A votação nas eleições americanas é um dos processos mais complicados, exaustivos e cansativos que existe no mundo. Temos a ideia, muito errada, de que está tudo centrado em Trump e Kamala Harris. Nada disso. É precisamente o contrário, e um eleitor comum demora entre cinco a dez minutos, ou mais, para conseguir votar em todas as opções que aparecem num boletim de voto, que varia em conteúdo de estado para estado.

Há estados onde surgem oito candidatos à presidência, enquanto noutros há muitos mais, incluindo alguns de quem os americanos, eventualmente, nunca ouviram falar. No dia 5, vota-se para presidente, vice-presidente, um terço do Senado, 435 membros da Câmara dos Representantes, em alguns governadores, membros dos Congressos estaduais, cargos locais e até juízes. Seriam necessárias cinco colunas como esta para elencar tudo o que vai a votos, sem esquecer as petições e os referendos.

Esta loucura eleitoral tem um resultado impressionante: em 2020, um boletim de voto da Califórnia tinha 12 páginas, ou seja, seis folhas frente e verso. Convém repetir: 12 páginas!!! Daí a necessidade de os eleitores «estudarem» com alguma antecedência o boletim. É um quebra-cabeças que leva muitos a não terem paciência para votar em tudo e em todos. Em alguns dos cargos há eleitos com uma meia dúzia de votos.

Para agravar tudo isto, o ciclo eleitoral nunca termina verdadeiramente nos Estados Unidos. De dois em dois anos, toda a Câmara dos Representantes vai a votos, a nível federal e estadual, mais o terço dos senadores, e o mesmo se aplica a milhares de outros cargos eletivos. Nos EUA, as eleições são um dos maiores negócios em atividade permanente, envolvendo milhares de empresas e milhões de pessoas. Todos os setores são mobilizados. Todos, mesmo.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Os 50 mais ricos do mundo produzem, em média, mais carbono através dos investimentos, jatos privados e iates, em hora e meia, do que uma pessoa “comum” produz toda a vida. A conclusão é do relatório da organização humanitária Oxfam, “A Desigualdade de Carbono Mata”.

“Os super-ricos da Europa estão a tratar o nosso planeta como o seu parque de diversão pessoal. Os seus investimentos sujos, os jatos privados e iates não são apenas símbolos de excesso, estão a alimentar a desigualdade, a fome e até a morte”, afirmou a especialista da Oxfam Internacional, Chiara Putaturo, em comunicado.

O relatório monitorizou as emissões de jatos privados, iates e investimentos poluentes, detalhando como os super-ricos alimentam a desigualdade, a fome e a morte em todo o mundo, e como as suas emissões estão a acelerar o colapso climático e a causar os mais diversos estragos.

A Oxfam explica como os indivíduos mais ricos de uma sociedade tendem a ser responsáveis por muito mais poluição do que a maioria das pessoas, “particularmente aqueles com estilos de vida extravagantes”: assim, por exemplo, levaria um cidadão médio do Reino Unido quase 11 anos para emitir tanto carbono o quanto um único jato particular emite numa viagem de ida e volta de Londres a Nova York.

A pegada de carbono de um europeu super-rico, acumulada ao longo de quase uma semana de utilização de super-iates e jatos privados, corresponde à pegada de carbono vitalícia de uma pessoa do 1% mais pobre do mundo. No mesmo sentido, quase 40% dos investimentos bilionários analisados no estudo referem-se a indústrias altamente poluentes, como petróleo, mineração, transporte marítimo e cimento.

As emissões totais de investimento de 36 dos multimilionários mais ricos da União Europeia são equivalentes às emissões anuais de mais de 4,5 milhões de europeus, conclui a organização. Chiara Putaturo defende que os super-ricos devem pagar a conta da sua pegada de carbono, significando isto mais impostos sobre estes.

O conceito de “pulseirinha”, anteriormente conotado genericamente com destinos banhados pelo Índico ou o Pacífico – e, claro, o norte do Brasil – são agora cada vez mais uma aposta das cadeias hoteleiras internacionais. A Europa sempre fez um uso moderado dos pacotes de ‘tudo incluído’, mas essa tendência tem-se alterado significativamente nos últimos anos, com os consumidores a alterarem também os seus destinos preferidos de viagem.

