dos migrantes Bergoglio.

Sempre teve a convicção de que o comunismo tinha florescido porque
a cristandade ocidental havia ignorado o apelo
do Evangelho de pôr os pobres em primeiro lugar

“No perfil de Jorge Mario Bergoglio, alto (…), com uma cabeça angulosa e um olhar penetrante, podemos desvendar os traços do avô Giovanni”, escreve Austen Ivereigh, jornalista britânico e biógrafo do Papa, no seu livro O Pastor Ferido (Ed. Vogais). Situamo-nos agora, no início do século XX, na cidade italiana de Asti, na região de Piemonte, no sopé dos Alpes. Lorenzo, Eugenio, Vittorio e Giovanni são filhos de Francesco Bergoglio, dono, em Portacomaro Stazione, povoação situada perto de Asti, de uma quinta chamada Bricco Marmorito, com oito hectares de vinhas e de bosques em redor.

O vinho ali produzido, porém, não rendia o suficiente para o sustento básico. Por isso, “Lorenzo, Eugenio e Vittorio juntaram-se (…) às dezenas de milhares de pessoas que partiram para a Argentina, após a I Guerra Mundial”, conta Austen Ivereigh. Giovanni, esse, fica. Anos antes, em 1907, trocara Bricco Marmorito por Turim. Aí, “trabalhou (…) a fabricar o vinho amargo e enriquecido com ervas aromáticas e especiarias, conhecido por vermut, pelo qual, juntamente com o chocolate de avelã, a cidade era conhecida”, relata o jornalista. E, pouco tempo depois de ali chegar, aos 22 anos, namorou e casou-se com Rosa Margherita Vassallo, de Piana Crixia, cidade também localizada em Piemonte. Mario, nascido em 1908, e que viria a ser o pai do Papa Francisco, foi o único filho do casal (os outros cinco filhos de Rosa foram nados-mortos).

AVÓ GREVISTA E SUFRAGISTA

A avó de Francisco estava em Turim desde os 8 anos e era “uma das quatro mil e tal costureiras que forneciam a indústria da moda, então em expansão na cidade”, diz Austen Ivereigh. “Na maioria, estas costureiras retalhavam e costuravam não em fábricas clandestinas, mas em casa, sob a tutela de ativistas laborais inspirados pela notável encíclica do Papa Leão XIII Rerum Novarum, publicada em 1891, em que se apelava à necessidade de salários justos e à dignidade do trabalhador”, conta o autor. “Criada com o objetivo de combater a dupla exploração das mulheres e dos pobres, a associação de costureiras de Turim foi responsável por organizar a primeira greve na história da cidade e serviu como tubo de ensaio para o movimento sufragista em Itália”, acrescenta. “Foi no meio desta ebulição que nasceu a paixão de Rosa pela justiça social, a sua imediata identificação com as classes mais baixas e a sua vocação para dirigente secular, que mais tarde seria fortalecida na Ação Católica de Asti.”

Francisco “dixit”

Acabado de sair em Portugal, o livro “A Sabedoria do Papa Francisco” reúne vários ensinamentos de Jorge Bergoglio, recolhidos pela jornalista vaticanista Andrea Kirk Assaf

‘‘O verdadeiro amor não dá atenção aos males que sofre, rejubila quando faz o bem’’

‘‘Igreja que é santa não rejeita os pecadores; não rejeita nenhum de nós, não nos rejeita porque chama todos, acolhe-os, está aberta até aos que estão mais longe dela. Chama todos a se deixarem envolver pela misericórdia, pela ternura e pelo perdão do Pai’’

‘‘Ninguém pode crescer se não aceitar a sua pequenez’’

‘‘Temos de recuperar a esperança dos jovens, ajudar os idosos, estar abertos ao futuro, espalhar o amor. Ser pobres entre os pobres. Precisamos de acolher os excluídos e de pregar a paz’’

‘‘Se nos agarramos demasiado à riqueza, não somos ricos, somos escravos’’

‘‘Santidade significa entregarmo-nos ao sacrifício, todos os dias. E por isso a vida de casado é um enorme caminho para a santidade’’

‘‘Eis como se escuta a palavra de Deus: escuta com os teus ouvidos e ouve com o teu coração’’

‘‘Sempre que encontramos outra pessoa apaixonada, aprendemos alguma coisa nova sobre Deus’’

‘‘Liberdade e esperança caminham de mãos dadas… Onde não há esperança, não pode existir liberdade’’

‘‘Na vida, todos cometemos muitos erros. Aprendamos a reconhecer as nossas falhas e a pedir perdão’’

Ao regressar a Turim, em 1918, depois de dois anos a combater na I Guerra Mundial, Giovanni encontrou uma cidade mergulhada em tensão. Por isso, ele e Rosa, ambos na casa dos 30, decidiram mudar-se para Asti. “Aí havia trabalho, e Mario (…) podia ir para a escola em paz”, conta Austen Ivereigh. Giovanni trabalhou num café, e mais tarde acabou por abrir o próprio estabelecimento. Rosa continuava a costurar, mas também se tornou dirigente num movimento religioso criado pelos bispos para mobilizar os católicos comuns. Na chamada Ação Católica, diz o autor, Rosa, com a sua “oratória e coragem”, tornou-se “bastante conhecida nas paróquias e nos arredores da cidade”, o que a transformou num alvo dos camisas negras de Mussolini, “que não gostavam de que as mulheres imitassem os homens”. Descreve o biógrafo: “Interrogavam-na com violência e procuravam dissuadi-la, e certa vez encerraram o salão onde ela iria falar em público. Impedida de entrar, Rosa optou, ainda assim, por fazer o seu discurso na rua, tendo subido a uma mesa. Rosa tinha cojones.”

O filho Mario também militava na Ação Católica, na secção jovem, e conseguiu obter uma rara bolsa de estudo destinada a alunos com excelentes notas, mas com parcos meios financeiros. Em 1926, concluída a sua formação como contabilista, Mario ainda foi trabalhar para a sucursal da Banca d’Italia, em Asti. No entanto, a ditadura fascista de Mussolini já dominava o país e, no início de 1929, quando Mario tinha 22 anos, Giovanni decidiu partir com a família para a Argentina, ao encontro dos irmãos, a bordo do navio Giulio Cesare. Levava consigo uma carta assinada pelos padres salesianos de Turim.

LEVANTADOS DO CHÃO

Pequeno parêntesis, antes de prosseguir. Em 2013, na sua primeira missa de Domingo de Ramos como Papa, Francisco recorreu a Rosa para denunciar a sede de dinheiro: “A minha avó dizia-nos, quando éramos pequenos – ‘A mortalha não tem bolsos!’.” 

Após uma breve passagem por Buenos Aires, onde foram acolhidos pelos salesianos, Giovanni e a família viajam quase 500 quilómetros até à cidade de Paraná, capital da província argentina de Entre Ríos. É aí que estão, desde 1922, os irmãos Lorenzo, Eugenio e Vittorio, que criaram uma grande empresa de pavimentos. O negócio, ao qual se juntaram Giovanni e o filho Mario, corria tão bem que chegaram mesmo a construir, em Paraná, o “edifício Bergoglio”, de quatro andares. Mas a Grande Depressão de 1929, que persistiu durante a década de 1930, levou à falência da empresa e arruinou a família.

Havia que recomeçar do zero, em Buenos Aires. O padre Enrico Pozzoli, missionário salesiano, também ele migrante (no caso, da região da Lombardia), acolheu e ajudou Giovanni, Rosa e Mario. O jovem arranjou trabalho como funcionário ferroviário e, mais tarde, como contabilista numa fábrica de meias. E, em 1934, no oratório salesiano de Santo António, no bairro de Almagro, conheceu Regina Sivori, descendente de migrantes genoveses, com quem se casou. O primogénito, Jorge Mario Bergoglio, nasce a 17 de dezembro de 1936 e é batizado a 25 seguinte, dia de Natal, na Basílica de São Carlos e de Maria Auxiliadora, onde os pais se tinham casado.

Nos anos 1940, Flores, onde os Bergoglio moram, “é um bairro de vizinhos, com grandes casarões, onde costuma habitar mais do que uma família e onde todos se conhecem e saúdam”, descreve Elisabetta Piqué, correspondente no Vaticano do jornal argentino La Nación e biógrafa do Papa, na sua obra Francisco – Vida e Revolução (ed. A Esfera dos Livros). No infantário, dirigido pelas irmãs Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia, o pequeno Jorge dá nas vistas por uma particularidade. “Aprendeu a multiplicar subindo e descendo as escadas. Foi esse o seu método; as outras crianças aprendiam numa folha de papel ou com os dedos, mas ele criou um método pessoal”, recordará a irmã María Ilda ao jornal L’Osservatore Romano. “Em pequeno, também era uma pessoa que não gostava de estar na aula, preferia estar fora, como agora costuma dizer nas suas homilias”, sublinhou.

Solidário Descendente de migrantes, a sua primeira saída como Papa foi à ilha de Lampedusa, para se encontrar com aqueles que atravessam o Mediterrâneo, em busca de uma vida melhor na Europa Foto: Tullio M. Puglia/Getty Images

Jorge “é um rapaz de bairro, educado, inteligente, com grande sentido de humor, que se diverte a jogar à bola com os amigos”, diz Elisabetta Piqué. “Como bom primogénito, é muito responsável e estudioso, além de grande amante da leitura. A família não passa necessidades. Mas, como em sua casa são muitos – tem quatro irmãos mais novos, Óscar Adrián, Marta Regina, Alberto Horacio e María Elena (a única que ainda vive) –, os recursos são limitados e têm de ser administrados com parcimónia”, acrescenta. Na casa dos Bergoglio, onde ainda se fala o dialeto piemontês (que Jorge cedo aprende), a presença religiosa é muito forte. “Ensinaram-nos a amar a Deus, desde muito pequenos. Íamos juntos à missa, quando o paizinho chegava a casa, rezava o terço. O pai e a mãe fizeram-nos ‘mamar’ a fé desde o berço, ensinando-nos também com o seu exemplo”, contará María Elena àquela biógrafa. “Os dias de que mais gostávamos eram os domingos, em que íamos todos à missa, em família, na paróquia, e depois voltávamos para almoçar… Jorge gostava de massa com um bom estufado de carne… Como qualquer família italiana, ao domingo as massas não podiam faltar”, continuou. E confessará, rindo-se, que, devido aos 12 anos de diferença em relação ao irmão mais velho, ela era “a bonequinha da casa” e ele “o velhote”. Jorge “era muito protetor” da irmã mais nova, “porque o nosso pai morreu cedo, com 51 anos, de um problema de coração (…)”. Hoje, María Elena recorda o irmão mais velho, que chegou a Papa, como “muito amigo, meigo, alegre, um rapaz normal” – a quem o pai também transmitiu, no futebol, a devoção pelo San Lorenzo.

“HOMO POLITICUS”

Na Escola Técnica Industrial, em que ingressa aos 14 anos e na qual se formou em Química Alimentar, Jorge será alvo de duas admoestações. Só se conhece o motivo da segunda, contado por um ex-colega, Hugo Morelli, a Elisabetta Piqué: “Havia uma professora nova, de Espanhol, que nos tratava, a todos, com um rigor excessivo. Não gostávamos nada dela, revoltámo-nos e escrevemos no quadro que queríamos que o professor anterior voltasse, assinando todos, incluindo Bergoglio. Isso valeu-nos a admoestação coletiva.” 

Aconteceu qualquer coisa à nossa política, desligou-se das ideias, das propostas. Hoje em dia, importa mais a imagem do que aquilo que se propõe

Papa Francisco

Hugo Morelli recorda ainda que os dotes de liderança de Jorge cedo se começaram a notar. “Era muito inteligente, mas não ‘marrão’, dos que passavam todo o tempo a estudar; a verdade é que apreendia tudo muito depressa. Tinha uma inteligência muito superior à nossa. Estava sempre um passo à nossa frente. Era uma espécie de líder.” Ainda assim, Jorge alinhava na diversão com os companheiros, como notou a Elisabetta Piqué outro ex-colega, Óscar Crespo. “Partilhávamos tudo o que se partilha nessa idade”, lembra. “Encontrávamo-nos sempre num bar (…), onde jogávamos bilhar; aos fins de semana fazíamos os ‘assaltos’, como chamávamos naquela época às reuniões em casas de família, íamos dançar ao clube do bairro Chacarita, porque aí havia muitas rapariguinhas…” Jorge empolgava-se com a milonga, dança popular argentina e uruguaia, aparentada com o tango.

No estágio de Química Alimentar, diz Elisabetta Piqué, ingressou num laboratório “com uma chefe extraordinária: Esther Ballestrino de Careaga, com a qual aprende que o trabalho deve ser sempre encarado com seriedade”. Esther, escreve a biógrafa, “é uma paraguaia, simpatizante do comunismo, que, anos mais tarde, durante a ditadura de 1976-1983, sofre o sequestro de uma filha e de um genro e que depois também seria sequestrada com duas religiosas francesas desaparecidas, Alice Domon e Léonie Duquet”. A “chefe extraordinária”, que Jorge tanto admirava, acabou assassinada pelos militares. Lá iremos.

