Quando amamos alguém, o nosso coração palpita que nem uma batata frita e parece que temos borboletas no estômago. Nem sequer é preciso haver desejo para o sentimento se manifestar fisicamente.

Há cerca de um ano, um estudo da Universidade de Aalto, na Finlândia, concluiu que, enquanto alguns tipos de amor, como o romântico, eram fortemente sentidos em todo o corpo, outros, como o amor pela sabedoria, eram sentidos de forma menos intensa e sobretudo na cabeça. 

Agora, o mesmo grupo de investigadores mapeou as áreas do cérebro que são ativadas por seis tipos de amor e chegou a conclusões surpreendentes, reveladas num estudo publicado na revista Cerebral Cortex.

Utilizando imagens de ressonância magnética funcional (fMRI), a equipa coordenada por Pärttyli Rinne, filósofo e investigador, analisou de que maneira o cérebro responde ao amor por parceiros românticos, filhos, amigos, desconhecidos, animais de estimação e pela Natureza.

Depois de ouvirem cada “história de amor”, os participantes imaginaram essa emoção durante dez segundos. Medindo a sua atividade cerebral enquanto pensavam em vários tipos de amor, os investigadores observaram, em tempo real, que o cérebro se iluminava em diferentes áreas.

“O padrão de ativação do amor é gerado em situações sociais nos gânglios basais, na linha média da testa, na precuneus [pré-cunha] e na junção temporoparietal nos lados da parte de trás da cabeça”, explicou Rinne, em comunicado. “No amor parental, houve uma ativação profunda no sistema de recompensa do cérebro da área do estriado enquanto se imaginava o amor, o que não se verificou em nenhum outro tipo de amor.”

A maior surpresa foi o facto de as áreas cerebrais ativadas pelo amor entre as pessoas serem muito semelhantes, só diferindo na intensidade da ativação. Todos os tipos de amor interpessoal ativaram áreas associadas à cognição social, ao contrário do que acontece no amor pela Natureza e no amor por animais de estimação – a não ser quando as pessoas tinham cães ou gatos.

As áreas cerebrais associadas à sociabilidade revelaram estatisticamente se as pessoas tinham ou não um animal de estimação, ao ouvirem cenários como este: “Está em casa a descansar no sofá e o seu gato aproxima-se de si. O gato enrosca-se ao seu lado e ronrona, sonolento. Amamos o nosso animal de estimação.” No caso dos tutores de cães ou de gatos, essas áreas cerebrais são mais ativadas – ou seja, o amor por eles é neuralmente mais semelhante ao amor interpessoal.

COMO É NEURALMENTE?

Pärttyli Rinne tem 45 anos, estuda o amor há 16 e apresenta-se como filósofo-investigador e argumentista-autor. O interesse pelo tema surgiu quando se apaixonou pela mulher, no final do primeiro mestrado, na Academia de Teatro.

“A experiência foi tão forte que senti que as coisas mais importantes da vida estão relacionadas com o amor, de uma forma ou de outra. Decidi concentrar-me na tentativa de compreender o fenómeno do amor e comecei a estudar Filosofia”, explica numa entrevista disponível no site da Universidade de Aalto.

Em comparação com os séculos anteriores, o estudo do amor estava em declínio no século XX. “As emoções eram consideradas superficiais e vagas, e o amor não era levado a sério”, recorda.

Na universidade chegaram a insinuar que a sua investigação era ridícula, mas Rinne fez ouvidos de mercador, avançou com um doutoramento sobre a conceção de amor de Immanuel Kant e nunca mais largou o tema, tanto na área da Filosofia como na de escrita de guiões. Talvez por isso, este estudo se leia com prazer.

Não é novidade que o amor leva à formação e à manutenção de laços entre pares e às ligações entre pais e filhos, influencia as relações com os outros e até com a Natureza. Mas, quando amamos, será neuralmente a mesma coisa amar, por exemplo, o nosso filho e amar uma bela paisagem?

Foi esse o ponto de partida para esta investigação, que recrutou 55 pessoas (29 mulheres e 26 homens), saudáveis, falantes nativas de finlandês, entre os 28 e os 53 anos (média de 40,3 anos), que declararam ter, pelo menos, um filho e estar numa “relação amorosa de casal” (duração média de 11,9 anos). Todas moravam na área metropolitana de Helsínquia e 27 delas tinham animais de estimação.

MERGULHAR NO CENÁRIO

Os tipos de amor foram induzidos por narrativas áudio gravadas (três frases, com a duração de cerca de 15 segundos no total). Cada narrativa descrevia um cenário com o parceiro romântico, o filho, o amigo, o animal de estimação (cão ou gato), um desconhecido ou a Natureza (bela) circundante. Existia também uma categoria neutra que podia descrever, por exemplo, uma viagem de autocarro sem interação social.

Na véspera dos exames, foi pedido aos participantes que reservassem cinco a dez minutos para pensar e refletir afetivamente sobre o que era o amor para eles, em relação aos seis tipos do estudo. Já no laboratório, receberam instruções para “mergulhar” – em finlandês, eläytyä – no cenário representado, da maneira mais vívida possível.

As narrativas terminavam sempre com a frase “Sente amor por [x] / Ama [x]”, por exemplo: “O seu filho corre alegremente para si num prado. Sorriem juntos e os raios de sol cintilam no seu rosto. Sente amor pelo seu filho.”

As histórias sobre o amor pelos amigos incluíam representações de altruísmo quotidiano recíproco e partilha de sentimentos. No caso do amor por desconhecidos, elas envolviam atos de benevolência retribuídos com uma expressão de gratidão. E as relativas ao amor pela Natureza retratavam ambientes naturais lindíssimos, nos quais a pessoa se encontrava imersa.

Os investigadores sugerem que a experiência do amor é moldada por fatores biológicos e culturais, com origem em mecanismos neurobiológicos fundamentais de ligação. “Mas é necessária mais investigação”, nota Pärttyli Rinne, “para uma melhor compreensão da forma como os fatores culturais e demográficos influenciam os vários sentimentos de amor e as suas correlações no cérebro humano”.

