N o início do século XX, a Rua de São Roque, no casco histórico de Aveiro, passou a chamar-se Rua Antónia Rodrigues. Ainda lá está a placa justificativa da mudança toponímica: “A célebre Antónia de Aveiro que, fugindo de casa aos 15 anos, foi, vestida de homem, combater gloriosamente os Mouros em Mazagão, onde obrou prodígios de valor, conservando durante anos, com a sua virtude, o segredo do seu sexo.” Na sua obra Mulheres Aventureiras – Portuguesas nos Quatro Cantos do Mundo (ed. A Esfera dos Livros), a jornalista e investigadora Rosário Sá Coutinho considera a amazona aveirense “a nossa Joana d’Arc”, embora “sem o fervor religioso que movia a guerreira francesa de quatrocentos”.
Além da defesa da praça-forte, participava, destemida, nas “almogaverias”, ataques-surpresa e mortíferos às aldeias de mouros das redondezas
Esta heroína involuntária, como adiante se verá, nasceu em 1580. Tinham passado quase dois anos sobre a trágica derrota de Alcácer-Quibir, na qual morreu o rei D. Sebastião, solteiro e virgem. Na atribulada crise sucessória que se seguiu, o rei de Castela, Filipe II, seria designado rei de Portugal, sob o título de Filipe I.
Mas tais vicissitudes políticas por certo pouco importavam à família da menina de quem se fala, mergulhada em carências de toda a ordem. Sobretudo recorrendo ao cronista Duarte Nunes de Leão, contemporâneo de Antónia Rodrigues, e que a conheceu, Rosário Sá Coutinho conta que ela veio ao mundo num bairro pobre de pescadores, a profissão do pai, Simão Rodrigues. A mãe, Leonor Dias, “era dona de casa com muitos filhos, que as dificuldades da vida tornavam impossível criar”. Por isso decidiu “enviar Antónia para ir viver com uma filha que tinha em Lisboa”.
A pequena ficou então entregue aos cuidados da irmã mais velha, Inácia, que se casara com um carpinteiro naval e residia num cubículo, na capital. Como Duarte Nunes de Leão relatou, a “aspereza” e o “mau tratamento” de Inácia para com a irmã mais nova depressa surgiram. “À hora do almoço o marido da irmã entrava em casa vociferando impropérios”, replica Rosário Sá Coutinho. “Já vinha bêbedo, como de costume. Desancava a mulher e esta descarregava na pequena Antónia as suas frustrações.”
Até que um dia, “aproveitando uma ausência da irmã”, fugiu, com um punhado de moedas ganho em biscates e uma tesoura enferrujada. Na Baixa de Lisboa, o pequeno pecúlio chegou-lhe para comprar “um par de calças roçadas, uma camisa e um barrete”, conta a jornalista e investigadora. E, por “detrás de umas silvas”, deu-se a transformação: despiu o vestido que trazia, vestiu a roupa masculina e, com a tesoura enferrujada, desfez-se da melena loura, ajeitando o corte de cabelo ao dos grumetes.
Seguindo o seu plano, a adolescente dirigiu-se ao Cais da Ribeira, onde se deparou com um velho contramestre que escolhia grumetes para embarcar numa caravela. Identificou-se como António Rodrigues, inventou que já tinha servido numa nau chamada São Bartolomeu e, para seu espanto, foi contratada. Enquanto a Nossa Senhora do Socorro, a caravela em que embarcaria nesse mesmo dia, era carregada com trigo, soube pelo contramestre que o destino seria a praça-forte de Mazagão (atual El Jadida, em Marrocos). “Antónia nunca ouvira falar naquele lugar nem fazia ideia de onde ficava”, nota Rosário Sá Coutinho.
Expedita, não se atrapalhou no seu trabalho a bordo. “Ao fim do primeiro dia, parecia que tinha sido grumete a vida toda”, escreve aquela autora. Mas quando a embarcação fundeou em Setúbal, testemunhou, à noite, que o mestre e a tripulação desviavam parte do cereal para botes que se encostaram à caravela. Detetado o ilícito após a chegada à praça-forte, o “rapaz” confirmou-o às autoridades, identificando o mestre como autor do roubo. O governador, D. Diogo Lopes de Carvalho, entendeu, claro, que o grumete não podia voltar à caravela – “na primeira noite de mar” passaria a “pasto para peixes”. Ficaria como praça da guarnição de Mazagão.
MULHER DO POVO
“É assim, por uma reviravolta do destino, que Antónia Rodrigues se torna soldado” naquela praça-forte, conta Rosário Sá Coutinho. Cumpre bem todas as ordens que lhe são dadas e mostra-se exímia no manejo de armas. Impressionou de tal maneira o seu capitão que, ao fim de pouco mais de um ano, ascendeu à cavalaria, com direito a “soldo e mantimento”.
Além da defesa da praça-forte, participava, destemida, nas “almogaverias”, ataques-surpresa e mortíferos às aldeias de mouros das redondezas. Ou nas “entradas”, levadas a cabo para lhes roubar alimentos, cavalos, cabras e por aí adiante, e para a captura de mouros, depois vendidos como escravos ou resgatados pelos seus compatriotas a troco de cristãos ou de avultadas somas em dinheiro. “A estes desaforos”, escreve Rosário Sá Coutinho, “respondiam os mouros cercando a praça em grande número, armados até aos dentes, queimando as nossas colheitas e fazendo os portugueses passar um mau bocado”.
A jovem “acabou por resolver sozinha” os “inconvenientes da puberdade”, e era “entre os homens da companhia que tinha amigos, confidentes e mentores”, conta aquela autora. Tudo parecia correr bem – até que D. Beatriz, filha de um cavaleiro de Mazagão, se apaixonou perdidamente pelo sargento António Rodrigues e, na ausência de correspondência amorosa, caiu à cama doente, recusando alimentar-se. O governador coagiu-o então a casar-se com a jovem.
Sem alternativa, tinha de despir a carapaça com a qual teve artes, até ali, para enganar tudo e todos. Decidiu confessar a verdade ao padre de Mazagão, cujo espanto apenas podemos imaginar, e temeu o pior: “O castigo para tamanha ousadia podia muito bem ser a morte”, escreve Rosário Sá Coutinho. Mas os feitos militares em que se tinha destacado ao longo de cinco anos amenizaram a ira inicial das autoridades e levaram a que a urbe a amnistiasse. O governador só a obrigou a vestir-se como mulher.
Ainda em Mazagão, casar-se-ia, em 1603, com um oficial, de quem teve um filho. Em recompensa pelos seus feitos, o rei Filipe II (I de Portugal) concedeu-lhe uma tença (pensão) vitalícia de “dez mil reis” por ano e, já em Lisboa, recebeu-a em audiência, aceitando o pedido de que o filho da ex-cavaleira entrasse ao seu serviço.
Terá morrido em 1641 ou 1642, com 61 ou 62 anos, e a sua figura sofreu um engavetamento histórico, que a degradação da placa toponímica referida no início deste texto metaforiza. Autor do romance A Amazona Portuguesa (ed. Saída de Emergência), inspirado em Antónia Rodrigues, Mário Silva Carvalho dirá à VISÃO: “Era uma mulher do povo e, por isso, não faz parte das narrações da História.”
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