Enquanto jovem, além dos estudos, do bilhar, dos bailes e, claro, da presença assídua na paróquia (para lá de ter sido um momentâneo porteiro de um night club de Buenos Aires, ao que garante a revista norte-americana Time), Bergoglio também se dedicava a outro tipo de atividades, diz Austen Ivereigh. “Quando tinha algum tempo livre, adorava frequentar associações políticas e locais de encontro, onde socialistas, radicais e peronistas se juntavam e debatiam ideias”, assegura o biógrafo. “Até hoje, continua a ser um Homo politicus, comprometido com o que ele próprio designa de ‘grande política’, a construção da pólis.” Na juventude, identificar-se-ia com “o nacionalismo popular da família da mãe”, e, sobretudo, com o “peronismo da fase inicial, que remonta a finais da década de 1940, quando fez da doutrina social-católica a sua ideologia dominante”, prossegue Austen Ivereigh. Mas, “durante o segundo mandato de Perón (1952-1955), à semelhança de muitos latino-americanos desses tempos, Jorge deixou-se cativar por análises marxistas”, que devorava dos livros que pedia emprestados a Esther Careaga, a chefe do laboratório em que estagiava. “Permanecendo cético” face às “teorias materialistas”, diz Ivereigh, “não deixou, contudo, de se identificar com a revolta do marxismo perante as injustiças, e seria sempre sua convicção de que o comunismo tinha florescido porque a cristandade ocidental havia ignorado o apelo do Evangelho de pôr os pobres em primeiro lugar”.

“MEDICINA DA ALMA”

Em Sobre o Céu e a Terra, o livro de diálogos com o rabino Abraham Skorka, Francisco fala de uma recordação de infância, de um homem tão ilustre, como antigo dirigente da social-democrata União Cívica Radical, rival do peronismo, quanto discreto. “O meu avô materno era carpinteiro e, uma vez por semana, um senhor de barbas brancas vinha vender-lhe anilinas”, conta. “Ficavam a conversar longamente no pátio, enquanto a minha avó lhes servia uma chávena de café com vinho. Certo dia, a minha avó perguntou-me se eu sabia quem era o senhor Elpidio, o vendedor de anilinas. Tratava-se, afinal, de Elpidio González, que tinha sido vice-presidente da nação [1922-1928, acompanhando Marcelo T. de Alvear]. Ficou gravada na minha memória a imagem daquele ex-vice-presidente, que ganhava a vida como vendedor. É uma imagem de honestidade. Aconteceu qualquer coisa à nossa política, desligou-se das ideias, das propostas. Hoje em dia, importa mais a imagem do que aquilo que se propõe.”

Quando aos 20 anos, em 1957, Jorge anuncia que quer ser padre e entra no seminário de Villa Devoto, a mãe não disfarça o choque – ao contrário do pai, que aplaudiu a escolha do primogénito. “Durante anos”, Regina “não aceita a decisão” de Jorge, conta Elisabetta Piqué. E com alguma culpa do filho, que, quando terminou o curso profissional, lhe disse que queria seguir Medicina. Nessa altura, Regina impôs em casa um quarto só para Jorge, de maneira a que tivesse tranquilidade para estudar. Certo dia, ela foi limpá-lo e, desconcertada, deparou com livros de Teologia e de Latim. María Elena relatou àquela biógrafa o que se seguiu. 

Revolucionário A sinodalidade (palavra que significa “caminhar juntos”) é o coração da reforma de Francisco – que brada contra confessionários transformados em “câmaras de tortura” Foto: Filippo MONTEFORTE / AFP

“Sem perceber nada, a mãezinha perguntou-lhe: ‘Filho, o que são estes livros? Não querias seguir Medicina?’ E Jorge respondeu-lhe: ‘Sim, mas a medicina da alma’.”

Quem percebeu tudo, antes de todos, foi a avó Rosa. “Quando contei à minha avó, que já sabia mas se fizera desentendida, respondeu-me: ‘Bom, se Deus te chama, bendito seja.’ E logo a seguir acrescentou: ‘Por favor, não te esqueças de que as portas de casa estão sempre abertas e de que ninguém vai censurar-te se decidires voltar’”, recordou Bergoglio numa série de entrevistas que deu aos jornalistas Sérgio Rubin (argentino) e Francesca Ambrogetti (italiana), o que resultou no livro O Pastor (Paulinas Editora). “Os outros quatro irmãos escolhem o próprio caminho, enchendo o futuro Papa de sobrinhos”, diz Elisabetta Piqué. São dez, um dos quais, José Luis Narvaja, decidiu ser jesuíta como o tio.

DA FOME A BORGES

Em março de 1958, o noviço Jorge Bergoglio, já com 21 anos, é enviado pela Companhia de Jesus para Córdova, cidade situada a cerca de 700 quilómetros de Buenos Aires. “Começa então um caminho de 14 anos de estudo, que inclui não só teoria – Humanidades, Grego, Latim, Literatura, História da Arte, Psicologia e, obviamente, Teologia – como também prática, trabalho no terreno, contacto permanente com os fiéis e com o seu sofrimento”, descreve Elisabetta Piqué. Ao fim dos primeiros dois anos, pronuncia os votos de pobreza, castidade e obediência. Em 1960, é enviado para o Chile, a fim de prosseguir os estudos humanísticos. Aí, diz a biógrafa, inicia-se para Bergoglio a “visão da Igreja atenta aos marginalizados, que marca a sua vida”. O assunto domina uma carta que escreve à família, em maio daquele ano: “Dou aulas de Religião, os rapazes e as raparigas são muito pobres, alguns até vêm descalços para a escola. Muitas vezes não têm nada que comer, e no inverno sentem o frio com todo o seu rigor. (…). Há dias dizia-me uma velhinha: ‘Padrecito, se eu pudesse arranjar uma manta, que bem me sabia! É que à noite sinto muito frio.’ E o pior de tudo é que não conhecem Jesus. Não o conhecem porque não há quem lho revele.”

Quatro anos depois, em 1964, Jorge Bergoglio ainda não é sacerdote, mas maestrillo. “Assim se denomina o estudante da Companhia de Jesus que estudou Filosofia e que exerce como professor nalgum colégio da Ordem, no seu caso no Colégio da Imaculada Conceição de Santa Fé, paradigma da educação religiosa e da elite da Argentina”, explica Elisabetta Piqué. “Bergoglio chega a essa mítica instituição de Santa Fé”, a cerca de 500 quilómetros de Buenos Aires, “depois de se ter licenciado na Faculdade de Filosofia do Colégio Máximo de São José, dos jesuítas, em San Miguel”, na área metropolitana da capital argentina, “onde estudou durante três anos, após ter terminado o seu juniorado no Chile”, acrescenta a biógrafa.

Pacifista Francisco numa visita a crianças ucranianas, vítimas da guerra, num hospital em Itália Foto: Vatican Media via Vatican Pool/Getty Images

Com 28 anos, Bergoglio, de sotaina e de cinturão pretos, e de aspeto juvenil, ensina Literatura e Psicologia aos abastados e uniformizados alunos (o colégio é só para rapazes) do 4.º e 5.º anos, que vão todos os dias à missa e uma vez por semana, pelo menos, “com espírito jesuíta”, levam ajuda e comida a bairros pobres de Santa Fé e dão catequese. “Insistia em que explorássemos tudo com a cabeça, inclusive em matéria de religião – transmitia segurança e alegria”, dirá Rogelio Pfirter, então aluno de Bergoglio e hoje diplomata, a Elisabetta Piqué.

O maestrillo Jorge – que não se coibiu, por exemplo, de apresentar aos seus estudantes uma pormenorizada explicação do processo da Inquisição que levou o poeta e intelectual espanhol frei Luis de León, no século XVI, a penar cinco anos na prisão – ascenderia a diretor da Academia de Literatura do colégio e estimulou ainda mais os alunos. Convida escritores para dar pequenos cursos de dois ou três dias, abertos a todo o público, sobre autores e temas literários variados, o mais frequentado dos quais será aquele em que Jorge Luis Borges dissertará acerca da literatura gaúcha. Da visita de Borges, cuja obra o maestrillo fez com que os alunos lessem de forma extensa, “nasce a publicação de um livro, intitulado Cuentos Originales (…), experiência bergogliana que reúne 14 relatos escritos por sete alunos, todos membros da Academia de Literatura”, conta Elisabetta Piqué. “Ele próprio concebe e leva por diante o projeto, chegando mesmo a pedir a Borges que o ajude a selecionar os autores e a escrever o prólogo.” O pequeno livro esgota-se num ápice, e é publicada uma segunda edição. Relata a biógrafa: “O seu êxito é favorecido por uma cinta de papel, mais larga do que o título, que o envolve, anunciando em grandes letras – ‘Prólogo de Jorge Luis Borges’.”

BOMBA-RELÓGIO

Já de regresso a Buenos Aires, Bergoglio começou, em 1967, a estudar Teologia, no Colégio Máximo, em San Miguel (no qual passou 18 anos da sua vida como aluno, docente e reitor), e, a 13 de dezembro de 1969, a poucos dias de fazer 33 anos, é ordenado sacerdote naquele colégio, por monsenhor Ramón José Castellano, arcebispo emérito de Córdova. À cerimónia assiste toda a sua família, incluindo a incontornável avó Rosa. “A mãe, Regina, que tanto resistiu a que o primogénito fosse padre, ajoelha-se diante dele e pede-lhe a bênção no fim da cerimónia”, diz Elisabetta Piqué. O agora padre Jorge já se conformara com o duro golpe que recebera, quatro anos antes, quando a direção da Ordem lhe recusou o pedido que fez para partir rumo a terras distantes como missionário, o seu sonho, de preferência o Japão. “Tiveste uma doença no pulmão, e isso não é assim muito bom para um trabalho tão duro”, respondeu-lhe o então superior-geral jesuíta, padre Pedro Arrupe.

As peças-chave de Francisco

Ao longo dos últimos dez anos, o Papa tem-se rodeado de algumas figuras que simbolizam aquilo que são as suas estratégias de renovação para a Igreja e para o Vaticano

Mario Grech
Cardeal desde novembro de 2020, o maltês Mario Grech assume, a partir de 2021, o cargo de secretário-geral do Sínodo dos Bispos. É conhecido pelas posições progressistas em relação à participação das mulheres e à sexualidade.

Víctor Manuel Fernández
Autor de muitos livros sobre teologia e exegese bíblica, o argentino Víctor Manuel Fernández, arcebispo de La Plata, contribuiu para a encíclica Laudato Si’. Chamam-lhe o ghost writer do Papa, que o tem como o seu homem de confiança. Acaba de ser nomeado para o cargo de prefeito do dicastério mais importante, o Dicastério para a Doutrina da Fé.

José Tolentino Mendonça
Nascido na Madeira, há 57 anos, foi reitor da Capela do Rato, em Lisboa, sendo atualmente “o nosso homem em Roma”. Poeta, escritor e especialista em Estudos Bíblicos, foi nomeado cardeal em 2019 e, desde setembro de 2022, prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação.

Matteo Maria Zuppi
Arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana, tem sido o enviado do Papa à Rússia e aos EUA, no âmbito da missão de paz na Ucrânia. Nas inúmeras especulações sobre o sucessor de Francisco, diz-se que pode vir a suceder-lhe.

Helena Jeppesen-Spuhler
De origem suíça, possui um percurso na área dos direitos humanos, tendo percorrido o mundo, da Amazónia às Filipinas. Faz parte do grupo de dez europeus não bispos, que, no próximo mês de outubro, vai participar na assembleia do Sínodo, que vai reunir, pela primeira vez, um conjunto alargado de não bispos. Tem sido o rosto dessa estratégia de abertura.

Cristina Inogés Sanz
Formada na Faculdade Protestante de Madrid, a teóloga espanhola foi nomeada, há dias, membro da assembleia do Sínodo, com direito a voto. Trata-se de uma escolha direta do Papa Francisco, depois de Inogés Sanz ter feito a conferência de abertura do processo do Sínodo, em Roma, em 2021.

Konrad Krajewski
Nomeado arcebispo da Esmolaria Apostólica por Francisco e enviado especial do Papa à Ucrânia, em missões diplomáticas do Vaticano consideradas invulgares, tem coordenado muitas ações junto dos mais pobres e dos sem-abrigo (nomeadamente, foi responsável pela instalação de duches junto à Basílica de São Pedro, em Roma). S.B.L.

Damos agora um salto até 1973, quando a Argentina vivia há sete anos, desde 1966, sob uma primeira ditadura militar. No colo de Bergoglio, então com apenas 36 anos, cai uma bomba-relógio: é designado provincial jesuíta do país, funções que também abrangem a governação da Ordem no Uruguai, igualmente dominado por uma ditadura militar. Bergoglio, que já defendia o lema de que os sacerdotes devem ter “cheiro a ovelha”, isto é, têm de sair ao encontro das periferias existenciais, em resgate dos últimos, dos marginalizados, dos que uma sociedade “anestesiada” considera “descartáveis”, desenvencilha-se bem naquelas difíceis funções, diz Austen Ivereigh. “Foi de longe, como provincial e reitor do Colégio Máximo, a personalidade mais dominante dos jesuítas argentinos do seu tempo”, analisa o biógrafo. “Tendo guiado a sua província, por entre a violência guerrilheira e a brutal intervenção enérgica militar da década de 1970, sem perder nenhum dos seus jesuítas, conseguiu na década seguinte atrair e alimentar dezenas de vocações, num tempo em que estas estavam a cair por todo o lado, tanto na América Latina como, sobretudo, na Europa.”

