A 1 de novembro, assinalamos os 270 anos de um dos mais profundos traumas coletivos da História de Portugal: o terramoto de Lisboa, de 1755. Naquele dia, o solo tremeu, as igrejas desabaram, o mar invadiu a Baixa. Milhares morreram – muitos deles em oração, no dia de Todos os Santos. A cidade ardeu, e com ela ardeu uma certeza filosófica que dominava a Europa: a de que vivemos no “melhor dos mundos possíveis”.

François-Marie Arouet – mais conhecido por Voltaire – não estava cá. Nunca pôs os pés em Portugal. Mas, a milhares de quilómetros de distância, em Genebra, o filósofo sentiu o chão tremer sob os alicerces da razão europeia. E escreveu. Não um conto irónico, como Cândido, mas um poema filosófico cru, desesperado, dorido: Poème sur le désastre de Lisbonne (1756).

Hoje, em pleno século XXI, enquanto a democracia vacila sob o peso da desinformação, do ressentimento e do autoritarismo disfarçado de “vontade popular”, talvez seja tempo de reler não o Voltaire literato – mas o Voltaire filósofo. Aquele que se debruçou sobre a liberdade humana, os fundamentos da moral e a natureza da alma, não para oferecer consolos, mas para exigir lucidez.

Voltaire não era ateu no sentido estrito – acreditava num “grande relógio” do Universo, num Deus-Relojoeiro, como escreveu nas Cartas Filosóficas (1734). Mas rejeitava com veemência a ideia de que Deus intervém nos assuntos humanos, punindo ou recompensando. Para ele, a moral não vem do céu, mas da terra – da experiência, da empatia, da razão prática.

No Tratado de Metafísica (1734), Voltaire pergunta: se a alma é imaterial, como pode sofrer? Se Deus é bom, como permite o mal inocente? Questões que o terramoto de Lisboa tornou urgentes – e que hoje ressoam quando vemos crianças a morrer no Mediterrâneo ou hospitais a colapsar por falta de políticas públicas ou um genocídio descarado.

Como escreve o historiador português José Eduardo Franco, especialista em Iluminismo, “para Voltaire, o sofrimento inocente – como o das crianças esmagadas em Lisboa – era incompatível com a ideia de um Deus simultaneamente bom, justo e omnipotente”.

Muito se fala da defesa de Voltaire pela liberdade de expressão – e com razão. Mas raramente se sublinha que, para ele, a liberdade nunca era um direito absoluto desligado da responsabilidade moral. Numa carta de 1761, escreveu claramente: “Sou partidário de dizer toda a verdade, mas não de a dizer a toda a gente, nem em todos os tempos, nem em todos os lugares.”

Numa era em que a liberdade de expressão é invocada para espalhar ódio, desinformação ou teorias da conspiração, esta distinção é crucial. Voltaire não defendia o direito de ofender por ofender, mas o direito de questionar o poder – religioso, político, ideológico – em nome da justiça.

E hoje? Quando a terra treme novamente

O terramoto de 1755 foi geológico. Os nossos são políticos, sociais, ecológicos. A extrema-direita cresce não por acaso, mas como resposta emocional a um mundo que parece descontrolado – tal como, no século XVIII, o fanatismo religioso floresceu após o desastre lisboeta.

Voltaire viu isso com clareza: o medo gera fanatismo; a incerteza alimenta o desejo de certezas absolutas. Mas, em vez de ceder a elas, propôs outra via: a do trabalho paciente da razão, da crítica, da reforma gradual.

Numa carta de 1765, escreveu: “O melhor remédio contra a superstição é a filosofia.” E por “filosofia” entendia não o academicismo, mas o exercício constante de pensar por si mesmo, de duvidar das narrativas fáceis, de defender os perseguidos – como fez, de forma incansável, no caso Calas, em que salvou um protestante injustamente condenado à morte na França católica.

Cultivar o jardim – mesmo quando o mundo arde

É célebre a frase final de Cândido: Il faut cultiver notre jardin. (“É preciso cultivar o nosso jardim.”) Muitos a interpretam como um recuo individualista. Mas, como mostra o historiador Jonathan Israel, trata-se antes de um apelo à ação concreta: não esperar por sistemas perfeitos, mas agir onde se está, com decência e responsabilidade.

Em tempos de polarização, de redes sociais que amplificam o pior de nós, cultivar o jardim significa: escutar antes de julgar; defender instituições democráticas, mesmo quando são imperfeitas; recusar a lógica do “nós contra eles”; lembrar que a moral começa onde termina o discurso de ódio.

Voltaire nunca esteve em Lisboa. Mas, se voltasse hoje, talvez nos dissesse, com ironia e tristeza: “Vocês ainda estão à procura de um salvador? Enquanto isso, o jardim secou.”