A químicada paixão

O desejo deixa uma marca no cérebro relativa a um parceiro específico – mas que não é indelével

O que se passa no nosso cérebro para desejarmos estar mais com uma pessoa do que com outras? E como superamos o fim de uma relação, do ponto de vista neuroquímico? Foi para responder a estas questões que uma equipa liderada por Zoe Donaldson, especialista em Neurociência Comportamental na Universidade do Colorado em Boulder, nos EUA, pegou em arganazes-do-campo, conhecidos por serem monogâmicos, e recorreu a exames de neuroimagem para observar os seus cérebros.

Os investigadores viram, então, como a dopamina inundava o sistema de recompensa do cérebro dos pequenos roedores sempre que eles tentavam alcançar os parceiros. E verificaram que a enxurrada de dopamina continuava quando estavam juntos. “Descobrimos uma assinatura biológica do desejo”, explica-se no estudo, publicado na revista científica Current Biology, em janeiro deste ano.

Numa segunda fase, os casais estiveram separados durante quatro semanas, um tempo considerado longo na vida destes ratinhos. Quando se reencontraram, o aumento de dopamina já não aconteceu. “É uma espécie de reinicialização do cérebro”, comparou Donaldson, “que permite ao animal seguir em frente e potencialmente formar um novo vínculo”. O cérebro tem a capacidade de se proteger da abstinência daquela “onda” de dopamina, o que ajuda a superar o fim de uma relação.

Estamos na cidade de Gotemburgo, berço da icónica Volvo que, em abril passado, completou 97 anos de História. Depois de um passeio de elétrico, de cerca de meia hora, pelo centro da cidade de mais de 600 mil habitantes, o destino final ergueu-se diante dos nossos olhos: chegámos ao World of Volvo, um complexo com cinco andares e22 000 m² de área, com grandes janelas de vidro e totalmente construído em madeira.

Neste centro de experiências – como a Volvo lhe chama – cuja arquitetura faz lembrar uma árvore, e que foi inaugurado em abril passado como forma de celebração de aniversário, Hans Hedberg, diretor de património da World of Volvo, guiou uma visita por alguns dos mais icónicos automóveis lançados pela marca ao longo dos anos, dando-nos o privilégio de entrar nalguns deles.

Um Volvo PV60, de 1946, oferecido ao atual rei da Suécia, Carl Gustaf, por ocasião do seu 50º aniversário, é a atração imediata do mais recente recinto, já que se encontra logo à entrada. Este automóvel, utilizado em vários eventos oficiais da realeza sueca ao longo dos anos e cedido agora pelo próprio rei ao museu da marca, guiou imediatamente o olhar e os passos dos jornalistas presentes na viagem. Mas há muito mais para ver neste espaço com dois restaurantes e zonas próprias para receber vários eventos.

O primeiro automóvel da marca, por exemplo, o robusto ÖV4, também conhecido como “Jakob”, com capacidade para quatro pessoas e lançado a 14 de abril de 1927, é um dos 50 automóveis (de uma coleção de 280) presentes na exposição permanente do espaço. Uma viagem direta ao passado, numa altura em que a Volvo estava longe de sonhar com a celebração do centenário.

Até porque o primeiro automóvel apresentado pela marca não foi particularmente popular na época: entre 1927 e 1929, foram produzidas apenas 302 unidades do modelo de três mudanças e 28 cavalos. O facto de ser um automóvel conversível, pouco adaptado ao clima sueco, também não terá ajudado à falta de popularidade. De acordo com Hedberg, o modelo era ainda “demasiado caro” para o estilo de vida dos suecos.

Por isso mesmo, a Volvo lançou uma versão coberta, o PV4, que teve melhor aceitação. Mais controverso foi o PV36, fabricado pela marca entre 1935 e 1938, e também ele exposto no World of Volvo. Este modelo, o primeiro com suspensão localizada à frente e com uma estrutura toda em aço e design aerodinâmico moderno para a época, era bastante dispendioso. Por essa razão, foram produzidas apenas 500 unidades. Ainda assim, o também chamado “Carioca” –  graças a uma dança popular na Suécia com esse nome – representa um marco na história da Volvo, por introduzir várias inovações técnicas e de design. O apelido do PV36, conta-se, poderá também ser uma homenagem aos habitantes do Rio de Janeiro, no Brasil.

Continuando a visita, é ainda possível apreciar o icónico Amazon, de design robusto e elegante, inspirado nos carros americanos da época, e produzido entre 1956 e 1970. Este foi o primeiro automóvel no mundo a oferecer cintos de segurança de três pontos, em 1959, o que revolucionaria a segurança rodoviária até aos dias de hoje. Inicialmente, o Amazon – nome inspirado nas guerreiras da mitologia grega – foi apresentado como um carro de quatro portas e, posteriormente, foram lançadas as versões de duas portas e station wagon (carrinha). No total, foram produzidos mais de 600 mil automóveis deste modelo.

Mas embora o Amazon seja um carro lendário, o recorde do Guinness relacionado com a Volvo é, na verdade, detido por um P1800. Este carro, de 1966, foi conduzido por Irv Gordon, um professor de ciências norte-americano reformado, que acumulou mais de três milhões de milhas (aproximadamente 4,8 milhões de quilómetros) com o mesmo veículo, e que está agora exposto nesta espécie de museu da marca. Este feito garantiu ao Volvo P1800 o título de carro com maior quilometragem para uso não comercial no Guinness World Records.

Há 97 anos a “rolar perfeitamente” e em segurança

Em 1924, Assar Gabrielsson, economista e gestor de vendas na SKF, uma empresa sueca de rolamentos, teve a ideia de criar uma empresa automóvel sueca e começou a procurar um parceiro para o ajudar a concretizar esse objetivo.

