Quando morre alguém antes do tempo – o que será isso do tempo de morrer? –, a comoção generaliza-se. Mais ainda quando esse alguém vivia na esfera pública. Dependendo da dimensão do seu estrelato, o sofrimento alarga-se ao País ou ao mundo, mesmo que nunca tenhamos privado com quem parte ou sequer seguido os seus feitos.
A morte antes do tempo – do tempo em que esperávamos – implica sempre rispidez. Nunca são causas naturais, que essas reservam-se aos que já cruzaram todas as etapas da vida. Normalmente, nestes casos há uma interrupção abrupta do percurso que se julgava longo, quiçá brilhante, por culpa de um acidente, de excessos ou de uma doença traiçoeira. Nada é natural na morte de um jovem. Então como a digerir?
Os mais novos, quando morrem, transformam-se quase sempre em mitos. Na hora da partida, nasce a devoção, o culto, na esperança de não os deixar partir de uma vez só. Cria-se então uma certa aura em nunca envelhecer, em viver para sempre novo na nossa lembrança.
Alguém consegue visualizar o lindíssimo ator James Dean, que morreu num violento acidente de automóvel na flor dos vintes – tal como Diogo Jota e o seu irmão André Silva – hoje com 94 anos?
Ou poderia lá imaginar Jim Morrison, vocalista da banda The Doors, desaparecido há 54 anos, vítima de um ataque cardíaco causado possivelmente pelo consumo excessivo de drogas e álcool, que na segunda década do século XXI ainda houvesse turistas que, numa viagem a Paris, guardassem umas horas do seu passeio para o “visitarem” no Cemitério Père Lachaise?
Gestos, nem sempre compreendidos por quem não partilha da mesma veneração, com vista a perpetuar aqueles que idolatramos.
Vidas em excesso
Soube-se na terça-feira, 8, num relatório preliminar da polícia espanhola, que os dois irmãos futebolistas, de 28 e 25 anos, seguiam em excesso de velocidade no Lamborghini que alugaram para fazer a viagem até Inglaterra, visto que Diogo estava impedido de seguir de avião por causa de uma cirurgia de que ainda estaria a recuperar. Terá sido um fator agravante da causa imediata do sinistro: o rebentamento de um pneu traseiro durante uma manobra de ultrapassagem, de acordo com as conclusões preliminares da Guardia Civil.
A velocidade acima da lei foi também a causa do acidente de James Dean.
No caso de Francisco Adam, ator da série Morangos com Açúcar, além da velocidade que levou ao despiste do carro em que seguia com mais dois amigos, e que o matou em 2006, aos 22 anos, a autópsia veio a revelar que consumira, pouco tempo antes do acidente, cocaína, anfetaminas, cafeína e álcool.
O cantor Angélico Vieira morreu cinco anos depois, também num acidente de viação, na A1, quando o carro em que ia, um potente BMW 635 Cabriolet, se despistou no seguimento do rebentamento de um pneu. As perícias detetaram que o artista guiava a uma velocidade entre os 206 e os 237 quilómetros por hora. Um mês antes, Angélico, 28 anos, já tinha sido apanhado a conduzir a 210 km/h, ao mesmo tempo que se filmava.
A cantora Sara Carreira, de 21 anos, filha de Tony Carreira, também teve o seu fim na estrada. Embora não se provasse que o carro em que seguia ia em alta velocidade, foi um condutor com excesso de álcool no sangue que terá provocado o acidente fatal, envolvendo vários carros e causando outras vítimas.
O médio multicampeão pelo FC Porto Rui Filipe morreu em 1994, com 26 anos, quando regressava do aniversário do irmão, às 6h30, ao tentar ultrapassar o carro da frente, onde seguiam amigos, perdendo o controlo do automóvel. José Alberto Teixeira Ferreirinha, conhecido como Zé Beto, guarda-redes do mesmo clube, teve fim idêntico aos 30 anos, em 1990, na A1, próximo de Santa Maria da Feira. O automóvel despistou-se em alta velocidade e o condutor não sobreviveu ao acidente.