Em Portugal esta tendência também tem aumentado – sobretudo em destinos como o Algarve e a Madeira, onde sempre foi notada – sobretudo no segmento de luxo. O resort Dreams Madeira, da Hyatt, é uma das mais recentes novidades a ocupar aquele arquipélago, abrindo a sua primeira unidade All Inclusive na ilha.  Atualmente em soft opening, oferece reduções de 40% sobre as tarifas que, em junho do próximo ano se fixarão em cerca de €1800 por semana, para um casal – ainda assim, um preço mais baixo do que se tem pagado para arrendar, pelo mesmo número de noites, uma casa no Algarve, no verão.

Também recentemente abriu portas, a Sul, o Viceroy Ombria, em Loulé. Aqui, as noites começam nos €700 – com pequeno-almoço incluído – por quarto duplo. Em época baixa, poderá conseguir-se uma diária por €250, consoante a ocupação. O resort, que abriu portas há apenas umas semanas, já fez saber que tem como objetivo competir com o Six Senses Douro Valley.

Lá em cima, no hotel sediado em Samodães, uma noite já custa, em média, mais de €1000 euros, e o valor deverá continuar a subir. Pelo menos, é essa a intenção do diretor da unidade, André Buldini, que no ano passado em entrevista à EXAME esclareceu que estava de mira apontada ao mercado norte-americano, onde o dinheiro não é um problema.

No mesmo sentido, há uns meses o grupo BOA anunciou também a criação de um novo resort de luxo na Quinta da Barroca, em Armamar. Quando falaram à EXAME, os responsáveis do grupo BOA não referiram preços – o resort só tem abertura prevista para 2027 – mas avisaram que também estarão a competir com o Six Senses.

Na Madeira, para pegarmos novamente na ilha sobre a qual falámos no início deste texto, uma noite no Savoy Palace custa, em média, €400 para duas pessoas, em junho. O valor vai subindo à medida que o verão aquece, o que significa que um casal que queira passar uma semana na “Pérola do Atlântico” pode pagar €2000 só pelo alojamento e pequeno-almoço.

Em declarações recentes ao Financial Times, o presidente do Hyatt para a Europa, África e Médio Oriente referia que o grupo tem “em pipeline uma série vibrante de resorts, com inaugurações muito esperadas planeadas para os próximos anos”. Javier Águila referiu ainda a abertura prevista de uma unidade nas Canárias, e o reforço da presença em mercados como Espanha, Grécia e Bulgária.

Depois de ter adquirido, em 2021, o Apple Leisure Group, o Hyatt tornou-se no operador turístico com maior portefólio mundial de resorts ‘tudo incluído’ no segmento de luxo, com as propriedades mais ostentosas a situarem-se nos EUA.

A cadeia Marriott também te reforçado a sua oferta, numa altura em que cada vez mais consumidores parecem procurar um tipo de viagem cada vez mais exclusivo – e caro – o que torna este tipo de unidades muito lucrativa.

Nos últimos anos, Portugal tem sido palco óbvio desta tendência, com o crescimento de marcas como as já referidas, mas também com o reposicionamento de outras que, à boleia do aumento dos preços médios, vão oferecendo [ou tentando oferecer] cada vez serviços mais exclusivos. E subindo preço, também.

É o caso do  The Elegant Group, dono dos hotéis Martinhal, vocacionados sobretudo para famílias e que continuam a conquistar a preferência dos viajantes na Europa; do grupo Valverde, que conseguiu que duas das suas unidades pertencessem à exclusiva rede Relais&Chateaux, sendo uma delas em Lisboa e a única a ostentar este selo de excelência.

Mas até no segmento dos hotéis de 3 e 4 estrelas se tem verificado um aumento consistente do preço médio por noite. O Diário Notícias dava conta, há uns dias, de que nunca foi tão caro ser turista em Portugal, com os dados do INE a dar conta de que o valor médio por noite já tinha ultrapassado os €200 nas unidades hoteleiras. Dados da Associação da Hotelaria de Portugal, relativos ao verão – e constantes no inquérito “Balanço verão 2024” – já davam conta de que os preços médios por quarto e por noite tinham chegado aos €174 na época estival.