Na Cúria jesuíta, em Roma, havia perplexidade: que estava Bergoglio a fazer bem que os outros jesuítas não tinham percebido? “Havia também ressentimento e inveja, e ansiedade por causa do que estava a criar, que parecia tão díspar da formação jesuíta na Europa e noutros locais da América Latina”, diz Ivereigh. “Visitantes estrangeiros ficavam impressionados com o rigor, o vigor e a austeridade devota do regime no Colégio Máximo, mas mostravam-se preocupados com a sua intensidade e o seu personalismo.” Resultado: o Papa João Paulo II intervém na Ordem, “contrapondo-se a posições demasiado avançadas”, e, em setembro de 1983, substitui Bergoglio pelo holandês Peter-Hans Kolvenbach.

PROSCRITO E VIGIADO

O futuro Papa vê no revés a oportunidade e o tempo para se dedicar à tese de doutoramento, que há muito tem na cabeça, centrada no teólogo italiano, naturalizado alemão, Romano Guardini (1885-1968), que ele admira profundamente. Pede licença para viajar até à Alemanha e, em março de 1986, chega à Universidade de Filosofia e Teologia jesuíta de Sankt Georgen, em Frankfurt, em cuja biblioteca encontra muita bibliografia sobre Guardini. No entanto, nunca concluirá a tese. Bergoglio solicita o regresso à Argentina, “não tanto por saudades, mas porque considera que deve tentar fazer alguma coisa para contrariar a contrarreforma posta em andamento na Ordem, com a qual não concorda”, diz Elisabetta Piqué. De volta a Buenos Aires, desdobra-se em visitas às comunidades jesuítas do país. É um “homem muito influente”, que “incomoda”. Até que, “para neutralizá-lo, ou, melhor, para apagá-lo do mapa, a 25 de junho de 1990, de um dia para o outro, os superiores retiram-lhe a cátedra de Teologia Pastoral, que tem no Colégio Máximo, e decidem enviá-lo como confessor para a residência maior de Córdova, um desterro virtual, que começa a 16 de julho de 1990”, escreve a biógrafa.

Pensou que a sua vida desabara. A quase 700 quilómetros de Buenos Aires, “ali sofreu, muitas vezes deprimido e doente, chocado com a destruição de tanto do que construíra”, descreve Austen Ivereigh. “Fez como Santo Inácio de Loyola [fundador da Companhia de Jesus, no século XVI] aconselha que se faça em longos períodos de desolação: passou mais tempo em oração e dedicou-se aos outros, a tomar conta dos mais velhos na comunidade jesuíta e a ouvir confissões. Leu muito (…) e escreveu algumas das suas mais poderosas reflexões, repletas de discernimentos, em que se apoia hoje em dia. Algumas pessoas próximas de Francisco dizem que o seu pontificado é de muitas maneiras o fruto desse deserto.” Ainda assim, naquele período, “sobre o qual poucos jesuítas desejam falar, não lhe passam as chamadas telefónicas e controlam-lhe a correspondência”, revela Elisabetta Piqué.

Decidido Desde cedo, lançou um forte ataque aos bispos e sacerdotes que cedem à tentação do dinheiro e da vaidade, e que, em vez de serem pastores, se tornam “lobos devoradores” Foto: FILIPPO MONTEFORTE/AFP via Getty Images

Enquanto provincial dos jesuítas, uma das acusações mais graves que os adversários lhe fazem é ter “entregado” dois sacerdotes, Orlando Yorio e Francisco Jalics, que trabalhavam em bairros degradados e aí viviam (os chamados padres villeros), à última ditadura militar da Argentina (1976-1983). Yorio e Jalics desapareceram a 23 de maio de 1976. “A história é muito diferente”, sustenta aquela biógrafa. “Em silêncio, Bergoglio faz todo o possível para que os militares libertem Yorio e Jalics, que são torturados durante os cinco meses de detenção e libertados a 23 de outubro de 1976. De forma igualmente discreta, ajuda muitas outras pessoas a esconder-se ou a fugir daquela Argentina enlouquecida, vítima do terrorismo de Estado.” Há vastos testemunhos de que assim foi, muitos dos quais mostram que Bergoglio arriscou a própria segurança para lá de todos os limites.

De volta ao “exílio interno” em Córdova: ao cabo de 22 meses de proscrição, será dela resgatado, em maio de 1992, por Antonio Quarracino, arcebispo de Buenos Aires e cardeal primaz, também ele descendente de migrantes italianos. Quarracino tinha, há muito, fixado a sua atenção em Bergoglio, que considerava “brilhante”, e “move o céu e a terra” para que ele “se converta no seu braço-direito”, na diocese da capital, conta Elisabetta Piqué. Será bem-sucedido: Bergoglio é ordenado bispo auxiliar de Buenos Aires, em junho de 1992, e arcebispo coadjutor, em junho de 1997. Pouco depois, a morte de Quarracino, a 28 de fevereiro de 1998, catapulta-o para a frente da arquidiocese de Buenos Aires, um trampolim para Roma. Será feito cardeal por João Paulo II, a 21 de fevereiro de 2001. “Nessa altura, não compra uma veste nova de cor púrpura, optando por mandar arranjar a do antecessor, Quarracino”, e “pede, a quem deseja acompanhá-lo até Roma para celebrar esse acontecimento, que não o faça e que dê aos pobres o dinheiro que gastaria no bilhete”, diz aquela biógrafa.

UM CARDEAL NO METRO

Reforça-se, então, a popularidade do agora arcebispo e cardeal, que anda de transportes públicos (dispensa o motorista, atribuindo-lhe outras funções) e que decide não utilizar a residência oficial, que destina, em vez disso, a retiros espirituais. Opta, antes, por um simples e pequeno quarto da Cúria local, onde ele próprio confeciona as frugais refeições. “Também não usa o gabinete oficial do cardeal, com móveis e quadros antigos, elegantes tapetes e tão grande que ali poderia viver uma família”, relata Elisabetta Piqué. “Utiliza-o como armazém, para guardar livros, caixas de farinha, aletria ou outras coisas que lhe oferecem – que, por sua vez, oferecerá a quem delas precise –, e instala-se num escritório confinante, mais pequeno e sóbrio.”

4 curiosidades sobre o Papa

Sabia que Francisco anda sempre com um crucifixo que furtou a um padre morto? Surpreenda-se com esta e outras curiosidades sobre o imprevisível sumo pontífice

Tio malandro
Filho de María Elena, a irmã mais nova de Francisco, Jorge Andrés, afilhado do Papa, revelou facetas de um tio e padrinho expedito. “Foi ele que me ensinou os meus primeiros palavrões”, contou. Mas mais: “Os meus pais disseram-me que, quando eu desatava a chorar, em bebé, ele molhava a minha chupeta em vinho ou em uísque, para me acalmar.”

Furto misericordioso
Francisco traz sempre consigo, numa bolsa feita especialmente na sua batina, um pequeno crucifixo. Em 2014, partilhou com jornalistas a divertida e macabra história da origem do objeto. Na verdade, confessou-se culpado de um furto. Tinha tirado a cruz do caixão de um padre morto, em Buenos Aires, em 1996, durante o velório. O sacerdote fora um confessor muito popular, e Jorge Bergoglio, então vigário-geral, trouxera flores para pôr no caixão, junto ao corpo. Quando ninguém estava a ver, tirara o crucifixo do rosário, que repousava nas mãos do padre morto, sussurrando-lhe: “Dá-me metade da tua misericórdia!”

Horror ao papamóvel
Em vésperas de presidir à sua primeira Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, em julho de 2013, Francisco disse ao responsável pela sua segurança: “Eu, naquela caixa, nunca hei de entrar.” Referia-se ao papamóvel. “Não quero viajar dentro de uma caixa de vidro; quero poder tocar, abraçar, beijar as pessoas. Se não for assim, para que vou eu ao Brasil?”, argumentava o Papa. E continuava: “Se vais visitar alguém que gosta muito de ti, amigos que querem comunicar contigo, vais visitá-los dentro de uma caixa de vidro? Não.” Francisco levou a sua avante. Quando aterrou no Rio de Janeiro, e após os cumprimentos protocolares (Dilma Rousseff era a Presidente do país), o Papa entrou num Fiat Idea, que nem sequer vidros elétricos tinha. Sempre sorridente, saudou, através da janela aberta, a multidão que se aglomerava ao longo do percurso, que conduzia ao centro da cidade. Os elementos da sua segurança, esses, talvez nunca tenham passado por uma situação tão aflitiva. Depois, Francisco lá se conformou: em cenários específicos, tem mesmo de se fazer transportar naquele veículo blindado de quatro toneladas e com vidros de cinco centímetros, sobrepostos.

Alfaiate zangado
O estilo frugal de Francisco de repente tornou-se moda na Cúria romana, o que muito prejudicou o negócio de Raniero Mancinelli, alfaiate papal há largas décadas. De súbito, queixou-se ele ao site católico Crux, os cardeais começaram a encomendar-lhe “coisas que são muito mais leves, simples e mais sóbrias (…) e, consequentemente, menos dispendiosas”. A veste litúrgica branca do próprio Francisco era velha e poderia rasgar-se com facilidade, no contacto com as pessoas, lamentava-se Mancinelli. O alfaiate disse ter a suspeita de que “à noite [o Papa] se limite apenas a pô-la a lavar e que a veste na manhã seguinte”. J.P.J.

Acorda às quatro e um quarto da manhã, para rezar e fazer os seus exercícios espirituais (uma sesta de 40 minutos há de rejuvenescê-lo), e anda sempre com um caderno de capa preta, em que toma numerosos apontamentos em letra miudinha. “A sua capacidade de trabalho é imensa”, diz aquela biógrafa. “Atende qualquer pessoa que bata à sua porta e estabelece uma relação pessoal, paternal, com cada um dos sacerdotes que tem a seu cargo. Embora nunca tenha tido um telemóvel, toda a gente sabe que é possível aceder a ele. Ligam-lhe de manhã, muito cedo, e ele atende. Se não for possível, mais tarde, as suas secretárias de confiança, Otilia e Elisa, anotarão o nome e o apelido de quem ligou e depois ele, sem intermediários, retribuirá a chamada. O mesmo se passa com as cartas que recebe, às quais responde pontualmente.” E ainda arranja tempo para abrir a porta à inter-religiosidade, que lhe é tão cara, participando num debate semanal, sem moderação, no Canal 21, estação de televisão da diocese de Buenos Aires, ao lado do rabino Abraham Skorka e do protestante Marcelo Figueroa.

Zanga-se quando sabe que há sacerdotes que pensam “da cintura para baixo”, obcecados com temas de moral sexual, ou que se recusam a batizar filhos de mães solteiras. Recomenda aos padres, que estão no confessionário, que não sejam rigoristas nem permissivos, mas misericordiosos. Constitui uma forte equipa de padres villeros, que acompanha no terreno e escuta em permanência. “Apoia-os no seu esforço por encontrar solução para dois problemas prioritários: a integração urbana das villas e o estado de exclusão da sua população, temas que são postos em evidência pelo flagelo das drogas”, diz Elisabetta Piqué. “O seu interesse é demonstrado através de atos de gestão, tendo em vista o desenvolvimento de escolas profissionais, creches, centros de reabilitação e construção de capelas, bem como pela sua frequente presença física.”

CORRUPTOS SEM MISERICÓRDIA

Aquela biógrafa conta uma história relacionada com uma visita de Bergoglio, em abril de 2012, a um centro de reabilitação de toxicodependentes, criado por padres villeros. Celia Díaz, então com 35 anos, não consumia droga há um ano e tornara-se voluntária do centro. Eis o relato que fez a Elisabetta Piqué: “Sabia que viria um cardeal, mas não fazia ideia, não sabia quem seria. [Bergoglio] chegou com os padres, como uma pessoa qualquer, no meio de todos nós. Convidei-o para tomar um mate [chá tradicional argentino] e começámos a conversar. Dei-me conta de que era muito humilde pela forma de se expressar, por tomar do mesmo mate que os toxicodependentes: não é qualquer um que o faria. Durante o pouco tempo em que conversámos a sós, cerca de meia hora, perguntou-me há quanto tempo estava aqui, como me chamava e como estava. Contei-lhe que os padres me tinham tirado da rua, o que lhe agradou muito. De repente, disse-me: ‘Não queres que eu te lave os pés?’ Eu não percebia nada, não sabia o que era isso, e respondi-lhe: ‘Desculpe, eu consigo lavar os pés sozinha.’ Ele replicou: ‘Não, não, eu quero benzer-te os pés.’ ‘Está bem, então força’, anuí… Não sabia que me ia pôr no meio de toda a gente, que ia ter de tirar os ténis… fiquei cheia de vergonha. É muito estranho que, de repente, venha alguém, te lave os pés e os beije… Mas depois senti-me aliviada… Nesse dia [o cardeal] também batizou o meu filho.” Um exemplo muito elucidativo e contrário ao clericalismo, que Bergoglio abomina.