Como se nota pelo elencar de casos de mortes ao volante, em que os protagonistas estão na flor da idade, são mais comuns do que se poderia desejar. Este tipo de comportamentos excessivos são típicos de uma idade em que nos consideramos inquebráveis. Aos vinte ninguém pensa na morte nem em formas de a evitar.
Sensação de pertença
Quando notícias destas invadem o nosso dia a dia e há crianças que veneram as vítimas, torna-se ainda mais difícil explicar o sucedido. Se ainda estamos a tentar arranjar subterfúgios para nós…
Por isso mesmo, Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, lembrou-se de fazer uma publicação nas suas redes sociais, dias depois da tragédia dos irmãos futebolistas, para ajudar pais, treinadores e professores a lidar com as reações mais emotivas. “O impacto nas crianças e nos adolescentes que os seguem pode ser real – mesmo que nunca os tenham conhecido”, esclarece.
Por seu turno, Melanie Tavares, psicóloga, alerta para o facto pouco relevante de se conhecer ou não a pessoa que parte. “As figuras públicas que admiramos pertencem à nossa casa, quase fazem parte da nossa vida. Identificamo-nos com o seu comportamento, o seu nível de vida, o seu lifestyle.”
Para o caso específico de Diogo Jota, um jogador da Seleção, também contribuem o orgulho nacional e a sensação de união que o futebol dá a grande parte dos portugueses. A empatia rapidamente se desenvolve.
As respostas às questões dos mais novos, defende Filipa Jardim da Silva, devem ser claras e sem metáforas. Do tipo: “Sim, é verdade. O Diogo e o irmão sofreram um acidente e morreram.” Dizer que “foram embora” ou “partiram” pode gerar confusão e medo em idades mais jovens, garante a especialista. “A morte faz parte da vida, mas quando acontece tão cedo é mesmo difícil de entender.”
Há frases proibidas, por não ajudarem em nada ao processo de aceitação. Eis alguns exemplos: “Foi a vontade de Deus” (pode gerar culpa, medo ou zanga espiritual); “Agora está num sítio melhor” (pode confundir e criar medo da vida); “Não penses nisso” (“bloquear sentimentos só os torna mais pesados e solitários), defende a psicóloga clínica.
Os adultos também sofrem quando ouvem estas histórias de jovens que são arrancados à vida de um segundo para o outro. E ficam sem ar. “Se forem pais ou avós, têm tendência para se rever numa situação idêntica, indagando como poderiam sobreviver a uma tragédia que lhe levasse os filhos ou os netos.”
O que andamos aqui a fazer?
Se se tratar de um desastre em trabalho, como o do piloto brasileiro de Fórmula 1 Ayrton Senna, em Imola, há mais de três décadas, com 34 anos, ou o caso do acidente de avião que matou todos os elementos da banda brasileira Mamonas Assassinas, quando se deslocavam para mais um concerto no auge da sua popularidade, em 1996, as pessoas aceitam melhor, como se fosse uma fatalidade inerente à fama.
Nessas alturas, é comum questionar-se o sentido da vida, ainda que fugazmente. Perguntamo-nos: O que andamos aqui a fazer?; Porque perdemos tempo com coisas que não importam?; Onde devemos investir a nossa energia?
Mas a consciencialização do carpe diem, de que a vida é um fósforo que se apaga de um sopro, dura pouco. “Estas reflexões não chegam para mudar comportamentos. No dia a seguir, estamos todos a agir da mesma forma, tal como aconteceu depois da pandemia de Covid-19”, desmistifica Melanie Tavares.
Esta questão não se coloca quando pessoas que aparentam ter uma vida glamourosa e bem-sucedida decidem acabar com ela ainda nos primórdios da sua existência. Lembramos aqui casos como o do músico dos One Direction, Liam Payne, 31 anos, ou o do ator Heath Ledger, 28 anos. Ambos foram encontrados mortos, em circunstâncias pouco claras, que levam a crer que quiseram pôr fim à vida.
Já no caso do chamado “clube dos 27” (ver caixa), atentamos nas palavras do veterano Bruce Springsteen, em entrevista ao The Telegraph, reconhecendo que as mortes prematuras de músicos devido ao abuso de substâncias se tornaram banais na indústria, devido à pressão sobre os jovens artistas – muitos não têm estrutura interna para lidar com o sucesso e refugiam-se no conforto das drogas ou do álcool para aliviar a tensão, considera o cantor.