O primeiro-ministro defendeu esta segunda-feira, antes do início da primeira reunião do Conselho Nacional para as Migrações e Asilo, que Portugal não é um país onde o “ódio e as questões raciais tenham uma natureza de preocupação” e que a “larga maioria da comunidade convive bem com aqueles que nos procuram e sabe separar muito bem epifenómenos em algumas circunstâncias, alguma sensação de insegurança daquilo que verdadeiramente importa, que é a integração”.

“Não somos um país onde o ódio, as questões raciais tenham uma natureza de preocupação, o que não significa que estejamos desatentos a alguns epifenómenos que existem neste domínio”, afirmou Luís Montenegro, numa declaração em que não respondeu a perguntas.

O líder do governo não referiu diretamente os desacatos dos últimos dias em vários bairros na Grande Lisboa após a morte de Odair Moniz, baleado por um agente da PSP na madrugada de segunda-feira. “Nós felizmente somos um país cujos fenómenos de atropelo à dignidade e aos direitos humanos é residual”, disse, salientando que Portugal é um país que “é uma referência no contexto internacional do respeito pelos direitos humanos, do respeito pela dignidade das pessoas”, diz.

A propósito do julgamento do processo BES, que teve início no passado dia 15 de outubro, temos ouvido falar em “megaprocessos”, numa perspetiva crítica. Aponta-se, essencialmente, a morosidade da investigação e das subsequentes fases do processo (instrução, julgamento e recursos).

Antes do mais, importa esclarecer que este conceito de “megaprocessos” não existe na lei.

Na verdade, o Código de Processo Penal fala em “excecional complexidade” de determinados tipos de crime sem fornecer uma definição. Limita-se a indicar, a título exemplificativo, circunstâncias que podem conduzir à sua declaração, as quais se prendem, com o número de arguidos ou de ofendidos ou com o carácter altamente organizado do crime (artigo 215.º, nº 3 do CPP).

Sublinhe-se que a declaração de excecional complexidade é da competência exclusiva do Juiz da 1.ª Instância e pode ser determinada oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.

A Jurisprudência tem vindo, unanimemente, a estabelecer que o juízo da excecional complexidade depende do prudente critério do Juiz na ponderação de elementos de facto.

Mas que elementos de facto? Ora, em suma, referem-se ao tipo de criminalidade, às dificuldades de obtenção de prova, às complexidades da análise dessa prova e ao elevado número de intervenientes.

Explicando.

Muitas das vezes estamos perante complexos esquemas de criminalidade organizada, económico-financeira, cibercriminalidade, cometida de forma transnacional, com vários intervenientes (pessoas singulares e coletivas).

As matérias sob investigação são tão complexas que, não raras vezes, convocam o recurso do Ministério Público a assessoria e consultadoria técnica em áreas como urbanismo, engenharia, arquitetura, contabilidade, mercados financeiros, informática, etc.

A obtenção de prova impõe, muitas vezes, o recurso a mecanismos de cooperação judiciária internacional. Apesar do elevado esforço que tem vindo a ser desenvolvido no sentido de tornar estes mecanismos mais fluidos e mais diretos, ainda nos deparamos com variadíssimos constrangimentos decorrentes quer das diferentes línguas, quer dos diferentes trâmites processuais de cada país, que se traduzem na elevada morosidade destes pedidos. E, note-se que, por vezes, analisada a resposta das autoridades estrangeiras, surge necessidade de efetuar novos pedidos e o procedimento repete-se!

Ora, estando em curso a investigação, a análise sistemática e contínua da prova é crucial para que o Ministério Público, que tem a direção efetiva do inquérito, definir ou ir definindo o objeto do processo. Dizemos ir definindo, porque a investigação é dinâmica, o que significa que o esquema que se evidenciava no início da investigação poderá não corresponder ao que virá a ser vertido na acusação.

Na verdade, impõe-se ao Ministério Público fazer a triagem de um manancial de informação que é recolhida ao longo da investigação (imagine-se os terabytes de dados apreendidos nas buscas) e perceber qual o caminho a seguir.

Contudo, como devem calcular, este trabalho é hercúleo, uma vez que é multiplicado pelo número de entidades envolvidas, sendo necessário fazer a conjugação de todos os elementos de prova recolhidos, de modo a sustentar-se uma acusação em julgamento.

Ora, chegados a determinado ponto da investigação, é crucial perceber o que vamos separar e o que não podemos separar.