Zanga-se quando sabe que há sacerdotes que
pensam “da cintura
para baixo”, obcecados com temas de moral
sexual, ou que se recusam a batizar
filhos de mães solteiras

E da misericórdia divina exclui os corruptos, como escreveu, em 1991, num ensaio. Aborda aí a diferença entre pecado e corrupção, assim discernida pelo biógrafo Austen Ivereigh: “Se uma pessoa fosse pecadora, haveria sempre esperança, dado que um pecador aceitava a verdade sobre quem era realmente e a medida do seu falhanço; assim que o pecador se sentisse pronto para se voltar para Deus, em toda a sua vergonha e arrependimento, seria perdoado e sairia transformado. (…) Por outro lado, a misericórdia não poderia chegar aos corruptos, dado que estes não tinham vergonha. Os corruptos rejeitavam a verdade acerca de si mesmos e recusavam-se a admitir o próprio falhanço. Não se voltavam para Deus, em toda a sua vergonha. Ao invés disso, distanciavam-se de Deus e tentavam chegar a outras pessoas que tornavam cúmplices nas malhas dos seus ludíbrios e da sua autojustificação.”

ELEIÇÃO PLEBISCITÁRIA

Na altura em que Bento XVI resignou, em fevereiro de 2013, Bergoglio tinha a sua reforma bem encaminhada. Já havia enviado para Roma a sua carta de renúncia, obrigatória quando os clérigos têm 75 ou mais anos, pensara num sucessor para arcebispo de Buenos Aires e encontrara a casa ideal para viver o resto dos seus dias, em Flores, o bairro onde nasceu e cresceu. “Quando nos conhecemos, em junho de 2018, Francisco insistiu num ponto que já tinha realçado em conversa com outras pessoas: não chegara a Roma com um plano, apenas com uma pequena mala de viagem; não tinha pensado que seria eleito e não chegara sequer a suspeitar das reuniões que se haviam realizado antes do conclave, nas quais alguns cardeais se tinham mostrado bastante ativos no sentido de o promover”, conta Austen Ivereigh.

Viajante Ao longo do seu pontificado, tem privilegiado as viagens às “periferias existenciais” (Albânia, Sri Lanka ou ilhas Maurícias, por exemplo) Foto: ANDREAS SOLARO/AFP via Getty Images

Mas é hoje consensual que Bergoglio começou a ganhar a eleição com uma intervenção de três minutos e meio, que fez no pré-conclave, e pela qual seria muito cumprimentado. Como revelou mais tarde o cardeal cubano Jaime Alamino, arcebispo de Havana, criticou a Igreja “autorreferencial, doente de narcisismo, que dá lugar a esse mal que é a mundanidade espiritual, esse viver para dar glória uns aos outros”. E concluiu: “Há duas imagens de Igreja – a Igreja evangelizadora, que sai de si mesma, a Igreja da palavra de Deus, que a escuta e proclama fielmente; ou a Igreja mundana, que vive dentro de si, por si e para si. Isto deve iluminar as possíveis mudanças e as reformas a realizar para salvação das almas.”

Já no conclave, na Capela Sistina, “mesmo enquanto os votos se iam acumulando a seu favor (…), ele continuava a não achar que iria ser eleito Papa e que, passado algum tempo, os cardeais acabariam por se voltar para outro candidato”, diz Austen Ivereigh. Os eleitores são 114 e quando, a 13 de março de 2013, Bergoglio chega aos 77 votos, na Capela Sistina desencadeia-se um forte aplauso, libertador de emoções e de tensão. A eleição do novo Papa, que quase alcançou 90 votos, foi plebiscitária. O primeiro a abraçar o cardeal primaz de Buenos Aires eleito Papa é o amigo e companheiro de banco, o cardeal brasileiro Cláudio Hummes. “Não te esqueças dos pobres”, diz-lhe, uma frase que se fixa na mente do primeiro Papa argentino, latino-americano e jesuíta, então com 76 anos. Quando, como manda o protocolo, lhe perguntam como quer ser chamado, responde: “Francisco”. A “acústica não é boa na Capela Sistina”, conta Elisabetta Piqué. “‘Ele disse Francisco?’, perguntam alguns. Os rostos de muitos purpurados, incrédulos, são eloquentes. Nunca ninguém se atrevera a escolher semelhante nome, que encerra uma mensagem clara, direta, forte, um programa de governo.” Há quem julgue que o novo Papa se está a reconduzir a São Francisco de Xavier, missionário jesuíta que viajou até ao Oriente. Mas Bergoglio, “um sacerdote que sempre visitou as zonas de barracas, que sempre esteve do lado dos pobres e que renegou qualquer ostentação”, está a pensar, claro, em São Francisco de Assis, o italiano que, no século XIII, respondeu a um chamamento divino, abdicou da família rica e dedicou a vida aos mais desfavorecidos, fundando os Franciscanos.

“LOBOS DEVORADORES”

Da inquietação, Bergoglio transitou para a paz interior. “E essa paz nunca mais o abandonou. Francisco está nas mãos de Deus e faz o que pode”, diz Austen Ivereigh. “Só quero que Cristo permaneça sempre no centro da Igreja”, afirmou a um colaborador muito próximo, o padre Antonio Spadaro, pouco depois de ser eleito Papa. “Assim, será Ele a realizar as reformas necessárias.”

Que era diferente, contudo, começou logo a mostrá-lo no dia da eleição. “Quando aparece vestido de branco, como Papa, deixa os cardeais atónitos, pois traz a sua habitual cruz e o seu anel de prata, e rejeitou a cruz peitoral pontifícia, de ouro”, conta Elisabetta Piqué. “Também não enverga a murça vermelha, que os antecessores usaram quando se deram a conhecer ao mundo”, dizendo, de forma delicada, “não, obrigado”, ao assistente que o ajuda a vestir-se. Do mesmo modo, “não deixa que lhe tirem os sapatos pretos ortopédicos. Nunca poderia calçar aqueles mocassins vermelhos, cor de sangue, que lhe oferecem. O novo Papa argentino mostra-se firme desde o primeiro minuto. Sabe exatamente o que quer e o que não quer.”

Frei Bento Domingues

“Os excluídos passaram a ter uma pátria na Igreja”

Francisco devolveu a liberdade aos cristãos, defende o frade dominicano

Frei Bento Domingues no Convento de São Domingos de Benfica Foto:José Carlos Carvalho

Há largas décadas, destacado analista e comentador de assuntos religiosos, na comunicação social portuguesa, a que acresce a sua relevância como teólogo e opositor à ditadura salazarista do Estado Novo, frei Bento Domingues, 88 anos, sublinha, nesta entrevista à VISÃO, que Francisco “entregou a Igreja a ela mesma” – ao contrário do que fizeram João Paulo II e Bento XVI.

Como avalia o pontificado de Francisco?
Francisco veio reatar a figura de João XXIII (1958-1963), que convocou o Concílio Vaticano II (1962-1965), o grande acontecimento do século XX ao nível religioso e da Igreja. Com a teoria das periferias que defende, os excluídos passaram a ter uma pátria na Igreja. E esta, para mim, é a grande renovação. Além de que permitiu que a população cristã pudesse exprimir-se nas paróquias, em grupos que se formassem, com toda a liberdade. A infalibilidade do Papa não existe no vocabulário de Francisco, o que também é novo.

Parece estar a falar de um Papa libertador…
E estou. Fez o contrário do que Pio XII, João Paulo II e Bento XVI fizeram. Francisco entregou a Igreja a ela mesma. É necessária, claro, uma Igreja organizada, mas essa organização não existe para sufocar; existe, sim, para incentivar a criatividade, a liberdade, a que Francisco chama “a evangelização”. Parece-me que vai ser difícil sufocar isto. Depois, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso não são, nele, apenas designações, são mesmo uma prática.

Qual foi o último ato do Papa que mais o impressionou?
Além do número impressionante de mulheres que nomeou para trabalhar na Cúria, foi a carta – que considero um documento fantástico – que escreveu ao arcebispo argentino Víctor Fernández, quando há pouco tempo o nomeou prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé. O Papa diz-lhe que a sua tarefa não é guardar o que existe, é, sim, guardar a liberdade de investigação na Teologia – o que, para mim, é algo de extraordinário.

Julga que o sucessor de Francisco prosseguirá o seu legado?
Isso seria muito importante, mas a História está cheia de surpresas. J.P.J.

E as peculiaridades continuaram. De acordo com o rito, depois da leitura de um excerto do Evangelho e de uma oração, os cardeais passam, um a um, diante de Francisco, para lhe manifestar a obediência. “Bergoglio, que odeia ser reverenciado como se fosse um imperador, continua a provocar assombro. Quando os cardeais do Vietname, Jean-Baptiste Pham Minh Man, de 79 anos, e da China, John Tong Hon, de 72, tentam beijar-lhe a mão, impede-os. É ele, o Papa, que lhes beija a mão, a eles, num gesto nunca visto”, diz aquela biógrafa. E, ao apresentar-se à multidão, que se aglomera na Praça de São Pedro, definindo-se como alguém que os colegas foram buscar “ao fim do mundo”, abençoa os crentes – mas também lhes pede que o abençoem, algo de que não havia memória de um Papa solicitar.

A partir daquele dia, líder de 1,2 mil milhões de católicos espalhados pelo mundo, Francisco sabe que o espera um pontificado dificílimo. Tem, porém, a noção exata do que o rodeia. Logo a 16 de maio seguinte, lança um forte ataque aos bispos e sacerdotes que cedem à tentação do dinheiro e da vaidade, e que, em vez de serem pastores, se tornam “lobos devoradores”. As suas palavras, diz Elisabetta Piqué, “fazem pensar no escândalo Vatileaks e nas acusações de corrupção, que vieram à luz na própria Cúria romana. Também fazem pensar naqueles Mercedes pretos com motorista, que alguns cardeais da Cúria usam no Vaticano. Alguns vivem sozinhos, em apartamentos com vistas espetaculares sobre a Cidade Eterna, com centenas de metros quadrados, são reverenciados por todos, chegando mesmo a guardar na sua garagem veículos 4×4.”

Mas, velha raposa, Francisco tem uma estratégia para chamar os adversários ultraconservadores à liça, nota Austen Ivereigh. Vai buscar inspiração ao “magnífico silêncio de Jesus ao longo da sua Paixão”, à força com que “vence a tentação de responder, de ser ‘mediático’”. Ao encontrar a coragem para não falar, diz o Papa, “contanto que seja um calar manso e não rancoroso”, tentará o diabo – que confunde o silêncio com fraqueza – para campo aberto. 

“OVERDOSE” DE OPULÊNCIA

“O homem que pôs as limusines na garagem”, chamar-lhe-á a Imprensa italiana. Francisco dispensa o Mercedes papal e faz-se transportar num bem mais modesto Ford Focus. Mas não só: decide não viver no Palácio Apostólico, que sofreu uma profunda reestruturação na era de Bento XVI. O apartamento tem agora dez divisões – incluindo um consultório médico, uma capela, uma cozinha e uma sala de jantar –, com salões decorados e vistosos pavimentos de mármore do século XVI. Na primeira visita que ali fez, ao percorrer os salões, Francisco exclamou: “Cabiam aqui 300 pessoas!” É demasiada opulência para o seu gosto quase monacal. Só o usa para aparecer à janela do seu gabinete, aos domingos, para a oração mariana do Angelus, ou utiliza o segundo piso para receber em audiência Chefes de Estado e outras personalidades.

Para viver e trabalhar, o 266.º sumo pontífice escolheu a Casa de Santa Marta, a poucos metros da Basílica de São Pedro. É um edifício de cinco pisos, com 106 suítes, 22 quartos individuais, um apartamento e várias salas. “Ali, o Papa pode cruzar-se, na sala de jantar, à hora das refeições ou no elevador, com outros eclesiásticos de passagem por Roma, o que lhe permite não perder o contacto com o mundo exterior”, nota Elisabetta Piqué. Francisco, esse, apresentou uma razão ainda mais forte: “Não é apenas uma questão de não amar a riqueza, mas sinto a necessidade de viver no meio das pessoas. Se eu vivesse isolado, não seria bom para mim. Fico em Santa Marta por motivos psiquiátricos.”

Regresso O Papa Francisco com Marcelo Rebelo de Sousa, no final da visita a Portugal, em 2017

Santa Marta (em cuja capela celebra missa todos os dias, às sete em ponto da manhã) converteu-se, pois, no quartel-general do Papa; e a sua suíte, no segundo piso, no seu gabinete principal e no seu bunker. Simples, de paredes brancas, um pouco despidas – um quadro de São Francisco de Assis, crucifixos, a estatueta de Nossa Senhora de Luján e de outras Virgens em cima de várias mesas –, a suíte é constituída por uma pequena sala, um escritório, um quarto com uma imponente cama de madeira escura e pela casa de banho. Os claros sinais que dá de que quer uma “Igreja pobre para os pobres” têm um efeito imediato no Vaticano. “Na Cúria romana, onde a maioria se molda a esse novo vento do Sul, de repente voltam a estar na moda anéis e crucifixos de prata. Deixam de se usar correntes e crucifixos de ouro (e se forem incrustados de pedras preciosas, pior ainda)”, diz a biógrafa.