Um apelo aos guardiões da razão

Neste ano em que se cumprem 270 anos sobre o terramoto de Lisboa, e em que os discursos de ódio se disfarçam de patriotismo, a História interpela-nos com urgência. Os intelectuais, os académicos, os estudiosos, os artistas, cantores, poetas, todos, têm uma responsabilidade cívica inadiável. Não basta publicar em revistas especializadas ou ensinar nas universidades. É preciso descer à praça pública, ocupar os debates televisivos, escrever para o grande público, explicar com clareza por que a democracia não é um dado adquirido, mas um frágil jardim que exige rega diária. Voltaire não se calou perante a injustiça; não se escondeu na torre de marfim. 

Hoje, em Portugal – bastião democrático ainda resiliente, mas sob pressão –, os herdeiros do Iluminismo devem seguir o seu exemplo: iluminar, questionar, resistir com palavras e com atos.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Uma épica digressão europeia de celebração do seu 20º aniversário trouxe a banda australiana a Portugal.

Amplamente reconhecidos pelas suas atuações enérgicas e produções espetaculares, os Parkway Drive apostaram em elevar a fasquia, prometendo superar todas as expectativas neste périplo pela Europa, proporcionando aos fãs uma experiência inesquecível e imersiva como nunca viram antes.

Ao longo das últimas duas décadas, os Parkway Drive transformaram-se paulatinamente numa das mais famosas e aplaudidas propostas saídas do movimento metalcore. Com uma trajetória marcada por oito álbuns aclamados pela crítica e comercialmente muitíssimo bem-sucedidos, seis dos quais atingiram a marca de Ouro na Austrália, três documentários, um disco ao vivo e centenas de atuações ao vivo pelo mundo, os músicos liderados por Winston McCall são hoje vistos como porta-estandartes de um fenómeno intemporal, que só tem ganho mais força, solidez e devoção com o passar dos anos.

Oriundos de Byron Bay, uma das mais idílicas cidades australianas à beira-mar, os Parkway Drive saíram do seu ambiente sereno com uma mistura volátil de riffs metal intrincados, breakdowns do tamanho de um mamute e a tensão emocional característica do hardcore. A banda começou a dar que falar com os álbuns “Horizons” e “Deep Blue”, de 2007 e 2010, respetivamente, tendo depois invadido o mercado internacional com “Atlas”, de 2012. “IRE”, de 2015, mostrou-os a explorarem uma sensibilidade ainda mais melódica, mas não menos agressiva, que aproximaram da perfeição nos seus dois lançamentos mais recentes, “Reverence” e “Darker Still”.

“O Coliseu é nosso!”, gritava o povo da cidade, há 30 anos, enchendo a Rua Passos Manuel de alegria e orgulho. Na noite de quinta-feira, o Coliseu do Porto encheu-se novamente, 30 anos depois, para celebrar três décadas de uma das maiores vitórias da cidade Invicta: ter mantido o Coliseu nas mãos do povo, e não de uma religião.

A noite começou em grande com a apresentação do livro O Coliseu é Nosso, de Valdemar Cruz, jornalista que viveu intensamente aquele momento histórico há 30 anos. Seguiu-se um concerto memorável que reuniu artistas e músicos que marcaram essa época: Júlio Magalhães, Carlos Tinoco, com o poema emocionante de Paulo Abrunhosa, o Orfeão Universitário do Porto, António Pinho Vargas, GNR, Óscar Branco, as inesquecíveis Amarguinhas, Ban, Sérgio Godinho, Filipe Raposo — e a grande festa terminou em apoteose com Pedro Abrunhosa.

A ministra da Cultura marcou presença e entregou a Medalha de Mérito Cultural, num Coliseu completamente esgotado e vibrante. Também estiveram presentes o antigo presidente da Câmara Fernando Gomes e a vereadora da Cultura da época, Manuela Melo — figuras essenciais nessa luta. Entre os convidados, destacaram-se ainda Manuel Pizarro, o futuro presidente da Câmara, Pedro Duarte, várias personalidades da cidade e Paulo Azevedo, ex-CEO da Sonae, que também se rendeu à dança.

Foi uma noite para recordar, cheia de emoção, música e um sentimento de orgulho portuense que ecoou pelas paredes do Coliseu. Porque sim, o Coliseu é nosso!

“O senhor não me manda calar!” — foi com esta frase que José Miguel Prata Roque, jurista e antigo Secretário de Estado, abandonou em direto o estúdio da SIC Notícias, após uma troca acesa de insultos com o deputado do Chega, Rodrigo Taxa. O episódio, ocorrido a 29 de outubro de 2025, tornou-se viral e simboliza o estado preocupante do debate político em Portugal. O que deveria ser um confronto de ideias transformou-se num espetáculo de agressividade, desrespeito e teatralização, onde o insulto substitui o argumento e a vaidade eclipsa o serviço público.