O engenheiro Gustav Larson, que tinha trabalhado na SKF antes de se mudar para outra empresa, foi o “match perfeito”: a dupla discutiu a ideia de fabricar carros suecos que fossem seguros, confiáveis e adequados às condições rigorosas do clima e das estradas suecas, formalizando nesse ano uma parceria que viria a ser de sucesso.

Desde que foi lançado o primeiro automóvel da Volvo, que em sueco significa “rolar perfeitamente”, a marca evoluiu significativamente, tendo a segurança como um pilar fundamental. Em 1959, por exemplo, introduziu o cinto de segurança de três pontos, uma invenção que se tornou um padrão na indústria automóvel e que, segundo as estimativas, já salvou mais de um milhão de vidas. Foi o engenheiro Nils Bohlin que introduziu este equipamento na produção de série do PV 544. A Volvo decidiu, então, renunciar aos direitos de patente para todas as marcas de automóveis poderem beneficiar desta inovação.

Nos anos seguintes, introduziu sistemas de travagem antibloqueio (ABS) e airbags laterais. Já em 1976, o governo dos EUA decidiu adquirir 24 automóveis do modelo Volvo 240 para fazer testes de colisão exaustivos, tendo a marca sido escolhida, na altura, como referência para definir os padrões de segurança para todos os novos automóveis produzidos.

No fim de março, a marca anunciou a produção do último modelo movido a gasóleo, um Volvo XC90 que saiu da linha de produção da fábrica em Torslanda

Atualmente, cada unidade fabricada tem, na verdade, de passar por até 200 testes de colisão antes de ser lançada no mercado, de acordo com Thomas Broberg, engenheiro e responsável pelo centro de segurança da fábrica de Torslanda da Volvo. A revelação foi feita durante uma visita à unidade industrial, inaugurada em 1964 por Sua Alteza Real, o Rei Carl Gustav da Suécia.

Neste local, com capacidade de produção anual de 290 mil automóveis, o que corresponde a 60 automóveis por hora, trabalham cerca de 6 500 funcionários. Todos os dias, são feitos centenas de diferentes testes aos novos automóveis da marca, como o 100% elétrico EX30 – foi num destes que a VISÃO teve a oportunidade de passear pelas ruas de Gotemburgo durante uma hora –, o primeiro da marca a incluir a nova geração Park Pilot Assist. Esta funcionalidade consegue gerir qualquer tipo de lugar de estacionamento, incluindo paralelos, curvos, perpendiculares e diagonais em espinha, facilitando as manobras em espaços apertados. Além disso, é capaz de identificar lugares de estacionamento disponíveis.

Para testar a aerodinâmica dos automóveis, existe nesta fábrica um túnel de vento que pode chegar até aos 250 km/hora, que não está aberta a visitantes, mas onde os jornalistas puderam entrar por alguns minutos – não se preocupe, a equipa que esteve connosco presenteou-nos com velocidades muito mais baixas e nós regressámos sãos e salvos. Mais despenteados, porém seguros.

Ambiente também é prioridade

Em 2021, a fábrica de Torslanda, a cerca de 18 quilómetros do centro de Gotemburgo, tornou-se a primeira da marca a atingir um impacto climático neutro. Esta tem sido, aliás, uma das grandes preocupações e bandeiras da Volvo ao longo dos últimos anos.

No fim de março, a marca anunciou a produção do último modelo movido a gasóleo, um Volvo XC90 que saiu da linha de produção da fábrica em Torslanda e seguiu diretamente para o Museu de Gotemburgo, assinalando “o fim de uma era”. As palavras são da Volvo.

A marca, que já tinha decidido abandonar o desenvolvimento de novos motores de combustão em 2022, vendeu nesse ano a sua participação na Aurobay, a empresa de joint venture que albergava todos os restantes ativos para motores de combustão, garantindo que não iria gastar nem mais uma coroa do seu orçamento de Investigação e Desenvolvimento na prossecução de novos motores de combustão interna. 

A partir de 2030, a marca pretende mesmo passar a comercializar apenas automóveis 100% elétricos e atingir, até 2040, a neutralidade climática. Será este o início de uma nova era, a caminho de mais 100 anos de História?

*A VISÃO viajou a convite da Volvo

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Através de um comunicado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o clube encarnado diz já ter iniciado negociações com o treinador alemão, Roger Schmidt, “para a cessação do contrato de trabalho desportivo com efeitos imediatos”.

“A Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD informa que iniciou negociações com o treinador Roger Schmidt para a cessação do contrato de trabalho desportivo com efeitos imediatos”, pode ler-se no documento.

Schmidt esteve no comando do Sport Lisboa e Benfica durante mais de duas temporadas, tendo vencido o campeonato no seu primeiro ano enquanto treinador do clube. Contudo, o treinador alemão tem sido alvo de fortes contestações por parte dos adeptos. Schmidt tinha contrato até Junho de 2026.

O presidente do clube, Rui Costa, deverá dar declarações aos jornalistas, para falar sobre a decisão, a partir das 18:30.

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Foi confirmada, durante a tarde deste sábado, a morte da quinta e última vítima da queda do helicóptero que caiu, esta sexta-feira, no rio Douro. O corpo do militar da GNR, de 29 anos, estava desaparecido e existia a possibilidade de estar “preso na fuselagem da aeronave”, de acordo com o comandante Rui Silva Lampreia, chefe departamento da polícia marítima norte. As buscas tinham sido retomadas esta manhã, pelas 7h30, e os pedaços da aeronave foram sendo retirados ao longo do dia.

A aeronave de combate a incêndios despenhou-se, esta sexta-feira, no rio Douro, entre Lamego e Peso da Régua, enquanto regressava do combate a um fogo em Armamar, no distrito de Viseu. A bordo seguiam seis pessoas e só o piloto foi resgatado com vida e encontra-se hospitalizado com ferimentos ligeiros. A morte dos restantes quatro elementos da UEPS da GNR já tinha sido confirmada pelo comandante Rui Silva Lampreia.