Para ele, o valor está antes na longevidade e na integridade do trabalho, não na ideia de morrer jovem, algo que, segundo Springsteen, beneficia apenas a indústria: “É uma fraude. É só uma parte da história que atrai alguns jovens. Morrer jovem é ótimo para as editoras, mas o que isso traz para nós?” loliveira@visao.pt
A maldição dos 27
O mito do clube dos 27 será verdadeiro? Quem o estuda diz que sim, mas…
Zackary Okun Dunivin e Patrick Kaminski, investigadores da área da Comunicação da Universidade da Califórnia, dedicaram-se a analisar a realidade do clube dos 27, num estudo publicado no jornal científico PNAS, intitulado Dependência de Trajetória, Estigmergia e Reificação Memética na Formação do Mito do Clube dos 27. Neste grupo incluem-se os lendários Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones, Jim Morrison, Kurt Cobain ou Amy Winehouse, todos músicos que morreram nessa idade prematura, embora as causas variem um pouco de uns para os outros. Note-se que as mortes dos primeiros quatro aconteceram todas no início da década de 1970 e no espaço de apenas dois anos.
“Esta estranha coincidência deixou a sua marca na memória coletiva. Não foi apenas a idade. Foi o fio condutor do génio musical, da influência contracultura e do fascínio trágico de vidas encurtadas por um cocktail de fama, consumo de drogas e luta inerente à sua condição de ser humano. A narrativa é não só convincente, mas quase mística na sua sincronicidade”, explica Zackary ao Público.
Em 2011, uma investigação publicada no jornal científico The BMJ reduziu este clube a um mito. E, por isso, os autores da Universidade da Califórnia quiseram alargar a verdade sofística, sob a premissa de que, embora a existência do fenómeno não possa ser empiricamente demonstrada, ele é real nas suas consequências.
Os colegas Zackary e Patrick analisaram então dados de 344 156 notáveis, listados na Wikipédia, e chegaram à conclusão de que, apesar de não haver um risco acrescido de morte aos 27 anos, aqueles que realmente morreram nessa idade recebiam muito mais atenção mediática.
Utilizando as visualizações de páginas da enciclopédia virtual como indicador de fama, o estudo do PNAS comprovou que esses legados são amplificados e têm mais visibilidade do que quem morre noutras idades também prematuras. “Baseámo-nos num conceito sociológico chamado teorema de Thomas, que afirma que ‘se definirmos uma situação como real, ela é real nas suas consequências’”, explica o investigador já citado. “O mito do Clube dos 27 é uma profecia que se cumpre a si própria: tornou-se ‘real’ porque acreditámos nele”, conclui Zackary Okun Dunivin. Isto porque tendemos a acreditar em narrativas poéticas.
Morrer para ser famoso
A publicação do BMJ, Dying to Be Famous: Estudo de Corte Retrospetivo da Mortalidade de Estrelas do Rock e da Pop e Sua Associação com Experiências Adversas na Infância, confirma, no entanto, que estes músicos tendem a morrer mais cedo do que a população em geral.
Pelas contas dos seus cinco autores, da Universidade John Moores, em Liverpool, na Grã-Bretanha, a morte prematura é duas vezes mais provável para artistas que atuam sozinhos. E os músicos que se tornaram famosos depois dos anos 1980 têm maiores probabilidades de sobrevivência. Nesse grupo, os que sobrevivem 25 anos à fama ficam com a mesma taxa de mortalidade que a população em geral.
Nesta investigação, liderada por Mark A. Bellis, analisaram-se 1 489 estrelas da música que ganharam palco entre 1956 e 2006 – destas 137 morreram, com uma média de idade média de 45,2 anos para os americanos e 39,6 para os europeus.
A notoriedade, por si só, não é responsável por estes desaparecimentos antes do esperado. No estudo, descobriu-se, por exemplo, que quase metade dos músicos cujas mortes se ligavam ao abuso de drogas e álcool tiveram infâncias traumáticas. Uma verdadeira pescadinha de rabo na boca.