Neto e filho de migrantes, a primeira viagem que faz no seu pontificado é a Lampedusa, ilha situada a sul da Sicília, mais perto de África do que de Itália, para “chorar os mortos” que todos os anos, no meio da indiferença geral, se afogam naquele mar, migrantes que soçobram na fuga à guerra e à miséria, à porta da entrada na Europa. Numa dura homilia para a União Europeia, Francisco indigna-se: “Estes nossos irmãos e irmãs procuravam sair de situações difíceis para encontrar um pouco de serenidade e de paz. Procuravam um lugar melhor para eles e para as suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes aqueles que procuram isso não encontram compreensão, acolhimento, solidariedade! E as suas vozes chegam até Deus!” Depois, faz uma pergunta e dá a resposta: “Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém!”

E O “GAY” AMOS FALOU COM O PAPA

Nesta década de pontificado, aconteceram coisas inauditas no Vaticano, com as quais Francisco (agora com 86 anos e uma saúde cada vez mais frágil) apontou os caminhos das reformas que pretende empreender e deixar como legado ao sucessor. O Papa das viagens às “periferias existenciais” (Albânia, Sri Lanka ou ilhas Maurícias, por exemplo), e que nunca se esquece de proferir a palavra “alegria”, estava radiante, a 16 de abril de 2019, na Praça de São Pedro, quando se encontrou com a jovem sueca Greta Thunberg, então com 16 anos, e inspiração de greves climáticas por todo o mundo. “Estão separados por décadas, mas o velho Papa e a adolescente eram motivados pela mesma paixão”, descreve Austen Ivereigh. “Francisco tinha apenas uma coisa a dizer-lhe: ‘Vai, vai, continua’.” Thunberg sentiu-se arrebatada. “Obrigada por falar do clima, por falar a verdade. É muito importante.”

No mês seguinte, o Papa participou no último episódio de uma série da BBC intitulada Pilgrimage (Peregrinação). As filmagens acompanharam celebridades britânicas de menor gabarito, enquanto percorriam a antiga rota de peregrinação da via Francigena, da Cantuária até Roma. Entre os oito peregrinos encontrava-se Stephen Amos, um comediante gay, irado com o que entendia ser a rejeição religiosa dele. Ao chegarem à Cidade Eterna, souberam que iriam ser recebidos por Francisco, numa audiência privada que seria filmada. Amos insistiu em ser-lhe permitido questionar o Papa e as doutrinas da Igreja. Os produtores temiam um incidente diplomático, mas o Vaticano comunicou que ele poderia dizer ao Papa o que quisesse. Relata Austen Ivereigh: “Amos falou a Francisco das suas recentes preocupações: ‘Ao vir nesta peregrinação, não sendo religioso, estava à procura de respostas e de fé. Mas, como homem gay, não me sinto aceite.’ O Papa olhou para ele com amor, de sobrolho franzido. ‘Dar mais importância ao adjetivo do que ao substantivo não é bom’, disse-lhe. ‘Somos todos seres humanos e temos dignidade. Não interessa quem somos, ou como vivemos a nossa vida, ou temos esta ou aquela tendência – não perdemos a nossa dignidade. Há pessoas que preferem selecionar ou descartar pessoas por causa de um adjetivo; estas pessoas não têm um coração humano.’”

Somos todos seres humanos e temos dignidade. Não interessa quem somos, ou como vivemos a nossa vida, ou temos esta ou aquela tendência – não perdemos a nossa dignidade

A sinodalidade (palavra que significa “caminhar juntos”), diz Austen Ivereigh, “é o coração da reforma de Francisco” – que brada contra confessionários transformados em “câmaras de tortura”. Por isso, o Papa convocou, para outubro próximo e para o mesmo mês de 2024, um inédito Sínodo, em que um quarto dos participantes são não bispos, com direito de voto, e que vão debater, cara a cara com os bispos, o presente e o futuro da Igreja.

Mas Francisco – que teve a coragem de interditar as missas durante a pandemia de covid-19, para fúria dos ultraconservadores – traz um enorme peso na consciência: como confidenciou àquele seu biógrafo, o tsunâmi dos abusos sexuais de menores e de adultos por parte de membros do clero foi “o ponto mais baixo” do seu pontificado, admitindo até que cometeu erros de avaliação no processo. Perante tamanha tragédia, Francisco dá o exemplo máximo de que a infalibilidade papal, outrora tão oportuna para fugir a responsabilidades, não faz mesmo parte do seu vocabulário.

Quanto custa a JMJ?

Carlos Moedas disse que o investimento na Jornada Mundial da Juventude 2023 (JMJ) “não tem preço”. Mas será mesmo assim? Com um custo estimado em €160 milhões, o retorno económico esperado será que compensa?

O preço
Ninguém sabe exatamente quanto vai custar a JMJ, e a margem de erro ainda é maior quando se fala no possível retorno económico da iniciativa. Entre palcos e outras infraestruturas, a organização custará dezenas de milhões de euros, prevendo-se a chegada de um milhão de visitantes a Portugal, cujos gastos representarão um impulso económico. Mais difícil de antecipar são os efeitos intangíveis positivos (projeção da imagem do País) e negativos (sobreutilização dos serviços públicos). O valor mais citado como custo de organização aponta para os €160 milhões, 80 dos quais serão avançados pela Igreja Católica. A Câmara Municipal de Lisboa teria de gastar €35 milhões, Loures €10 milhões e o Estado €30 milhões. Valores estimados há vários meses e que, entre derrapagens, atrasos e ajustes diretos de última hora, acabarão possivelmente ultrapassados. Segundo o Expresso, dos contratos, metade foi celebrada no último mês.

A polémica estalou em Portugal devido à despesa prevista para a construção do palco em que ocorrerá a cerimónia principal, o que obrigou a ajustar ligeiramente o projeto. Em comparação com outras JMJ, a edição de Lisboa é significativamente mais cara, com uma fatia grande dos custos a ser suportada pelos contribuintes. A de 2011, em Madrid, custou €50 milhões. No Rio de Janeiro, em 2013, foram €20 milhões.

O retorno
Caso se confirme a previsão de um milhão de peregrinos numa só semana, a chegada destes visitantes representará também um retorno económico para o País. Ainda que não tenham o mesmo perfil de consumo do que os turistas “clássicos” – há menus baratos disponíveis, muitos nem alojamento pagam –, o número de peregrinos é tão grande que é quase impossível não dinamizar o consumo. Por comparação, em agosto de 2022, Portugal recebeu menos de dois milhões de hóspedes estrangeiros nos alojamentos turísticos nacionais.

A única estimativa de impacto económico foi feita pela consultora PwC e pelo ISEG, e aponta para um retorno económico que poderá ficar entre os €410 e os €560 milhões. Mas quão fiáveis serão estas estimativas? João Duque, presidente do ISEG, reconhece à VISÃO que “este tipo de iniciativas não acontece várias vezes ao ano para haver acesso a dados históricos”. Diz terem sido seguidas as práticas internacionais, mas admite que só depois da JMJ é que haverá uma ideia mais clara do retorno.

De fora dessa análise ficou o que se chama “efeitos intangíveis”. É nisso que se baseia António Costa para falar na “projeção internacional do País” e Carlos Moedas quando afirma que estas jornadas “não têm preço”.

Mas esses efeitos podem também ser negativos. Qual será o impacto económico resultante de atrasos na chegada ao trabalho, devido à sobrelotação dos transportes? Ou dos tempos de espera ainda maiores no SNS? Qual o custo acrescido para a higiene urbana? E ainda nem sabemos se os turistas convencionais não se retraíram devido à JMJ. Mais difícil ainda de estimar será o desconforto provocado aos lisboetas nestes dias.

João Duque minimiza. “Tendo a desvalorizar questões de longo prazo, como a ‘imagem de Portugal’, mas também os impactos negativos nos transportes e na saúde, porque há um êxodo de Lisboa em agosto, e estes efeitos são acauteláveis com o reforço desses serviços”, aponta.

Quando as contas forem feitas, a JMJ terá mesmo um preço – mesmo que seja cedo para se dizer se será barato ou caro. N.A.

€564 milhões
Impacto esperado

A única estimativa efetuada por PwC e ISEG aponta para um retorno económico entre €411 e €564 milhões

Quando celebramos o poder transformador das novas ideias e soluções, da inovação e da criatividade, como acontece a propósito do Dia Mundial da Criatividade e Inovação, é impossível não olhar para este tema, sobretudo quando se trata da área da saúde, sem fazer uma reflexão sobre a questão do acesso. Num setor onde a inovação pode, literalmente, salvar vidas, continuam a subsistir obstáculos que esmagam o potencial criativo e impedem que a inovação chegue a quem dela mais precisa.

Isso significa que, quando estamos a falar da inovação na área da saúde, especialmente ao nível do avanço em forma de novos tratamentos e do desenvolvimento de medicamentos inovadores, não devemos considerar apenas o progresso técnico ou científico que esses avanços configuram, mas também é imperativo contemplar a tradução deste progresso em benefícios reais para os doentes. E é aqui que enfrentamos desafios que têm tanto de importante como de urgentes. Falo de processos burocráticos extensivos e da rigidez de normas e de estruturas públicas, que muitas vezes atrasam ou dificultam o acesso a tratamentos que já existem, com consequências que podem ser devastadoras para os doentes.

Existem dois tipos de inovação: a inovação incremental, que nos tem trazido, ao longo do tempo, incrementos inegáveis a nível da sobrevivência global e da qualidade de vida dos doentes; e depois temos a inovação disruptiva, que é aquela de que hoje em dia se fala cada vez mais, associada às chamadas terapêuticas dirigidas, que tem o potencial de mudar completamente a forma de abordagem de uma doença.

Quer uma, quer a outra, são importantes para aumentar a sobrevida dos doentes e a sua qualidade de vida. E todas são fruto de investigação e de um investimento enorme de tempo e recursos, que se vai refletir em resultados também estes enormes. É verdade que os sistemas de saúde enfrentam custos consideráveis ao adotar estas inovações. No entanto, quando reconhecemos que muitos dos beneficiados são pessoas em plena idade produtiva – cidadãos que podem manter a sua vida ativa, podem continuar a ser produtivos, podem continuar a tratar da família e a ter a sua vida plena, vida que eles têm o direito de ter, contribuindo para a sociedade com o seu trabalho e para a família com a sua presença-, então deixamos de falar de custos, e passamos a olhar para estas contas como um investimento com retorno garantido.

Ainda assim, continuamos a ter olhares redutores para um processo que nada tem de simples. E continuamos também a ter exemplos de terapêuticas, fruto de um trabalho de criatividade e inovação que envolve anos e muitas pessoas diferentes, com um valor para a saúde e impacto potencial difícil de quantificar, sobretudo quando se trata de prolongar vidas ou melhorar a sua qualidade, presas em camadas de aprovações regulatórias ou sistemas de financiamento inflexíveis.

E embora as regras sejam, mais do que necessárias, essenciais, assim como as normas que garantem a segurança, a eficácia desta inovação e o seu valor, o excesso de burocracia, quando não equilibrado, torna-se um bloqueio ao progresso e uma barreira para a equidade em saúde.

É que, por detrás dos conceitos abstratos, além das estatísticas e dos números, há doentes, há pessoas e há também evidência de resultados clínicos. Não podemos esquecê-lo ou ignorar que a saúde é um direito, e não um privilégio. Desta forma, a aposta na inovação implica também um trabalho em prol da democratização do acesso a medicamentos e tratamentos.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Não é por acaso que o Dia Mundial da Criatividade e Inovação tem este nome. Poderia dar apenas destaque à criatividade, ou focar-se só na inovação. Mas de facto, a criatividade é um pré-requisito necessário para a inovação. É assim em todas as áreas e também não o poderia deixar de ser na Saúde.

Nesta área o impacto da inovação é inegável, através dos avanços na inteligência artificial, na telemedicina e nas terapias digitais, que em pouco tempo passaram de meras promessas a realidade, materializadas não só em diferentes ferramentas, mas num potencial transformador da prestação de serviços de saúde, capazes de a tornar mais eficaz, acessível e economicamente sustentável e, ao mesmo tempo, melhorar o acesso aos cuidados de saúde.

A revolução criativa na saúde promete assim otimizar diagnósticos, tratamentos e processos administrativos, oferecendo um caminho sustentável para um futuro onde a excelência em saúde não implica necessariamente mais, mas sim melhor despesa. São ferramentas que podem facilitar a gestão de doenças crónicas, antecipar diagnósticos, personalizar tratamentos e muito mais.

Ao melhorar a saúde e a longevidade das pessoas podemos ainda aumentar a produtividade económica: uma população mais saudável é também, uma população mais produtiva, que falta menos ao trabalho por doença e contribui mais eficazmente para a economia. Logo, a inovação na saúde pode servir como um catalisador do desenvolvimento económico, um motor da economia, de criação de emprego e de competitividade global.