Segundo o comandante regional da Polícia Marítima do Norte, o impacto do helicóptero foi de “forte violência”, tendo provocado a “destruição total da aeronave”. “Face àquilo que já encontramos e às imagens que temos registadas, tudo indica que [o impacto] foi de forte violência e causou a destruição total da aeronave”, explicou.

O helicóptero, do modelo AS350 – Écureuil, era operado pela empresa HTA Helicópteros, sediada em Loulé, Algarve. As causas do acidente ainda não são conhecidas, contudo, o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários encontra-se no terreno a investigar a queda da aeronave.

Foi decretado, para este sábado, um dia de luto nacional.

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As águas tranquilas da albufeira da barragem de Póvoa e Meadas guardaram, durante cinco anos, um terrível segredo. A apenas dois passos de Castelo de Vide (Portalegre), o lugar discreto e isolado serviu de esconderijo ao criminoso espanhol Manuel Martínez Quintas. Em Portugal, “Manolo” ou “El Quintas”, como também é conhecido, pôde “enterrar” as histórias dos crimes que cometeu no país vizinho, nas décadas de 1980 e 1990. Do outro lado da fronteira, o “Monstro de Zamora” tornou-se sinónimo de terror, depois de matar um jovem casal e de violar uma mulher, atos que cometeu com extrema crueldade. Pelos seus crimes, pagou com mais de três décadas na cadeia.

O tempo, porém, não apagou o trauma e as más memórias. Em 2017 saiu em liberdade, mas em cada lugar por onde andava continuava a carregar a bagagem do passado. Nos bairros em que vivia, surgiam cartazes, colados nas paredes, com a sua fotografia, e avisos à população: “Homem perigoso!” As redes sociais não deixavam cair no esquecimento o seu rosto. O direito ao perdão não lhe estava reservado nesta vida, apenas medo e ódio. Decidiu, então, fugir de Espanha, desaparecer da vista de todos. “Onde se terá metido ‘El Quintas?’”, questionavam, amiúde, os mais curiosos, ao longo dos últimos anos.

Monstro Manuel Quintas matou e violou em Espanha. Depois de cumprir 34 anos de prisão, o “Monstro de Zamora” refugiou-se num local discreto e isolado na região de Portalegre. No início de agosto, tentou violar e matar duas jovens portuguesas

Hoje, sabe-se que Manuel escolheu Portugal para se esconder. As razões permanecem um mistério. Proximidade geográfica? Domínio da língua? Ligações familiares? Ou, simplesmente, a possibilidade de poder viver à beira de um plano de água? – o que parece encerrar uma obsessão pessoal. A opção não é, no entanto, exclusiva deste homem, e nem sequer pode ser considerada rara. As páginas que se seguem recordam alguns destes casos.

A partir de 2019, Manuel ocupou uma rulote junto à Barragem de Póvoa e Meadas. Deste lado da fronteira, fez-se velho. Com 74 anos, o ex-militar espanhol tornou-se uma sombra do homem que, como descrevia quem com ele se cruzou, tinha “uma força descomunal”. Ainda assim, ninguém poderia imaginar que, por trás dos longos cabelos brancos despenteados, da barba farta e desarranjada, no interior daquele velho ainda cabiam tantos demónios. Até ao dia em que ele voltou a libertá-los.

No início de agosto, o País soube, da pior maneira, que partilhava o teto com Manuel. O “Monstro de Zamora” voltou a atacar como antigamente, fazendo um alvo das duas raparigas, de 17 e 22 anos, que tinham tido a ideia de acampar por aquelas bandas. Afinal, perversidade e força não lhe faltavam. Tentou violá-las e matá-las a tiro de caçadeira. As vítimas ficaram feridas, mas conseguiram escapar às garras de “El Quintas”. O covil português de nada valeu ao criminoso espanhol. Nas horas seguintes, regressou à prisão. Aguarda a investigação em preventiva na cadeia de alta segurança de Monsanto, em Lisboa.

Manuel é apenas um exemplo. Portugal (também) faz parte do roteiro criminal, tendo servido de refúgio a assassinos, terroristas, falsificadores, mafiosos e narcotraficantes, entre outros da mesma estirpe. Aos vizinhos espanhóis basta dar um salto, mas outros chegaram de muito mais longe. Neste tema, a regra é não haver regras. E o “turismo” de que falamos não é, naturalmente, um problema somente nacional. O criminologista Carlos Alberto Poiares realça que “não há nenhum fator que torne Portugal mais atrativo para fugas do que qualquer outro país”. “Os critérios são os mesmos para todos”, sublinha. “Regra geral, foge-se para o lugar que está mais à mão”, simplifica o especialista. Embora reconheça que casos como este “são frequentes e, provavelmente, vão continuar a acontecer”, não deposita grande fé na eficácia das fugas: “É natural que os criminosos tenham a sensação de estar mais seguros por conseguirem fugir do sítio onde cometeram os crimes, por terem atravessado uma fronteira para outro país, mas, hoje em dia, é cada vez mais difícil passarem despercebidos”, assegura. Carlos Alberto Poiares gosta de descrever as “fugas” como “uma suspensão provisória da detenção”, e que, normalmente, “apenas a adiam”.

Recordemos, então, alguns dos criminosos mais famosos que procuraram encontrar refúgio em Portugal  (nem sempre bem-sucedidos).

A vida portuguesa do assassino de Luther King

Da lista dos que escolheram Portugal como esconderijo, talvez o nome mais famoso (e improvável) continue a ser o de James Earl Ray, que ficou para a História como o assassino de Martin Luther King Jr. A passagem deste homem por Portugal parece ter caído no esquecimento, mas ainda hoje continua a alimentar teorias e teses conspirativas.