Como sabemos, o Ministério Público está sujeito ao princípio da legalidade e não pode decidir se investiga ou não. Ou seja, deparado com a prática de crime tem de investigar. A questão é: investigar no mesmo processo ou noutro.

Temos de invocar aqui o artigo 29.º do Código de Processo Penal que consagra a unidade e apensação dos processos sempre que haja conexão de processos.

E são variadíssimas as possibilidades de conexão: o mesmo agente tenha cometido vários crimes, o mesmo crime tenha sido cometido por vários agentes, vários agentes tenham cometido vários crimes em comparticipação, entre outras.

Claro que a Lei estabelece casos em que se pode fazer cessar a conexão e de ordenar a separação de processos (artigo 30.º CPP). A título exemplificativo: quando a conexão afetar gravemente e de forma desproporcionada a posição de qualquer arguido (nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva) ou a conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil, para a pretensão punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado.

Poderíamos invocar este preceito para fragmentar os autos. Mas será que a separação de processos, ou melhor dizendo dos núcleos de factos sob investigação, é sempre a melhor opção?

Obviamente que a apreciação terá sempre de ser casuística, contudo, importa ter em linha de conta que fragmentar pode não ser bom, nem para o arguido, nem para a Justiça.

Imagine-se levar a julgamento um arguido que “burlou” 1000 vítimas, com o mesmo esquema, praticado através da internet. Seguramente, todos concordamos que fará mais sentido fazer um julgamento com mil inquirições do que mil julgamentos.

Imagine-se outra situação: Dez arguidos montaram um complexo esquema de fraude relativa a compras e vendas de veículos, no espaço da União Europeia, para evitar pagar impostos. Ao longo de dois anos constituíram cerca de cinquenta sociedades, onde repetiam o mesmo esquema criminoso. Pese embora a complexidade da atuação e do elevado número de sujeitos processuais, deverá ser melhor que o aludido esquema se demonstre de uma só vez em Tribunal, do que se repitam vários atos, aos longo de vários julgamentos, no decurso de vários anos, correndo o risco, até, de haver contradição de julgados, considerando que a produção de prova se realiza em audiência de discussão e julgamento e nem sempre se apresenta da mesma forma.

Por último, de salientar que os magistrados não têm um especial prazer em criar ou dirigir processos de excecional complexidade. Contudo, a digitalidade da sociedade atual e o crime sem fronteiras conduzem-nos a realidade complexas e realidades complexas traduzem-se em processos complexos, os odiados, mas necessários, “megaprocessos”.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Às vezes, o exagero é a melhor forma para mostrar como se tem tido uma visão parcial do mundo e do passado. E a história da arte que Katy Hessel escreveu sem homens é certamente uma provocação, como a própria historiadora britânica reconhece, mas não é mais do que a replicação, no lado feminino, de muitas histórias da arte tradicionais, centradas na atividade masculina.

Com este gesto, Hessel procura não só dar a conhecer obras e artistas fantásticas, hoje, como no seu tempo, e levar o leitor a questionar as representações do passado e as que queremos para o nosso presente.

Sei que o livro é já uma resposta, mas é mesmo possível escrever uma história da arte só com mulheres?

Katy Hessel: Só há uma história da arte, que deve incluir homens e mulheres. Mas cresci a ler histórias da arte que só referiam homens. Senti que era necessário escrever este livro, reconhecendo o trabalho de muitas mulheres. Também estava cansada de ver as mulheres apenas como musas ou esposas e filhas de artistas. Não: elas têm valor por si.

A pergunta também ia no sentido de saber se, mesmo sem homens, se teria um conhecimento dos principais acontecimentos, descobertas e explorações artísticas do passado?

Sim, sim. Isso é possível e ainda mais empolgante. Estão aqui todos os movimentos que, por convenção, foram assumidos para organizar a história da arte, mas com outros nomes e olhares. Este livro expande o nosso conhecimento e a história da arte tal como a conhecemos. Além disso, aqui também se faz eco dos inúmeros estudos que têm sido feitos nas últimas décadas sobre mulheres artistas e sem os quais não teria podido descobrir tantos nomes e tantas obras fantásticas.