Em Portugal, casos de sucesso e exemplos desta inovação não faltam, assim como não faltam mentes criativas, nas equipas médicas, nos meios académicos e na indústria farmacêutica. Constantemente são geradas ideias com verdadeiro potencial revolucionário e trabalho de equipa, entre empresas farmacêuticas, startups, universidades e outras organizações, que continuam a acreditar a trabalhar por um ecossistema nacional mais robusto de inovação em saúde.

Mas ainda muito há por fazer. Os números falam por si: em 2022, foram gastos 25.370,2 milhões de euros em saúde (10,5% do PIB, ou 2.463,4 euros per capita), com um aumento de 5,6% face ao ano anterior; em 2023, segundo o Instituto Nacional de Estatística, este investimento cresceu mais 4,7% em termos nominais. Esta tendência ascendente sublinha a urgência de abraçarmos soluções verdadeiramente inovadoras, não apenas para elevar a qualidade e eficiência dos serviços de saúde, mas também para conter a crescente espiral de custos.

Nem sempre temos é a capacidade de ultrapassar os obstáculos à inovação que continuam a existir no País. A burocracia é ainda uma palavra feia, que impede o desenvolvimento da inovação e a sua adaptação às necessidades locais; a falta de capacidade de investimento é outro dos obstáculos, a que se junta, muitas vezes, uma falta de visão que permita o posicionamento de Portugal como líder em inovação nesta área.

Da lista de desafios faz ainda parte o elevado custo da investigação e desenvolvimento e as questões éticas, associadas a tecnologias como a inteligência artificial, o que exige medidas para garantir o seu uso responsável e equitativo.

É preciso olhar para a inovação tendo em conta todo o seu potencial, porque as nações que investem na inovação em saúde não têm como resultado apenas uma melhoria dos seus sistemas de saúde, mas conseguem posicionar-se como líderes na economia global, o que se traduz em poder económico e capacidade de impulsionar a competitividade global.

Em suma, a inovação na saúde, embora desafiadora, é um investimento essencial no futuro coletivo. Com o tempo, trará benefícios inestimáveis, vantagens significativas e um bem-estar comum para todos. É crucial, portanto, que continuemos a investir e a apoiar iniciativas inovadoras, pois elas são a chave para um futuro mais saudável.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

As chamadas “tarifas recíprocas” de Donald Trump ainda não entraram em vigor, mas já estão a provocar estragos em várias empresas portuguesas que exportam os seus produtos para aquele mercado.

Em 2024, Portugal exportou mais de 5,3 mil milhões de euros de bens para os EUA, o que equivale a 6,8% das nossas vendas ao exterior. Ao todo, são 4 255 as empresas portuguesas que vendem os seus produtos para aquele país e, destas, 624 têm a totalidade das suas exportações concentrada nos EUA.

Os setores de atividade mais expostos são o dos medicamentos, cujas vendas para os EUA totalizaram 1,16 mil milhões de euros, que numa primeira fase não iriam ser abrangidos pelas tarifas, mas, face à imprevisibilidade das decisões de Donald Trump, o setor mantém-se prudente sobre o futuro.

Os produtos petrolíferos surgem em segundo lugar desta lista, com um valor de vendas a rondar os mil milhões de euros nos EUA, e também estes poderão ficar excluídos dessa lista. Segundo o AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal), cerca de 44,5% dos produtos que vendemos para os EUA poderão estar isentos destas taxas.

O mesmo já não poderão dizer outros setores que exportam para aquele mercado, como o dos plásticos e borracha, que ocupa a terceira posição com 340 milhões, e o das máquinas e equipamentos elétricos, cujas vendas para os EUA ascendem aos 295 milhões.

Calçado As exportações para os EUA duplicaram na última década e já ultrapassamos 100 milhões de euros

A Administração norte-americana voltou a adiar, por 90 dias, a data em que os produtos importados pelos EUA passam a pagar impostos alfandegários – que no caso de Portugal e de toda a União Europeia serão de 25% para alguns bens específicos, como o aço e o alumínio, e de 20% para todos os outros produtos que não estejam isentos –, mas os efeitos já começaram a fazer-se sentir na economia real.

“Os Estados Unidos pararam as encomendas de vinhos portugueses e da Europa. Existe uma grande incerteza que fez com que a cadeia de distribuição nos EUA parasse as encomendas de vinhos portugueses e de vinhos da Europa. Neste momento, estamos a enfrentar um problema terrível e não estamos a conseguir vender”, explica Paulo Amorim, presidente da Associação Nacional dos Comerciantes e Exportadores de Vinhos e Bebidas Espirituosas.

Os EUA são um dos mercados mais importantes para este setor, como explica Rui Soares, presidente da Associação dos Viticultores Profissionais do Douro: “Não é tanto o peso do mercado em quantidade, é mais em termos de volume de negócio, porque os vinhos que exportamos para o mercado americano são vinhos muito valorizados e com preços médios muito acima daquilo que comercializamos para outros países.”

Atualmente, o mercado norte-americano compra a Portugal mais de 100 milhões de euros de bebidas alcoólicas por ano.

Ao todo, são 4 255 as empresas portuguesas que vendem os seus produtos para os EUAe, destas, 624 têm a totalidade das suas exportações concentrada naquele país

Paulo Amorim, por sua vez, teme que, quando as tarifas entrarem em vigor, os custos associados “sejam, na sua maior parte, assumidos pelos produtores de vinho”, o que irá tornar a situação ainda mais difícil.

Outro dos setores de atividade que poderão sentir na pele o efeito das tarifas é o do calçado, pois na última década Portugal quase duplicou as suas vendas para aquele país, para perto dos 100 mil milhões de euros, fazendo dele o quinto maior mercado de destino do nosso calçado.

“Exportamos mais de 90% da nossa produção para 170 países, mas consideramos o mercado norte-americano estratégico, pois é a grande aposta da indústria portuguesa de calçado para a próxima década”, diz Paulo Gonçalves, diretor de comunicação da APICCAPS, associação de industriais portugueses do setor.

Apesar das dificuldades, a indústria do calçado não desistirá da sua estratégia. “Estamos no mercado americano para durar. Ainda que não estejamos dependentes de nenhum mercado, acreditamos que, em circunstâncias normais, continuaremos a afirmar-nos nos EUA pela qualidade e pelo serviço do nosso calçado”, garante Paulo Gonçalves, explicando que “entre as economias avançadas, os EUA são o país que oferece melhores perspetivas”, e o calçado nacional “tem hoje muito melhores condições para abordar o mercado norte-americano, nomeadamente na sequência dos investimentos em curso nas áreas de automação e sustentabilidade”.

Segundo o Banco de Portugal, o impacto das tarifas sobre as exportações portuguesas dependerá de vários fatores, como “a magnitude do aumento das taxas aduaneiras sobre cada tipo de bem e o peso destes nas exportações de Portugal para o mercado dos EUA”.

Efeito no PIB

“Este aumento das tarifas poderá resultar numa contração acumulada do PIB da área do euro entre 0,5% e 0,7% ao fim de três anos, com um impacto mais significativo no primeiro ano”, esclarece o Banco de Portugal. Em relação à economia portuguesa, o relatório do banco central admite que “o impacto global dos choques considerados aponta para uma redução cumulativa do PIB em torno de 1,1% no final de três anos, com os efeitos concentrados nos primeiros dois anos”.

Para este organismo, existem setores mais vulneráveis a estas tarifas, como o têxtil, porque 12% das suas empresas apresentavam uma elevada exposição ao mercado norte-americano.

Segundo a Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, o impacto das tarifas será “significativo”, mas ainda é difícil quantificar as perdas potenciais.

“Estamos ainda numa fase inicial deste processo e persistem muitas incertezas quanto à forma como os diferentes países visados irão reagir a estas medidas”, disse uma fonte oficial da associação.

Têxtil Segundo o Banco de Portugal, este é um dos setores mais expostos à economia norte-americana

Para o mesmo responsável, citado pela agência Lusa, é ainda necessário perceber como os próprios operadores e consumidores norte-americanos, que serão diretamente afetados, irão responder à nova realidade, bem como qual será a posição final da Administração Trump face a eventuais retaliações.

“Sabemos, desde já, que haverá perdas para o setor, mas neste momento é difícil quantificar com precisão o seu impacto. Trata-se de um setor muito diverso e complexo, com níveis de dependência do mercado norte-americano que variam significativamente de empresa para empresa e de produto para produto”, explicou a mesma fonte.

Os efeitos das tarifas ainda são difíceis de quantificar. Na prática, assim que estas entrarem em vigor, os consumidores americanos poderão ter um aumento dos preços dos bens e baixar a procura, mas, por outro lado, as empresas que exportam poderão tentar suportar parte desse aumento dos custos, baixando as suas margens de lucro.

Segundo um inquérito realizado pela Câmara de Comércio Americana em Portugal, 88% das empresas exportadoras para aquele país admitem que irão sofrer o impacto das tarifas na sua atividade, sendo que mais de metade dizem que os efeitos serão “muito grandes”.

No mesmo documento, 72% dos inquiridos dizem que a probabilidade de investir nos EUA para expandir as operações naquele país é “baixa”, contrariando a ideia de Trump de que as empresas que vendem para os EUA irão montar fábricas no país para poderem vender os seus produtos.

Questionados sobre se a sua empresa pretende ajustar estratégias comerciais para mitigar os impactos das novas taxas, 72% dos gestores disseram que sim, e a maioria irá optar por procurar novos mercados.

O plano português

Para tentar minimizar parte do impacto das tarifas, o Governo anunciou, entretanto, uma série de medidas de apoio às empresas exportadoras.

Trata-se do Programa Reforçar, que engloba verbas superiores a dez mil milhões de euros através de linhas de crédito, garantias bancárias e reforço dos seguros de crédito para exportação (ver caixa Apoio à Exportação).

Na ocasião, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, destacou que Portugal vai continuar a acompanhar o trabalho da Comissão Europeia “com a consciência de que uma pausa é apenas uma pausa”.

O impacto das tarifas poderá resultar numa redução cumulativa do PIB português em torno de 1,1% no final de três anos,com os efeitos concentrados nos primeiros dois anos

“Portugal está ligado aos Estados Unidos da América por uma sólida amizade e uma intensa relação política e económica. Mas, por vezes, é preciso assumi-lo, até com os nossos grandes amigos temos algumas divergências”, continuou Luís Montenegro.

Para o governante, as tarifas são uma ameaça ao crescimento económico mundial e podem resultar num conflito comercial que “não beneficia ninguém”. “Sem alarmismos, sem precipitações, estamos preparados e tomaremos as decisões necessárias para lidar o melhor possível com esta situação desafiante”, rematou.

Por enquanto, as taxas estão adiadas e ninguém consegue dizer ao certo se o plano de Trump irá ou não para a frente. As dúvidas são muitas. Tal como escreveu esta semana o presidente da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), Armindo Monteiro, num artigo de opinião: “Sabendo-se da alergia que Trump tem à proporcionalidade e ao bom senso, é melhor prepararmo-nos para o pior. E o pior é a imposição de tarifas à Europa baseadas em contas criativas, que juntam na mesma equação o valor do défice comercial e o valor total de bens importados. Graças a esta fórmula rebuscada, a UE deve preparar-se para tarifas na ordem dos 20% e definir uma estratégia conjunta para proteger os interesses europeus.”

Certezas apenas serão conhecidas no dia 9 de junho, a nova data prevista para a entrada em vigor das tarifas. Até lá, resta às empresas arranjar soluções criativas para não perderem um dos mercados mais importantes para as suas exportações. 

Medidas para dar a volta

Mais de dez mil milhões para “mitigar” efeitos das tarifas

O Programa Reforçar foi apresentado pelo Governo, para apoiar as empresas exportadoras e mitigar os efeitos da entrada em vigor das tarifas norte-americanas sobre os produtos importados. O plano prevê não só compensar as potenciais perdas que as empresas exportadoras tenham nos EUA, mas também apoiá-las na procura de novos mercados para substituir a quebra de vendas nos EUA. Tem uma verba total de dez mil milhões de euros e assenta em quatro pilares:

Linha de crédito Banco de Fomento
É criada uma linha do Banco de Fomento, com mais de cinco mil milhões de euros, que permite às empresas financiarem-se com garantias competitivas para que possam investir ou reforçar o seu fundo de maneio. Segundo o ministro da Economia, Pedro Reis, as candidaturas serão “fáceis”, pois esta linha está construída com modelos de pré-aprovação e contratação automática.

Nova linha de apoio
O Governo vai lançar uma nova linha de 3 500 milhões de euros, com maturidades a quatro e a 12 anos, para suportar o fundo de maneio e o investimento, podendo parte dela ser convertida em fundo perdido e subvenções, de forma a reforçar o capital das empresas mais expostas à volatilidade dos mercados internacionais.

Reforço dos seguros de crédito
Incremento dos plafonds em 1 200 milhões de euros para cobrir riscos de exportação, não só em mercados emergentes, mas também em mercados tradicionais. Serão ainda bonificados apólices e prémios, generalizando o acesso sobretudo para PME exportadoras. “Esta era uma reivindicação antiga das empresas”, disse Pedro Reis, que garante tratar-se da “democratização do acesso a estes seguros”.