No dia 4 de abril de 1968, James Earl Ray disparou contra o pastor afro-americano, líder do movimento dos direitos civis, autor do discurso “Eu tenho um sonho” (“I have a dream”, no original inglês) e Prémio Nobel da Paz de 1964, quando este se encontrava no segundo andar do Lorraine Motel, em Memphis, nos Estados Unidos da América. Depois do atentado, Earl Ray, um ex-militar norte-americano, descrito, à época, como “um vadio”, com longo historial de ladrão e falsificador, desapareceu sem deixar rasto durante mais de 30 dias. Hoje sabe-se que alcançou o Canadá, comprou um bilhete de avião para Londres e escolheu Lisboa para se esconder. No dia 8 de maio, Earl Ray aterrava no aeroporto da Portela, num voo da British European Airways, portador de um passaporte canadiano falso com o nome de Ramon George Sneyd. Durante nove dias, Earl Ray, então com 40 anos, viveu com esta identidade em Portugal, levando uma “vida simples e tranquila”, como se descreveria, pouco tempo depois, numa reportagem d’A Capital.

Fuga James Earl Ray viveu nove dias tranquilos em Portugal, tornando-se cliente habitual dos bares do Cais do Sodré. O The New York Times chegou a publicar conversa com a prostituta com quem, alegadamente, o assassino de Martin Luther King dormiu por 300 escudos. A Life fotografou Maria à porta do Texas Bar

Enquanto era procurado pelas polícias de todo o mundo, o homem instalou-se no Hotel Portugal – que ainda hoje funciona na Rua João das Regras –, passando a ser cliente regular dos bares do Cais do Sodré e dos espetáculos de música do Ritz Clube, na Praça da Alegria. O relato da sua passagem pela capital portuguesa inclui pormenores íntimos, como o nome da prostituta com quem dormiu e quanto lhe pagou (300 escudos, segundo as crónicas contemporâneas). Em 1968, o The New York Times entrevistou Maria, que admitiu “ter dormido” com o “gringo”; a Life chegou a fotografá-la à porta do Texas Bar (hoje Musicbox Lisboa).

Mistério A pergunta ainda hoje divide os historiadores. Por que razão James Earl Ray escolheu Lisboa para se esconder, depois de assassinar Martin Luther King? A explicação mais unânime aponta para a possibilidade de Earl Ray ter tentado alistar-se como mercenário na Guerra Colonial portuguesa. O mistério, porém, mantém-se

A escolha de Portugal por Earl Ray permanece um mistério. Aventou-se a possibilidade de estar em trânsito para Angola, onde esperava “juntar-se a um irmão” que lá vivia. A Scotland Yard estava convencida de que fora a Rodésia – um dos últimos redutos brancos de África – a “chamar-lhe a atenção”. Há quem avance com a possibilidade de a trama incluir um cúmplice português chamado Raul. A versão mais aceite é a de que Earl Ray queria “juntar-se a um grupo de mercenários branco” a atuar na Guerra Colonial. Certezas não há.

O que se sabe é isto: no dia 17 de maio, Earl Ray pagou a conta do hotel lisboeta e regressou a Londres. Na capital britânica, ligou para um jornal a pedir informações sobre uma organização de recrutamento de mercenários para África. Indicaram-lhe um local em Bruxelas, mas o telefonema, feito de uma cabine pública, seria intercetado pelas autoridades. Seguia a caminho do avião que o levaria até à Bélgica quando se viu cercado pela polícia. Em sua posse, tinha uma pistola no bolso de trás das calças e dois passaportes canadianos, o mais recente emitido no consulado de Lisboa. Foi detido e rapidamente extraditado para o seu país natal.

Em 1969, Earl Ray deu-se como culpado e foi condenado a 99 anos de prisão. Ainda ensaiou uma fuga, mas sem grande sucesso; voltou a ser apanhado passados apenas três dias. Em 1998, com 70 anos, morreu numa prisão de Nashville, Tennessee.

O “pantera negra” que se refugiou em Almoçageme

O caso de George Wright alimentou os média no fecho do verão de 2011, dividindo opiniões na sociedade portuguesa e norte-americana, com posições públicas pró e contra a detenção e a extradição deste homem, então com 68 anos, para os EUA. A novela incluiu, até, manifestações de solidariedade, promovidas por familiares e amigos do protagonista, nas ruas de Almoçageme, na freguesia de Colares (Sintra).

Era naquela aldeia que, há mais de duas décadas, vivia o “senhor Jorge”, ou José Luís Jorge dos Santos, na companhia da mulher e dos seus dois filhos. Os vizinhos juravam conhecê-lo bem. Na década de 1980, imigrara da Guiné-Bissau para trabalhar. Em Portugal, constituíra família ao lado de Maria do Rosário, obtendo, através do casamento, nacionalidade portuguesa, logo no início da década de 1990. Chegara a ser pintor da construção civil, dono de um quiosque de artesanato e proprietário de um takeaway de frangos e de um restaurante. Era habitual vê-lo a frequentar a igreja local.

Os mais próximos descreviam-no como “tranquilo” e “discreto”. À beira dos 70, o “senhor Jorge”, fluente em português, era um indivíduo negro, alto e magro, que apresentava boa forma física, usava o cabelo impecavelmente rapado e óculos de hastes de metal. A aparência não tinha nada de especial. Era um membro respeitado na comunidade. Jorge dos Santos guardava, no entanto, um grande segredo. Em setembro de 2011, a PJ bateu-lhe à porta para o revelar.

Português O radical George Wright tornou-se José Luís Jorge dos Santos na Guiné-Bissau e em Portugal. Em Almoçageme (Sintra), vive com a mulher e os seus dois filhos

O seu nome verdadeiro era George Wright, um norte-americano nascido em Halifax, no estado de Massachusetts. Em 1962, Wright tinha sido condenado a uma pena de 15 a 30 anos de prisão pelo assassinato do proprietário de um posto de combustível, em Wall, Nova Jérsia. Pelo crime, passara oito anos atrás das grades, mas acabaria por conseguir escapar.