A História da Arte sem Homens – Objectiva, 528 pp, 34,95 euros

Como explica que as mulheres tenham sido sistematicamente afastadas? Cita o caso de Ernst Gombrich, cuja História de Arte, mesmo na 16.ª edição, apenas inclui uma mulher…

Este livro é, na verdade, uma resposta a essa clássica História da Arte, um livro de referência, como o de  H. W. Janson. A sua pergunta é muito interessante e, na verdade, adorava poder voltar atrás no tempo e perguntar-lhes. Esses livros foram certamente resultado da sociedade daquele tempo.

O facto de a esmagadora maioria de histórias da arte terem sido escritas por homens também não terá ajudado muito. Espero, na verdade, que esta nova abordagem e esta provocação levem as pessoas a questionar não só esse tempo, mas também aquele em que vivemos. É pôr o dedo na ferida. Porque não se trata de apagar o nome de artistas menores. Algumas foram verdadeiras celebridades em vida.

Li este livro como uma coleção de mulheres extraordinárias, pois todas tiveram de superar as circunstâncias em que nasceram, o tempo em que viveram e vingar num mundo feito de homens…

Absolutamente. Não foi fácil a estas mulheres vingarem, outra razão para falarmos delas. Foi uma luta. Alguns dos seus trabalhos não são anatomicamente precisos como o de outros artistas, nomeadamente homens? É possível, mas a sua história tem de ser contada. E é preciso perceber que a estas mulheres foi negado o trabalho com modelos vivos. Muitas aprenderam o ofício copiando obras de outros artistas.

Muitas histórias da arte têm dado maior importância à pintura e a à escultura. Alargar o que entendemos como arte permite incluir mais mulheres?

Temos de celebrar todas as formas de arte e ultrapassar a oposição entre artes maiores e menores. Se dermos espaço a mais suportes vamos encontrar obras extraordinárias. E há, de facto, vários exemplos em que as mulheres foram pioneiras ao trabalhar com têxteis ou na pequena escala.

E na pintura e na apresentação de temas clássicos, encontrou um olhar feminino diferente?

Em muitos casos, sim. Na obra de Artemisia Gentileschi, por exemplo, as mulheres estão no centro da ação, não são passivas, como se pode ver em Judite decapitando Holofernes, pintado de uma forma completamente diferente (no papel dado às mulheres) por Caravaggio. E depois há inovações incríveis, às vezes por limitações várias, no uso do autorretrato e na representação do espaço íntimo e familiar.

Não é possível, nem aqui necessário, fazer aqui uma síntese, mesmo que muito reduzida, do percurso de Helena Roseta, desde a sua ligação, ainda estudante, a movimentos católicos e de intervenção progressista, a eleita para a Assembleia Constituinte aos 27 anos, figura destacadíssima do PPD e apoiante de Sá Carneiro (PPD de que saiu para, em 1986, apoiar Mário Soares para Presidente da República), presidente da Câmara de Cascais, deputada primeiro independente, depois eleita nas listas do PS, fundadora do Movimento Intervenção e Cidadania, bastonária da Ordem dos Arquitetos, grande amiga e testamenteira de Natália Correia, etc., etc.

Um currículo de facto raríssimo o desta mulher que há muito se afastou da política partidária e há alguns anos – agora com 77, que ninguém diz … – se afastou da ribalta, mas continua a sua luta de sempre, designadamente pelo direito à habitação – tema do volume agora lançado, com a chancela da Calidoscópio.

Livro em que reproduz algumas das suas imensas intervenções nesse sentido (desde logo na Constituinte) e sintetiza o essencial do que “aprendeu” e hoje sabe e pensa sobre esse tema. Tema também desta conversa, que gostaríamos pudesse ser sobre muito mais…

Tem estado, ultimamente, muito afastada da ribalta, o que a levou a organizar/escrever este livro?

O 25 de Abril convocou a minha geração para a construção da democracia. Pude participar na inscrição do direito à habitação na Constituição. Andei por muitos bairros, conheci gente anónima notável, testei projetos novos, travei muitas lutas, construí solidariedades.

Aos 76 anos decidi arrumar papéis e memórias. Dei comigo a perguntar o que deixo à geração dos meus netos, cujo presente e futuro são tão incertos. O livro foi a forma que encontrei de responder.

De toda essa luta – como cidadã, arquiteta, deputada, autarca – o que considera ter dado mais importante contributo para o objetivo visado?