O narcisismo no poder não é uma metáfora. É uma realidade política que exige vigilância. Esta é a premissa central do livro “Les Narcisse” (Éditions La Découverte) da psiquiatra e psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen, que analisa com precisão os traços psicológicos que caracterizam muitos dos líderes contemporâneos: egocentrismo, manipulação, ausência de empatia e uma tendência para se colocarem acima da lei e das instituições.

Vivemos tempos em que o espaço público se transforma num palco de vaidades. O Parlamento, outrora símbolo do debate democrático, é frequentemente reduzido a um cenário de insultos, teatralizações e afirmações provocatórias. A política, em vez de ser um exercício de serviço à comunidade, torna-se um instrumento de afirmação pessoal, onde o ego se sobrepõe ao interesse coletivo.

Hirigoyen alerta para o perigo de líderes narcisistas que, ao invés de promoverem o bem comum, cultivam a divisão, alimentam o ressentimento e exploram medos. Estes líderes não toleram a crítica, não reconhecem os próprios erros e constroem uma imagem de infalibilidade que os torna perigosamente impermeáveis à realidade. A sua força reside na capacidade de seduzir, de criar uma narrativa onde se apresentam como únicos salvadores de uma sociedade em crise.

Em Portugal, como noutros países, assistimos à ascensão de figuras políticas que se encaixam neste perfil. A ignorância é muitas vezes disfarçada de autenticidade, a incompetência é camuflada por discursos inflamados e a irresponsabilidade é normalizada como “coragem política”. Esta tendência não é apenas preocupante do ponto de vista ético — é uma ameaça à própria estrutura democrática.

No meu ensaio publicado na Revista Athena.pt – Edição nº 33, de Setembro de 2025 – intitulado “A Sociedade do Espelho Invertido”, proponho uma leitura crítica da realidade contemporânea através daquilo que denominei como Teoria do Espelho Invertido. Vivemos numa sociedade onde “tudo é apresentado ao contrário — como se olhássemos para um espelho que não apenas reflete, mas distorce, inverte, engana”. Esta inversão simbólica aplica-se também à política: o que se apresenta como autenticidade pode esconder manipulação; o que se proclama como liberdade pode ser uma nova forma de aprisionamento ideológico.

O narcisismo político manifesta-se também na forma como certos líderes se relacionam com os media e com as redes sociais. A exposição constante, a necessidade de validação pública e a dramatização de cada gesto ou palavra revelam uma dependência do olhar alheio. O político narcisista não governa — representa. E representa-se a si próprio, numa encenação contínua onde o conteúdo é secundário face à forma. Esta teatralização da política contribui para a erosão da confiança pública e para a desvalorização do debate racional.

No ensaio, refiro que “as redes sociais são o reflexo invertido da amizade verdadeira”, pois mostram uma imagem de vida social intensa, mas escondem frequentemente solidão e ansiedade. Esta lógica aplica-se também à política digitalizada, onde o líder narcisista constrói uma persona virtual que substitui o compromisso real com os cidadãos. A política torna-se espetáculo, e o espetáculo, uma forma de alienação.

Outro traço preocupante é a tendência para o revisionismo histórico e a negação da complexidade. O líder narcisista simplifica o mundo em dicotomias: nós contra eles, bem contra mal, povo contra elite. Esta simplificação é emocionalmente eficaz, mas intelectualmente desonesta. Ao rejeitar a nuance, o diálogo e o compromisso, abre-se caminho para formas de autoritarismo disfarçado de autenticidade. Hirigoyen sublinha que o narcisismo político não é apenas uma questão de personalidade — é uma estratégia de poder.

A cultura política que tolera e até celebra este tipo de liderança revela uma fragilidade democrática. Quando os cidadãos, os jovens, se habituam a ver o insulto como argumento, a arrogância como força e a ignorância como espontaneidade, o espaço público degrada-se. A democracia exige maturidade, exige líderes que saibam escutar, ponderar e decidir com responsabilidade. O narcisismo, pelo contrário, alimenta-se da impulsividade, da vaidade e da ausência de limites.

A sociedade portuguesa precisa de olhar para este espelho partido e perguntar: que tipo de líderes queremos? Que tipo de país estamos a construir? E até que ponto estamos dispostos a tolerar a ignorância, a incompetência e o narcisismo como formas legítimas de poder? A resposta não está apenas nas urnas, mas na forma como educamos, discutimos e exigimos responsabilidade. Porque quando o poder se transforma num espelho quebrado, o reflexo que vemos já não é o da democracia — é o da sua sombra.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Hoje, a grande questão quando falamos de inteligência artificial (IA) já não é saber se ela vai transformar os negócios, mas sim até que ponto. Até há pouco tempo, em qualquer setor — e particularmente em tecnologia —, a capacidade de tomar decisões estruturadas era um dos maiores desafios para as equipas de liderança. Isto acontecia porque a vasta quantidade de informação disponível exigia uma forte capacidade de organização e análise. Hoje, a IA pode ajudar a fazê-lo de forma mais clara e eficaz. Mas como?