Em liberdade, filiou-se no Black Liberation Army (Exército de Libertação Negra, numa tradução para português) – uma organização extremista e paramilitar negra, criada a partir de uma cisão do Partido dos Panteras Negras –, o que lhe garantiu proteção. Em 1972, fugiu dos Estados Unidos, protagonizando um plano digno de uma longa-metragem de Hollywood. Vestido de padre, com uma arma escondida na Bíblia que levava nas mãos, George fez parte do grupo que desviou um avião da Delta Airlines, que fazia a ligação Detroit-Miami. Pelo resgate das 86 pessoas a bordo, recebeu um milhão de euros. De seguida, forçou o piloto a voar até Argel, capital da Argélia, país ao qual pediu asilo político. O asilo foi negado, e o avião e o dinheiro devolvidos aos EUA. Os sequestradores foram, todavia, deixados em liberdade pelo conselho revolucionário de Houari Boumédiène. Perante o imbróglio diplomático, o grupo abandonou Argel. A maioria decidiu ir para França, mas George não acompanhava esta ideia. Por isso, não seguiu os companheiros, decisão que lhe garantiu a liberdade – foram todos presos, à exceção dele. As autoridades não teriam notícias de George durante 41 anos.

Hoje, sabe-se que ele viveu na Guiné-Bissau (onde chegou a ser treinador de basquetebol das equipas do Banco Nacional da Guiné e do Benfica de Bissau). Naquele país africano, ganhou nova identidade e começou a aprender a falar português. Passados alguns anos, fixou-se em Portugal.

O FBI nunca fechou a investigação, mas apenas em 2002 prestou atenção à “pista portuguesa”, na sequência de uma chamada intercetada feita por Jorge dos Santos para familiares nos Estados Unidos. Mas só nove anos depois, após a comparação da impressão digital que constava no seu Bilhete de Identidade português, é que George foi localizado e identificado.

Em 2011, Jorge dos Santos seria finalmente detido. A eventual extradição para os EUA deu muito que falar, mas nunca avançaria. Depois de alguns dias atrás das grades, Jorge regressou a Almoçageme para cumprir prisão domiciliária. O tempo foi o seu melhor aliado. A Justiça acabou por deixá-lo onde o encontrou.

O assassino que foi salva-vidas no Algarve

A língua portuguesa é falada por quase 300 milhões de pessoas em todo o mundo. As ligações históricas e culturais entre Portugal e o Brasil são seculares. O número de brasileiros a viver em território nacional caminha para o meio milhão. A rede de apoio inclui amigos e familiares, tornando a integração mais fácil do que noutros países. “O povo”, costuma dizer-se, “é o mesmo”, separado apenas por um oceano. Não admira por isso que, na hora de escapar à justiça brasileira, Portugal surja sempre como um opção viável (e vice-versa).

Os casos de Vítor Cabral Rocha e Bruno Nascimento servem-nos de exemplo. Tinham ambos 22 anos quando participaram em homicídios no Brasil, mas, durante um longo período, conseguiram “desaparecer” em Portugal.

Em 2018, Vítor fazia parte de um grupo de narcotraficantes quando surgiram suspeitas de que o “colega” Arnaldo da Silva pudesse ter desviado 19 quilos de skunk (uma variedade de canábis). No mundo do tráfico, as traições pagam-se com a vida. Vítor seguia ao volante do carro que conduziu o grupo até à casa de Arnaldo, no bairro de São José, em Recife. Os narcotraficantes exigiram explicações, mas, não satisfeitos, acabaram por executar a tiro o “traidor”. O corpo de Arnaldo seria encontrado a boiar num rio três dias depois.

A investigação da Polícia Federal brasileira não encontrou dificuldades em apontar os responsáveis pelo crime. Vítor seria condenado a 20 anos de prisão por homicídio e tráfico de droga, mas recusava ir para a cadeia. Ainda o juiz lia a sentença, já ele cruzava o Atlântico em direção a Portugal. Durante os cinco anos seguintes, Vítor morou em Peniche, na companhia da namorada. Apesar de estar em situação ilegal, com o nome exposto na lista vermelha da Interpol, conseguiu encontrar trabalho, chegando a ter a função de salva-vidas no verão do Algarve. A Justiça só lhe bateu à porta quando se convenceu de que o passado já não podia magoá-lo. Em 2022, procurou obter autorização de residência – e, mais tarde, a nacionalidade –, mas o passo revelar-se-ia desastrado. Os alarmes soaram assim que entregou os seus dados pessoais aos serviços do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). A (falsa) sensação de segurança de Vítor conduziu até si a Interpol, que o prendeu, no início de 2023, em Lisboa. Passados quatro meses, Vítor foi extraditado para cumprir a pena na sua terra natal.

A história de Bruno tem muitas semelhanças, mas, nesta situação, falamos de alguém que permaneceu um “fantasma” durante quase duas décadas. Para se entender o caso, é preciso recuar até 2006. Nesse ano, Bruno viu um familiar próximo ser assassinado. Na altura, o rapaz, de apenas 22 anos, vivia envenenado por sentimentos de vingança, garantindo que, “um dia, iria vingar-se”. Nas semanas seguintes, procurou o alvo por todas as ruas de Belo Horizonte. Certo dia, encontrava-se numa das principais artérias da cidade mineira, acompanhado por dois cúmplices, quando julgou ter visto o homem que procurava. Sem hesitar, aproximou-se e disparou a matar. Bastaram-lhe dois segundos para compreender que se tinha enganado – matara a pessoa errada.

“Perdido por cem, perdido por mil”, terá pensado. Com uma morte na consciência, Bruno não abrandou, acabando, ainda nesse dia, por dar de caras com o homem que procurava desesperadamente. Como fizera horas antes, aproximou-se e descarregou a arma sobre o corpo do rival. Num curto espaço de tempo, cometera dois homicídios. A polícia deu início a uma caça ao homem, mas Bruno desapareceu.