Talvez o que fique é ter sido “mãe” da Lei de Bases da Habitação, publicada em 2019. Só consegui fazê-lo por ter tido grandes mestres, entre os quais Nuno Portas, Nuno Teotónio Pereira e Gonçalo Ribeiro Telles. As grandes lutas não acabam nunca. Há que receber o testemunho e passá-lo a quem vier a seguir.

Qual o seu balanço e avaliação do que nos últimos anos foi (ou não foi…) feito em Portugal no domínio da habitação?

O direito à habitação ficou na Constituição de 1976, mas o Estado não fez a sua parte. A intervenção pública na habitação nos últimos 50 anos foi mínima, ao contrário do que sucedeu com outros direitos sociais, como a saúde, a educação ou a segurança social, em que o Estado teve e tem um papel decisivo.

A habitação pública é hoje uns escassos 2% do total de habitações em Portugal. No pós 25 de Abril, houve apenas dois grandes programas de habitação pública: em 1974 o SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), de Nuno Portas, uma experiência pioneira e participativa em bairros pobres autoconstruídos, descontinuada dois anos depois; e em 1993 o PER (Programa Especial de Realojamento), de Cavaco Silva, para erradicar os bairros de lata nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

E agora há o Programa de Recuperação e Resiliência (PRP)…

Sim, só agora e à custa de fundos europeus é que se conseguiu um novo investimento público sério em habitação. São 3 mil milhões de euros, entre subvenções e empréstimos, a executar até 2026. Veremos o que resulta e o que acontecerá depois. A habitação é uma necessidade permanente.

Mais do que programas esporádicos e avulsos, precisamos de uma intervenção continuada do Estado, na habitação pública e no mercado imobiliário, que não se autorregula porque a procura não tem limites mas o solo é um bem escasso.

E aí há uma ‘falha’?

Há uma falha estrondosa. Segundo o discurso dominante a culpa é da falta de oferta e é preciso construir mais. A verdade é que há em Portugal muito mais casas do que famílias – 5,4 milhões de fogos para 4,3 milhões de agregados familiares, segundo o censo de 2021.

O que sucede é que muitas destas casas não estão onde as pessoas precisam ou a preços que possam suportar. O próprio mercado imobiliário se alterou muito nestes 50 anos. Com a globalização financeira, mudou de escala e “financeirizou-se”, isto é, a habitação deixou de ser vista como um bem de primeira necessidade para ser um mero produto financeiro, tanto mais apetecível quanto maior a sua valorização no mercado. E a procura, que era local, hoje é global.

Há em Portugal muito mais casas do que famílias – 5,4 milhões de fogos para 4,3 milhões de agregados familiares. O que sucede é que muitas casas não estão onde as pessoas precisam ou a preços que possam suportar

helena roseta

Mas há recursos esquecidos. No último censo foram identificados mais de 700 mil fogos vagos (número que não inclui as segundas habitações), cerca de 12% do total de habitações existentes. A esmagadora maioria são fogos privados, no interior e nas grandes cidades. Só em Lisboa foram registados 47 mil. É sintoma de um mercado muito disfuncional, incapaz de mobilizar os recursos existentes para satisfazer uma procura crescente de habitação acessível.

E então, que fazer?

“Não tenhamos medo das palavras. É de especulação desenfreada que se trata, a uma escala financeira sem precedentes”

A situação reclama uma efetiva regulação pública, baseada na Constituição e nos deveres do Estado. É preciso usar todas as ferramentas disponíveis, da promoção pública à intervenção fiscal, da subsidiação à regulação legal.

Cito algumas prioridades: mais transparência nos dados públicos sobre oferta e procura; apoio à procura de habitação para habitar, não para especular; concentração de incentivos no desenvolvimento de um mercado habitacional, público e privado, de custos controlados; recuperação das cooperativas de habitação; reforma da lei das rendas, com maior equilíbrio entre deveres e direitos das partes e maior fiscalização da relação preço/qualidade; reforma fiscal que compatibilize taxas e isenções com as metas da política de habitação; combate à corrupção, ao tráfico de influências e à especulação imobiliária. Não tenhamos medo das palavras. É de especulação desenfreada que se trata, a uma escala financeira sem precedentes.

Este muito grave problema não tem sido ‘tratado’ pelos estudiosos?

Há hoje muito conhecimento académico, em Portugal e no mundo, sobre a crise da habitação e as disfunções do mercado imobiliário. Há figuras legais novas, como o “Termo Territorial Coletivo” (TTC), já em prática no Brasil, que separa direito de uso de direito de propriedade.