Promoção da internacionalização
Por fim, o Executivo de Luís Montenegro quer expandir os apoios à internacionalização, permitindo às empresas participarem em mais feiras internacionais, reforçarem estratégias de marketing, entrarem em novos canais digitais e aumentarem a sua presença nos mercados externos.

Palavras-chave:

É jornalista, foi correspondente do The Guardian na Escandinávia e, nos últimos anos, tornou-se autora best-seller na área da psicologia e da parentalidade. Não se assume como especialista porque a maioria dos seus livros são escritos a partir da sua própria experiência: viveu 12 anos na Dinamarca, o que lhe permitiu tomar contacto com um quotidiano bem diferente daquele onde nasceu há 45 anos, em Inglaterra. Em Como Educar um Viking (Alma dos Livros, 310 págs., €19,45), conta que tudo começou quando deu por si a “googlar” “melhor machado para crianças” (se isto não chega para despertar o interesse…). A retórica de Helen Russell pode até parecer um pouco proselitista, mas também não restam dúvidas de que é possível encontrar ensinamentos úteis no seu testemunho. 

Sobre crianças e parentalidade, todos dizem que não há receitas. Posso concluir que, na sua opinião, existe uma receita chamada “espírito viking”?
[Risos.] Não tenho grandes certezas de que vou aperfeiçoar estes métodos, mas penso que existem muitas maneiras de comprovar que os países nórdicos possuem algumas coisas que fazem muito sentido. Estão sustentadas pela Ciência e funcionam, parecem ajudar. Os países nórdicos estão sempre nos tops dos rankings da felicidade, sondagem após sondagem, ano após ano. Portanto, admitindo que existe uma receita, estou a tentar usar o caminho viking. Vi que funciona, em termos científicos. E observei como as pessoas acabam por ser mais gentis, inclusivas, adotam formas de ser mais justas.

Há quanto tempo vive na Dinamarca?
Vivi na Dinamarca durante 12 anos, regressei apenas no final do ano passado.

E regressou para a Inglaterra?
Sim, para o Sul. Agora, estou a tentar usar todas estas ideias em Inglaterra. 

Que idade têm os seus filhos?
Dez anos e os gémeos têm sete.  

Em síntese, o que entende por “espírito viking”?
Penso que passa muito por dar responsabilidade às crianças, dar-lhes liberdade, tentando ser justo de maneira a que elas não entrem nas ideias hierárquicas, de que algumas pessoas são melhores do que outras ou de que os adultos são sempre fonte de autoridade. Em vez disso, julgo que existe uma maneira de todos estarem prontos para dar um passo à frente ou, pelo menos, pensar sobre isso, deixar as crianças usar os seus cérebros para seguirem os seus interesses. Também acho fundamental que as crianças brinquem muito.

Em Portugal, nos últimos anos, tem havido muitos especialistas a insistir no papel da brincadeira.
Concordo absolutamente. É preciso menos ênfase na aprendizagem formal, pelo menos até que as crianças sejam muito mais velhas. É preciso insistir na aprendizagem através da brincadeira, na importância do aprender a colaborar e a comunicar com os outros. Todos estes aspetos são agora acentuados pela questão da Inteligência Artificial, que os torna mais importantes do que nunca. O que nos faz realmente humanos? Sinto que os nórdicos criam os seus filhos com mais liberdade e também com mais responsabilidade, em suma.  

Há outra palavra-chave que usa no seu livro: confiança. Acha que se aplica da mesma maneira a todas as latitudes?
Certamente, é mais fácil num país com taxas de criminalidade violenta mais baixas. Nestes contextos, compreensivelmente, é mais fácil que os pais deixem os filhos ter essa liberdade. Ainda na semana passada, no último relatório do World Happiness, verificámos que, muitas vezes, subestimamos os outros. O estudo das carteiras perdidas, então, é muito interessante: a maioria das pessoas é simpática e devolve a carteira ao seu dono. A maioria das pessoas não só é gentil e simpática como faz o que está correto: devolve a carteira ao dono. Não sei o que se passa consigo, mas eu cresci num mundo assustador em que qualquer estranho representava um perigo. 

O mundo em que as crianças são ensinadas a não falar com estranhos.  
Sim, a ouvir conselhos desses, como é que as crianças não hão de crescer com medo? O espírito nórdico ensina as crianças a defenderem-se, a serem fortes, a serem vikings, a descobrir o mundo, incluindo através de brincadeiras que envolvem riscos. Até do ponto de vista físico é importante porque, dessa maneira, as crianças têm muito mais confiança no seu próprio corpo. Na escola, isso também tem consequências: as crianças ganham confiança em si próprias, acreditam que as suas ideias valem a pena, sabem defendê-las lá fora. Tudo isto é muito diferente de uma cultura em que as crianças têm de usar uniforme e não são tratadas pelo nome próprio: tens de fazer o que eu digo porque eu sou o professor. 

Há evidência científica de que, quando uma criança cresce nesse ambiente, pode de facto ser um adulto diferente?
Sim, sim. Cresci num ambiente onde não havia o hábito de elogiar, mas hoje há efetivamente muita teoria em torno da parentalidade que defende que o facto de elogiarmos as crianças permite-lhes não ter um sentido distorcido de si mesmas, permite-lhes que avaliem as coisas por si próprias. Não precisamos de olhar para o mundo exterior para obtermos uma validação. A confiança de que falou há pouco, por exemplo, é fundamental na questão da brincadeira: olhamos para uma árvore e sabemos que, se for preciso, somos capazes de subir para aquela árvore. Isso mostra que temos maior domínio sobre o corpo, mas também propicia a confiança e reduz a possibilidade de virmos a ter fobias. Pensa-se até que pode minimizar doenças como a ansiedade e a depressão. Muitos estudos revelam que, se não permitirmos que os nossos filhos tenham a oportunidade de escalar árvores, de ter brincadeiras com algum grau de risco, é mais provável que eles, na adolescência, quando os patins são muito mais altos, venham a procurar comportamentos de risco muito maiores e, potencialmente, muito mais perigosos. Por isso, considero que é melhor deixá-los correr esses riscos enquanto são pequenos do que envolvê-los, digamos, numa redoma de algodão. 

Do seu ponto de vista, tudo o que se investe na infância tem um retorno posterior?
O mais possível. No Reino Unido, o Early Childhood Center, encabeçado pela princesa de Gales, tem repetidamente revelado estudos que o demonstram. E isto não interessa apenas às pessoas que têm filhos, também interessa às pessoas que não têm filhos. Porque esta perspetiva tem benefícios financeiros para a própria economia. As crianças da próxima geração também serão os vossos vizinhos e os vossos colegas. Todo o investimento que se fizer numa criança até aos cinco anos de idade, mais tarde, produz efeitos significativos. No Canadá, um estudo também demonstrou que por cada dólar que se investe na educação infantil obtém-se um retorno económico de, pelo menos, 1,5 dólares (pode ir até aos 2,80 dólares).   

Portanto, não se trata apenas de defender um certo estilo de vida, “fofinho”, digamos, é também uma aposta económica?
Acho muito frustrante que as pessoas olhem para estas ideias de forma simpática, ah e tal, é um estilo de vida confortável. Não é apenas isso: mesmo que as pessoas não queiram saber de crianças, têm de investir na próxima geração. Caso contrário, mais tarde, isso terá consequências financeiras terríveis. Já para não falar da saúde mental. Digo sempre que o meu livro se destina a qualquer pessoa que esteja interessada em perceber por que razão os países nórdicos funcionam. Porque eles investem logo a partir do zero.   

Deixe-me fazer uma pergunta um bocadinho provocadora: não há crianças felizes fora dos países nórdicos?
Claro que há, claro que sim. Há vários aspetos que é preciso considerar: é evidente que existem diferentes abordagens em relação ao significado da felicidade, que pode ser um conceito muito subjetivo. Também é verdade que existem países, provavelmente Portugal e Espanha, com melhor qualidade das próprias relações familiares. O que achei interessante é o facto de os países nórdicos aparecerem, ano após ano, nos lugares cimeiros dos índices de felicidade. E isso deve-se às políticas públicas e às decisões culturais que foram tomadas ao longo do tempo e que acabam por ser um impacto grande na próxima geração. Sempre soube que não iria viver na Dinamarca para sempre. Mas queria retirar daquela experiência algumas lições que me parecem exportáveis, que julgo que é possível usar noutros países e noutras comunidades. Mas, voltando à sua pergunta, claro que existem crianças felizes noutros lugares do mundo, graças a Deus!

É preciso insistir na aprendizagem através da brincadeira, na importância do aprender a colaborar e a comunicar. Todos estes aspetos são acentuados pela Inteligência Artificial: o que nos faz realmente humanos?

Considera que essas lições não são apenas úteis para as crianças e jovens, mas também para os seus pais? 
É justamente essa a minha intenção ao publicar o livro. Acho fundamental a ideia de os pais compreenderem que podem relaxar um pouco e não estarem sempre a fazer micromanagement com tudo. Chega, chega de stresse! Estou em cerca de 11 grupos de Whatsapp de pais e observo a aflição de ter filhos e, ao mesmo tempo, ter um emprego a tempo inteiro. É preciso capacitarmos as nossas crianças, de uma vez por todas! Eu, pela minha parte, não sinto que, em 2025, seja capaz de ter três filhos à maneira antiga e, simultaneamente, um emprego a tempo inteiro. 

Em Portugal, notícias recentes dão conta de pais que tentam acompanhar os seus filhos, adultos, nas universidades. Não é preocupante?
Participei no podcast The Happiness Lab e a Laurie Santos, professora universitária, também me disse que isso estava a acontecer nos EUA. Por isso, são tão importantes as questões da autonomia, da responsabilidade e da independência. Antes ainda de os bebés saberem andar. Na Dinamarca, o facto de as universidades serem financiadas pelo Estado também permite que os jovens não estejam tão constrangidos financeiramente.

Mas o ponto também é: será assim tão fácil aplicar esses modelos a outras culturas e, sobretudo, a outras realidades socioeconómicas, a outros países com outras políticas públicas?
Claro que nos países nórdicos é mais fácil, mas tenho estado a fazer isso e, agora, não estou lá, estou em Inglaterra, num lugar com outra cultura e outras políticas. Muitas vezes, sinto-me em contramão, a fazer ao contrário o que todos os outros pais à minha volta estão a fazer. Por exemplo: dar ênfase à brincadeira, à brincadeira ao ar livre, mesmo quando está frio ou está a chover, ou não pôr muita pressão na questão académica. Muitas vezes, acabo por encontrar outros pais online, nesta grande comunidade virtual em que agora também vivemos. Posso fazer muita coisa dentro de casa, coisas que controlo. Ainda outro exemplo: a sociedade inglesa continua muito ligada à questão da classe social e, apesar disso, posso dizer aos meus filhos que eles não são melhor do que ninguém, que não quero saber quanto dinheiro têm os outros, que não me importo se eles são lord ou lady. Posso ensiná-los que a instituição da família se apresenta de muitas maneiras diferentes, posso educá-los sem uma ideia de hierarquia. 

Outra provocação: e regras, não há regras no seu modelo?
Certo. Gostaria de dizer que não sou, de forma alguma, o especialista. Sou o aluno, estou a aprender. Tudo o que sei provém da psicologia dos países nórdicos, da investigação científica e também dos meus amigos que vivem nos países nórdicos. Em resposta à sua pergunta, os meus amigos diriam qualquer coisa como: as regras são muito simples, “eu sou tua mãe”, “tens de ser simpático comigo”, “tenta não apanhar muito frio”, “sê amável para as pessoas”. Também ajuda bastante explicarmos as razões que estão por detrás das coisas, ainda que isso possa ser um bocadinho demorado e cansativo, sobretudo nos momentos em que estamos mais exaustos.

Tudo isso, também é uma questão de tempo.
Sim, claro. Mas a questão não é não existirem regras, é explicar que, se não fizermos determinada coisa de determinada maneira, é inevitável que algo aconteça. Não é fácil, é verdade, mas é mais fácil do que ter um milhão de regras. Se eles perceberem porquê, então, eles têm uma escolha e ganham autonomia em optar.

Há uma certa incongruência entre duas ideias que parecem ser, mais ou menos, razoáveis: os pais não devem ser os melhores amigos dos seus filhos, embora, ao mesmo tempo, devam estar próximos deles do ponto de vista afetivo.  
Diria assim: os meus amigos dinamarqueses, a minha mãe e o meu pai dinamarqueses, não estariam a tentar ser os melhores amigos dos seus filhos; estariam a tentar ser os seus role models [os seus modelos, um exemplo]. Se quisermos que algo exista na nossa comunidade, devemos voluntariarmo-nos, devemos contribuir. Seja nos impostos, seja nos treinos de basquetebol, seja no que for, todos contribuem. Agora, em Inglaterra, sou voluntária na biblioteca local e no clube de corrida. E os meus filhos veem-me fazer esse voluntariado, é normal.

Já viu a série da Netflix, Adolescência?
Está na minha lista para começar uma destas noites [risos].