Ao longo de 16 anos, a investigação revelou-se um beco sem saída. Condenado como contumaz a 29 anos de prisão, Bruno passou a constar da lista vermelha da Interpol. O mistério apenas terminou em setembro do ano passado, quando o SEF apanhou o fugitivo. São poucos os pormenores sobre a vida deste homem, hoje com 38 anos, mas sabe-se que vivia em Portugal desde 2018 e que trabalhava em limpezas. Em janeiro deste ano, foi extraditado para cumprir a sua pena no Brasil.

O narcotraficante que vive com vista para o mar

A rota do narcotráfico (também) passa por Portugal. Em outubro de 2022, a VISÃO avançou, em primeira mão, que o Primeiro Comando da Capital (PCC), a principal organização criminosa da América Latina, tinha operacionais a viver em território nacional, de acordo com uma investigação do Ministério Público de São Paulo. Os “narcos” vivem entre nós? A história de José António Palinhos ajuda a responder a esta pergunta.

Nas décadas de 1980 e 1990, Palinhos foi peça-chave de uma organização criminosa, formada por portugueses radicados no Brasil, responsável por uma rota marítima que, durante vários anos, alimentou a Europa de cocaína sul-americana. Com o tráfico, tornar-se-ia milionário e poderoso, figura da alta-roda do Rio de Janeiro, dono de um império que incluía alguns dos mais populares restaurantes cariocas – frequentados por estrelas como Madonna ou Sting –, carros de luxo, imóveis e terrenos nos pontos mais nobres da Cidade Maravilhosa.

Impunidade O “narco” português José António Palinhos foi condenado a 28 anos de prisão no Brasil, mas, 974 dias depois, deixou a cadeia e conseguiu escapar para Portugal. Sem acordos de extradição entre os dois países, Palinhos vive, hoje, em liberdade, num apartamento que tem vista para a praia de Santo Amaro de Oeiras

As primeiras dores de cabeça para Palinhos só chegariam no início do século XXI. Apanhado pela Polícia Federal brasileira, na sequência da Operação Caravelas, o português ver-se-ia atirado para a cela de uma cadeia de segurança máxima, condenado a 28 anos de prisão. No entanto, bastaram 974 dias para que – e ainda sem se perceber muito bem como nem porquê – um novo juiz lhe desse o privilégio de cumprir o que lhe restava da pena em regime semiaberto. Assim que colocou o pé na rua, Palinhos aproveitou para se pôr a monte, fugindo para Portugal, via Paraguai e Madrid. Quando o alerta da polícia brasileira chegou a este lado do Atlântico, de pouco ou nada serviu. Em 2011, a emissão do mandado de captura internacional valeu a Palinhos 43 dias de prisão em Lisboa, mas, sem acordo de extradição entre os dois países, o narcotraficante português seria libertado após expirados os prazos legais.

Hoje, aos 73 anos, Palinhos parece ter a liberdade garantida, vivendo num apartamento com vista para a praia de Santo Amaro de Oeiras e mantendo ligações a várias empresas do setor imobiliário, com sede em Lisboa, Odivelas, Aveiro e até no Reino Unido. Os crimes que cometeu no Brasil prescrevem somente em 2031, mas a hipótese de pagar por eles é remota.

O dono de  restaurantes que era da máfia

O universo da máfia desperta curiosidade e fascínio, mas, ao contrário do Don Corleone de Mario Puzo, que a saga O Padrinho, de Francis Ford Coppola, cristalizou no imaginário coletivo, os chefes destas organizações não se ficam pela poltrona, bebendo uísque ou vinho tinto, fumando charutos, dando ordens lúgubres aos subordinados, enquanto afagam um gato. Alguns escolheram morar em Portugal.

Domenico Giorgi vivia, há vários anos, em território nacional. Conhecido como “Berlusconi” e “Milionário” – pelo alto padrão de vida que levava –, o italiano geria “na sombra” uma rede de restaurantes, em Itália e Portugal. Em Lisboa, era proprietário de dois populares restaurantes italianos, frequentados habitualmente por figuras públicas de várias áreas, jogadores de futebol, cantores, atores, apresentadores de TV… e até pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Domenico tinha ainda outros estabelecimentos, em Aveiro, Vila Nova de Gaia e Braga.

Com 63 anos parecia acima de qualquer suspeita, um empresário “simpático” e “falador”, que não abdicava de marcar presença nos restaurantes, capaz de arregaçar as mangas, misturando-se com naturalidade e desprendimento com clientes e trabalhadores. Nas redes sociais, gostava de posar com famosos. A comida das suas cozinhas era muito elogiada. O italiano dizia “adorar” viver em Lisboa.

Máfia Domenico Giorgi vivia tranquilamente em Portugal. Conhecido como “Berlusconi” e “Milionário”, detinha dois populares restaurantes italianos no centro de Lisboa, frequentados por figuras públicas de várias áreas. Marcelo Rebelo de Sousa era um dos seus clientes

As coisas, no entanto, alteraram-se rapidamente. Em maio de 2023, Domenico Giorgi foi um dos 132 detidos na Operação Eureka, que decorreu, em simultâneo, em dez países, com a participação da PJ e de outras polícias europeias, da América do Sul e dos Estados Unidos (como a DEA – Drug Enforcement Administration), a agência antidroga norte-americana.

As autoridades garantem que o italiano trabalhava para a ‘Ndrangheta, a máfia da região de Régio da Calábria, e que utilizava os restaurantes para “lavar” os lucros da organização criminosa com o tráfico internacional de cocaína. O paraíso português de Domenico terminou ali. Permanece em prisão preventiva.