É urgente convocar esse conhecimento para as políticas de habitação. Neste como noutros domínios, promessas e boas intenções não chegam. Há muitas medidas que têm efeitos perversos. Apoios à procura, sem regulação, fazem subir os preços. E os estímulos à oferta têm de ser dirigidos ao mercado acessível, não ao segmento de luxo.

No livro sublinha, e logo do título decorre, que a luta pelo direito à habitação é inseparável da luta pela democracia. Porquê?

A democracia é inseparável dos direitos e liberdades que a Constituição consagrou. Quem não tem onde morar, quem paga mais do que pode por casas sem quaisquer condições, quem vive na angústia de ser despejado, quem não consegue ter autonomia habitacional, quem dorme na rua ou num carro, quem tem de abandonar os estudos por não ter “um quarto que seja seu”, é ferido na sua dignidade.

“É necessário combater todas as violações grosseiras do direito à habitação, exigir que o Estado cumpra os seus deveres e mobilizar a opinião e a energia das pessoas para esta causa”

É por isso que é necessário combater todas as violações grosseiras do direito à habitação, exigir que o Estado cumpra os seus deveres e mobilizar a opinião e a energia das pessoas para esta causa. Falhá-la aumenta o sofrimento e sensação de abandono de muitos e o descrédito do próprio regime democrático.

As gerações mais jovens estão a trazer à rua a desigualdade habitacional de que são alvo, organizando manifestações e mobilizando gente de todas as idades. É fundamental ampliar esta luta para recentrar as política públicas na habitação como um direito e não apenas como um mercado.

O que considera mais decisivo e urgente fazer neste momento, para ‘cumprir’ o direito à habitação?

Para além do que já referi, é urgente desfazer alguns mitos. Não, como já disse não faltam casas em Portugal, nem a prioridade é “construir mais”. O país já está construído, há recursos abandonados e há muitíssimas casas sem qualquer uso.

É preciso estudar as causas deste desperdício, reabilitar mais, dar nova vida às habitações existentes, inventando até novas formas de habitar, colaborativas e sustentáveis. Também não é prioritário facilitar cada vez mais terrenos, nomeadamente rurais, para construção nova.

O uso sustentável do solo tem de ser condicionado pela salvaguarda dos equilíbrios ambientais. Os recursos não são infinitos e a natureza vinga-se da sua predação sistemática.

Conte-nos alguma(s) ‘história(s)” do seu percurso de intervenção neste domínio…

O choque das cheias catastróficas de 1967 na região de Lisboa lançou-me na urgência da luta pela habitação. Na Constituinte, vi conceitos chave chegarem de onde menos se esperava.

Quem propôs, por exemplo, inscrever na Constituição que “O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar (…)” foi Adelino Amaro da Costa, do CDS. 36 anos depois, uma ministra desse partido promoveu a maior desregulação do arrendamento urbano, criando uma enorme vaga de despejos. Às vezes sinto-me uma espécie de “Canal História”, por ter presenciado todas estas voltas e reviravoltas.

Mas as histórias que mais me interessam são as dos muitos bairros em que a energia das pessoas me deu força para o sonho de melhorar as suas vidas. Projetos participativos que fazem muito com pouco, como o programa BIP-ZIP, que criei em Lisboa em 2011 e ainda continua, ou o Programa Bairros Saudáveis, que coordenei a nível nacional na pandemia e foi agora suspenso pelo governo, são um manancial de recordações que talvez um dia deixe escritas.

A parte “memorialística” do livro, fora do seu tema específico, é mínima, quando a Helena tem também um longo e rico percurso/experiência de intervenção em múltiplos domínios. Não devia escrever um livro sobre isso?…

O poder é um fenómeno passional, de cujo exercício não se sai incólume. Sófocles escreveu que para saber é preciso “queimar os pés no fogo ardente”. Não tenho saudades desses momentos, nem contas a ajustar com ninguém. A memória que me alimenta é a das lições que aprendi e deixei neste livro. O que gostaria mesmo de fazer era contribuir para a criação de um arquivo de memórias de tantos bairros pobres, alguns já demolidos, onde aprendi o valor da luta ombro a ombro pela dignidade de cada ser humano.