Também gostava de saber a sua opinião sobre o impacto deste imenso mundo digital no crescimento das crianças e dos jovens.
Tenho muito prazer em contar que, desde que escrevi o livro, houve um verdadeiro despertar na Dinamarca na questão da tecnologia. Quando o escrevi, adorei todas as formas como, na Dinamarca, as pessoas se relacionavam com a parentalidade, à exceção da tecnologia, devo dizer. Em relação às crianças, havia este código social em direção à liberdade. Um legado da II Guerra Mundial, adquirido de certa maneira durante a ocupação nazi. Maravilhou-me esta ideia de darmos liberdade às crianças para as ensinar a defenderem-se. O problema é que os dinamarqueses também deram essa mesma liberdade relativamente aos tempos de exibição e aos dispositivos digitais. Durante muito tempo, houve muita relutância em afirmar: não, isto não é bom para os nossos filhos, não fomos criados para isto, não compreendemos o impacto que isto está a ter nas nossas cabeças. Recentemente, na Dinamarca, decidiram tirar os telefones das escolas. Fiquei muito contente. Além de todos os buracos negros que podemos encontrar, como Adolescência revela, também existe a questão do custo-benefício, o tempo que se gasta na internet é tempo em que não se está a tocar um instrumento, em que não se está a brincar com os amigos, em que não se está a ler um livro, em que não se está a construir um Lego… O tempo que se gasta em frente a um ecrã elimina todas estas possibilidades.

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O embate entre André Ventura e Rui Rocha (RTP3) não foi verdadeiramente a sério. Melhor dizendo, provocou algumas feridas, mas nada de decisivo.

André Ventura está a anos-luz do líder do Chega nas primeiras prestações televisivas, na pré-história do partido. É sempre perentório, afirmativo e intrusivo no seu discurso e contra o adversário. Observando bem, Ventura não está quieto nem calado por um segundo. Montenegro e Pedro Nuno Santos que tomem nota deste registo. Nada de novo entre a Iniciativa Liberal e o Chega, mas sobressaiu dali uma afirmação categórica e imperativa do líder do Chega: “Vamos ganhar as eleições!” Assim, sem mais. Baseava-se, obviamente, na sondagem do Expresso/SIC que lhe atribuía uns sólidos 21%, sem extrapolações. Estranha sondagem: nenhuma outra confirma ou antecipa este resultado, e isso sente-se nas ruas. O Chega será parceiro num futuro Governo, mas não se sabe ainda quando, nem com quem.

André Ventura: Medalha Coração Púrpura (Purple Heart), por feridas em combate.

Rui Rocha tem vindo a dominar com mestria o discurso e a sua capacidade oratória e empática. A empatia, aliás, é o segredo para uma vitória. Não demonstrou qualquer receio do Chega, muito pelo contrário, e conseguiu o feito histórico de calar, ou mandar calar, André Ventura. Se estivessem num torneio de tiro aos pratos, Rui Rocha teria desfeito o prato logo ao primeiro tiro, enquanto o líder do Chega só o atingiria ao segundo, e mesmo assim de raspão. Este era um debate muito importante, e quem o venceu foi o líder da Iniciativa Liberal: há eleitores que se cruzam e faixas etárias apetecíveis. A Iniciativa Liberal está a subir, degrau a degrau, o que poderá ajudar na formação de um futuro Governo ou no seu apoio parlamentar. Só resta saber a que horas, no dia 18/19 de maio, Luís Montenegro ou, inversamente, Rui Rocha, pedirá um encontro que em nada terá de secreto.

Rui Rocha: Medalha Estrela de Bronze (Bronze Star Medal), por bravura e mérito na batalha.

O último relatório intercalar da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) revela que são mais de 1,5 milhões os estrangeiros residentes em Portugal, representando 15% dos 10,6 milhões de habitantes do País. Em breve, poderão crescer para 1,6 milhões, depois de concluída a análise dos pedidos de regularização que se encontram pendentes.

Restauração A língua comum facilita a empregabilidade dos brasileiros no atendimento ao público

Este dado surpreendente, que supera em quase quatro vezes o número de cidadãos estrangeiros registados em 2017, resulta de uma política de imigração “descontrolada”, de “portas escancaradas”, que levou “à maior alteração demográfica” das últimas décadas em Portugal – nas palavras do ministro da Presidência, Leitão Amaro –, ou é um reflexo de uma economia dinâmica, em crescimento mais acelerado do que a média dos países da Zona Euro? Os trabalhadores estrangeiros serão demasiados, num País envelhecido, de baixos salários e de escassez habitacional, que nem sempre acolhe os imigrantes da melhor forma? Ou serão poucos, a avaliar pela escassez crónica de mão de obra em setores como a agricultura e florestas, o alojamento e restauração ou a construção, reduzindo o potencial de crescimento económico português e pondo em causa o aproveitamento dos fundos europeus?

Um estudo recente da Faculdade de Economia do Porto (FEP) indica que Portugal precisa de atrair mais imigrantes, para que a economia possa crescer, em média, três por cento, ou até mais, ao ano, e assim continuar a convergir com os países europeus mais ricos. O diretor da FEP, Óscar Afonso, quantificou as necessidades anuais de mão de obra estrangeira em 138 mil novos imigrantes. Mas os números poderão ser superiores. Dados recolhidos pela VISÃO apontam para a falta imediata de 135 mil trabalhadores (nacionais e estrangeiros), só nas três áreas de atividade mais dependentes da força de trabalho imigrante, distribuídos da seguinte maneira: 90 mil pessoas na construção, 5 mil na agricultura e florestas e 40 mil no alojamento e restauração.

Brasileiros são mais

Nas últimas décadas, Portugal tem sido o destino procurado maioritariamente por cidadãos de língua portuguesa (Brasil e países africanos lusófonos) e, a partir da década de 2000, também por imigrantes do Leste europeu. Atualmente, os novos fluxos são provenientes da Ásia, ao abrigo de acordos para o recrutamento de mão de obra firmados com países como a Índia. Em setores como a agricultura, o turismo e a construção, os imigrantes são incontornáveis e ultrapassam, em alguns casos, mais de metade da força de trabalho disponível.

Se, em 2014, só 7,9% das empresas empregavam estrangeiros, esse número era já três vezes superior em 2023. Segundo um estudo do Banco de Portugal, que traçou um retrato dos imigrantes a trabalhar em Portugal a partir dos contratos de trabalho por conta de outrem, quase um quarto das empresas existentes (22,2%) declaravam ter estrangeiros ao serviço. Em destaque, estava o setor do alojamento e restauração, com 31,1% de imigrantes ao serviço, seguido pelo das atividades administrativas, com 28,1%, e da construção, com 23,2%. O banco central concluía que os trabalhadores brasileiros eram o grupo com maior representação (42,3% do total de estrangeiros), e tinham uma presença dominante em quase todos os setores. A exceção está na agricultura e pescas, onde se destacam as nacionalidades indiana (34,6%), nepalesa (15,3%) e bengali (13,8%).

O contributo dos estrangeiros para a sustentabilidade da Segurança Social é também cada vez maior. Em 2024, os estrangeiros geraram um saldo positivo para a Segurança Social de 2,96 mil milhões de euros e, no ano anterior, de 2,67 mil milhões de euros. Nos últimos quatro anos, esse saldo atingiu 8,7 mil milhões de euros.

Via verde para contratar

O fim do regime da manifestação de interesse, que permitia a qualquer cidadão estrangeiro obter residência desde que estivesse inscrito na Segurança Social e apresentasse um contrato de trabalho, está a criar dificuldades a muitos imigrantes que se veem agora impossibilitados de regularizar a sua situação. No passado dia 15 entrou em vigor uma “via verde” para agilizar a atribuição de vistos em apenas 20 dias a trabalhadores estrangeiros recrutados por empresas nacionais. O protocolo, assinado entre a AIMA e as confederações patronais, que prevê obrigações para os empregadores ao nível da formação, ensino da língua e alojamento dos imigrantes, criou fortes expectativas entre os patrões.

Só para realizar as obras já previstas e calendarizadas no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e no programa europeu Portugal 2030 ‒ como infraestruturas rodo e ferroviárias, unidades de saúde e habitação ‒, o setor da construção civil precisa de mais 90 mil trabalhadores, de acordo com o presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), Manuel Reis Campos. Fora desta estimativa, estão obras como o novo Aeroporto Internacional de Lisboa, cujo arranque, marcado para 2030, exigirá cerca de 5 mil trabalhadores.

Mão de obra importada A falta de trabalhadores é maior na construção, mas a agricultura também já não vive sem os estrangeiros

Entre os 400 mil trabalhadores que a construção atualmente emprega, Reis Campos avança que cerca de 70 mil (17,5% do total) serão de origem estrangeira, oriundos principalmente do Brasil e dos países africanos de língua portuguesa, mas também do subcontinente indiano (Índia, Paquistão, Bangladesh e Nepal). “Tendo em conta as necessidades de formação e de segurança do nosso setor, é muito importante haver rapidez nos processos.” Mas também “tem de haver regras para acolher os imigrantes”. Aquele dirigente refere ainda que alguns dos trabalhadores indispensáveis “já cá estão”, tornando-se necessário “qualificá-los e retê-los no País, para que não venha a faltar mais mão de obra no futuro”. A “via verde” lançada pelo Governo “pode ajudar” nesse sentido.

A opinião é partilhada pelo presidente da CAP, Álvaro Mendonça e Moura, que estima que metade dos 60 mil assalariados do setor agrícola e florestal seja imigrante. Entre estes, sobressaem os cidadãos do subcontinente indiano, que são já 60% da mão de obra estrangeira, e que estão espalhados por várias regiões agrícolas do País, desde a apanha dos pequenos frutos no sudoeste alentejano, às vinhas do Douro. Para as campanhas agrícolas de 2025, serão necessários pelo menos mais 5 mil trabalhadores, segundo os cálculos da Confederação dos Agricultores de Portugal.

Para Mendonça e Moura, o fim do regime da manifestação de interesse foi “muito positivo”.  Considerando que “o País não crescerá se não importar mão de obra”, sublinha que “as pessoas têm de ser tratadas com dignidade e o Estado tem de ser capaz de responder aos pedidos de residência”, algo que não tem acontecido nos últimos 12 anos. Por isso, acredita que a “via verde” do Governo vai “pôr ordem” no fenómeno migratório e concluir os processos “com rapidez, flexibilidade e diálogo”, acrescenta.

Os imigrantes têm sido fundamentais para outro dos setores que se ressente da falta de trabalhadores, com horários dificilmente conciliáveis com a vida familiar. A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) estima em mais de 40 mil trabalhadores a falta de mão de obra, principalmente em alojamentos, cafés e restaurantes de norte a sul do País. Em 2023, o setor empregava 318 mil trabalhadores, entre os quais 93 300 estrangeiros, que representavam 31,1% da força de trabalho. Cerca de 42,2% dos imigrantes eram de origem brasileira, uma vez que a língua comum tem funcionado com um fator diferenciador e facilitado a sua entrada no mercado de trabalho. Mas, de acordo com Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, o recrutamento de cidadãos do subcontinente indiano é o que mais está a crescer no setor, representando já 25,5% do total. “Socorremo-nos da mão de obra disponível, mas queremos que os imigrantes entrem no País de forma controlada, regulada e legalizada”, diz ainda. Para esta responsável, a “via verde” terá de garantir mais rapidez no processo de legalização dos imigrantes, já que “a economia não se compadece com grandes demoras”. 

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Não se é filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve impunemente. Coisa que se poderia resumir a um sabedor “filho de peixe sabe nadar”, mas a realidade é que a figura destes pais é de tal forma mítica que a sua sombra lhe pode atrapalhar os movimentos – e, verdade seja dita, Chiara nunca conseguiu repercutir a sua sombra, assim como aconteceu, por exemplo, com Michael Douglas, filho de Kirk; ou Isabella Rossellini, filha de Ingrid Bergman. 

O plausível drama de Chiara foi transformado em comédia com o engenho de Christophe Honoré. Marcello Mio é uma comédia desconstruída com um elenco de luxo, atores que gravitam na órbita Mastroianni a fazer de si próprios.

O filme começa como uma sátira que critica o próprio meio, quase que o ridicularizando. Mas depois passa rapidamente à questão da identidade. A identidade de Chiara, que é o centro do filme. Dada a enorme dificuldade de se afastar da imagem dos pais, em busca de uma imagem própria e independente, tem uma espécie de surto psicótico e transforma-se em Marcello Mastroianni.

Aproveitando as óbvias parecenças, dá-se uma transmutação física e psicológica, levando a ideia até às últimas consequências. Há ao mesmo tempo uma efervescência desafiadora e uma certa decadência nesta viagem que nunca perde de vista o registo de comédia.

O mais gratificante do filme talvez seja mesmo a (falsa) sensação de proximidade destas figuras. A ideia enganosa de que chegamos, de alguma forma, à intimidade da relação mãe/filha de Chiara e Catherine, passando por uma teia onde também se encontram o músico Benjamin Biolay, os atores Fabrice Luchini e Melvil Poupaud, ou a realizadora Nicole Garcia.

De resto, o filme é suficientemente despretensioso para não ir mais longe do que isto. Uma interpretação corajosa de Chiara Mastroianni, que serve de bom entretenimento para toda a família. E não apenas a dela.

Marcello Mio > De Christophe Honoré, com Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Fabrice Luchini, Nicole Garcia, Benjamin Biolay, Melvil Poupaud > 122 min