Antes, já o líder da ‘Ndrangheta tinha sido localizado em Portugal. Francesco Pelle figurava na lista dos 30 fugitivos mais procurados pelas autoridades italianas, depois de ter sido condenado a prisão perpétua no seu país natal. A polícia tentava, sem sucesso, apanhá-lo desde 2007. No início de 2021, a sorte de “Ciccio Paquistanês”, como também é conhecido, mudou, por um acaso. Pelle vivia em Portugal quando apanhou Covid-19. Os sintomas graves levaram-no a procurar ajuda no Hospital de São José, mas, naquela unidade, foi identificado e detido pela polícia. No final desse ano, seria extraditado para Itália, numa operação que obrigou a fortes medidas de segurança.

Mais recentemente, foi também notícia a detenção de Arben Kaçorri, considerado um dos líderes da máfia dos Balcãs, descrito como um homem “muito perigoso”. Em maio de 2009, este albanês tinha sido condenado a quase 22 anos de prisão pelo homicídio qualificado do compatriota Fatmir Kala, em Florença, Itália. Restava-lhe cumprir quase 19, mas as autoridades italianas deixaram-no escapar. Durante 11 anos, Kaçorri viveu num luxuoso prédio no Parque das Nações, em Lisboa. Na capital portuguesa, levou uma vida discreta, embora rodeado de luxo. O albanês pertence a uma longa linhagem ligada a organizações criminosas – o seu irmão, Valentino, também está referenciado como membro da máfia dos Balcãs; o cunhado é Ervis Martinaj, um famoso gangster, conhecido como “Rei do Jogo”, que permanece em paradeiro incerto desde 2022. A partir de Portugal, Kaçorri controlava toda a atividade criminosa do seu grupo.

No âmbito da Operação Labirinto, a PJ desvendou o mistério. No apartamento em que vivia foram encontradas “elevadas quantidades de dinheiro, bens de luxo, sistemas de comunicações e diverso equipamento informático”. Na garagem, tinha “vários veículos topo de gama”.

Os crimes que cometeu já tinham levado a justiça albanesa a confiscar-lhe edifícios comerciais, apartamentos, terrenos e garagens, situados na capital, Tirana. O mafioso permanece detido em Lisboa. Itália não deve tardar a pedir a sua extradição. 

O terrorista indiano que Portugal “salvou”

A presença da ETA em Portugal (ver caixa A Casa da ETA em Portugal) fez notícia no início do século XXI, mas o caso dos independentistas bascos parece não esgotar a relação de grupos terroristas com o País, como comprova o relato que se segue.

Iqbal Singh tinha pouco mais de 20 anos quando entrou no radar das autoridades indianas, suspeito de integrar o grupo islâmico paquistanês Hizbul Mujahideen (Partido dos Combatentes Sagrados), que luta por colocar a região disputada de Caxemira nas mãos de Islamabad. O seu nome passou a constar na lista vermelha da Interpol, mas Iqbal soube manter-se escondido em território português.

A fuga terminou em julho de 2020, quando foi localizado e detido pelo SEF, perto da sua casa em Santo António dos Cavaleiros, no município de Loures. A Índia prontificou-se a pedir a sua extradição, mas os tribunais portugueses decidiram recusá-la, por considerarem não ter recebido garantias suficientes, por parte das autoridades de Nova Déli, de que o homem acusado de terrorismo e tráfico de droga seria poupado à pena de morte ou perpétua.

Extradição O líder da ‘Ndrangheta foi traído pela Covid-19. Francesco Pelle estava em fuga desde 2007, mas foi apanhado quando teve de ser internado no Hospital de São José

Iqbal foi, então, libertado, continuando a viver em Portugal. Em 2022, voltaria a ser detido, por ter participado nas agressões a um homem, num ataque encomendado por familiares da mulher de quem a vítima queria separar-se.

Este foi o último caso selecionado, mas outros haveria por contar. Aliás, o mais recente capítulo desta enciclopédia pode estar hoje a ser escrito. A Polícia Nacional espanhola colocou, há duas semanas, um padre de Vigo na lista dos mais procurados. Chama-se Segundo Cousido Vieites e foi condenado a 32 anos de prisão por ter abusado sexualmente de seis crianças, num acampamento do colégio católico que frequentavam. O padre, de 42 anos, deveria ter-se entregado na cadeia no dia 1 de março de 2023, mas nunca apareceu. Passados 18 meses, as autoridades espanholas continuam à procura. Recentemente, partilharam a fotografia do pedófilo com as autoridades portuguesas, admitindo que ele possa estar escondido deste lado da fronteira. O leitor que dedique, agora, um momento a olhar em seu redor.

A casa da ETA em Portugal

Os independentistas bascos podem ter atuado em Portugal desde 2002

Foto: José Carlos Carvalho

As investigações das autoridades portuguesas confirmaram a presença da ETA em Portugal desde 2006, mas há quem garanta que a “base de apoio logístico” da organização independentista basca existe em território nacional há mais tempo. O livro Uma História da ETA – Nação e Violência em Espanha e Portugal (Bookbuilders, 2020) propõe que as células etarras estavam instaladas em Portugal, pelo menos, desde 2002. “Portugal servia como local de recuo [da ETA], não só para efeitos de planeamento estratégico, mas para efeitos logísticos também”, afirmou o autor, Diogo Noivo, numa entrevista ao Diário de Notícias, publicada há quatro anos. As suspeitas confirmaram-se em 2010, quando a GNR descobriu um arsenal de tonelada e meia de explosivos guardado numa casa em Casal da Avarela, Óbidos. Os inquilinos eram os operacionais da ETA Andoni Fernández e Oier Mielgo. Conhecido por ser perito em explosivos, Andoni foi detido no aeroporto de Lisboa quando se preparava para apanhar um avião em direção à Venezuela. Oier conseguiu fugir, mas seria apanhado em França. Julgado no Tribunal das Caldas da Rainha, foi dado como provado que, a partir de Portugal, Andoni estava a “preparar, planear e desenvolver” ataques bombistas em Espanha. O etarra foi condenado a 12 anos de prisão, mas seria libertado, “por bom comportamento”, passados nove. Nessa altura, a ETA já tinha anunciado o fim da sua atividade.