Antes de responder a essa pergunta e perceber o impacto estrutural da IA no trabalho das organizações tecnológicas, é importante reconhecer que, antes da introdução da IA e de outras tecnologias, os profissionais de tecnologia viam grande parte do seu tempo consumido por tarefas repetitivas, como o mapear necessidades, analisar dados dispersos e testar hipóteses. Agora, na era da IA, esse processo tornou-se muito mais rápido, com algoritmos capazes de consolidar informação de múltiplas fontes, sugerir possibilidades e até antecipar desafios. Isto permite às equipas focarem-se mais na criatividade, na inovação e na definição estratégica.

Mas a clareza gerada pela IA não se limita à análise retrospetiva; o verdadeiro valor reside nas suas capacidades preditivas. Na verdade, ao utilizar IA, torna-se possível simular diferentes cenários com base em dados históricos e variáveis externas, o que proporciona uma vantagem competitiva no desenvolvimento de soluções. É essencial, contudo, que este processo seja sempre acompanhado por supervisão humana: a IA pode sugerir um caminho, mas cabe às pessoas validar se esse percurso faz sentido no contexto da empresa.

Outro benefício da integração da IA no processo de decisão é a redução de riscos na implementação de novas ferramentas de trabalho, cuja complexidade é frequentemente subestimada. Na verdade, algumas plataformas assistidas por IA permitem uma integração gradual com os sistemas existentes, evitando ruturas abruptas. Mas, para que esta visão se concretize, a IA deve ser encarada como um verdadeiro colega de equipa. Tal como num processo de cocriação, a colaboração entre humanos e máquinas deve ser fluida. Enquanto os algoritmos tratam do que é mais repetitivo e analítico, os profissionais devem dedicar-se às tarefas que exigem maior criatividade e assumir a responsabilidade pelas decisões finais. Esse equilíbrio transforma a tecnologia num catalisador de confiança.

Em última análise, as melhores decisões resultam da capacidade dos profissionais de fazer as melhores perguntas e pedidos às ferramentas ao seu dispor. A IA ajuda a organizar e a propor possíveis respostas, mas continua a ser responsabilidade das lideranças e das equipas decidir o que perguntar, como interpretar os resultados e que valores devem orientar cada escolha. É nesta interação que reside o verdadeiro potencial transformador: uma colaboração que respeita tanto os limites humanos como os tecnológicos, ampliando o alcance de ambos.

A IA tem o poder de tornar o processo de decisão mais rápido, mais informado e menos arriscado. Mas a chave para o sucesso depende de um trabalho conjunto entre humanos e ferramentas, de forma crítica, transparente e estratégica. As organizações que souberem potenciar esta colaboração estarão preparadas para enfrentar desafios, construindo soluções com maior confiança para o futuro.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Tenho 8 anos na fotografia de criança, feita pelo António Charrua. Não se percebe bem, mas tenho uma pasta de creme nívea no nariz. O porquê é simples, tinha-me escapado de casa sem o meu bioco.

Passei a infância dividida entre a Linha e o Algarve, para onde se imigrava de junho a outubro, indo “para baixo”. “Para cima” vinha-se até meio de dezembro, regressando para baixo por um mês, depois para cima até à Páscoa, e novamente para baixo. Isto nos inícios dos anos 60 do século passado.

A minha roupa lá em baixo consistia numas tangas feitas com restos de vestidos da minha mãe, com que vivia na praia às horas em que o sol era manso. O resto do tempo, mandavam-me embiocar. E não saía da penumbra da casa sem o bioco.

Este era fresco, feito a partir de tecido branco usado para fazer lençóis, com mangas largas e compridas a tapar as mãos, o capuz a cobrir os olhos e a sombrear o nariz.

Assim era livre de ir campos fora aos figos, escarafunchar a terra em busca de bicharocos, e disparar de bicicleta carreiros e arribas fora, molas da roupa a apertar o bioco não fossem as abas enrodilhar-se nos pedais.

A ideia do bioco surgira ao meu pai ao, não me encontrando à vista de casa, se ter posto a caminho pelo carreiro que descia até à ponta poente da praia, a meio do qual ficava a casa do Manel das Turras. 

O Manel, e a Maria do Manel – como era conhecida – tinham uma mão-cheia de filhos, sendo estas as únicas crianças mais próximas dos arredores da nossa casa, e fazendo o Manel das Turras uns biscates como carpinteiro para o meu pai, um dia trouxera uma das filhas consigo e a Aline passara a minha amiga do peito “lá em baixo”.

E nesse dia em que me escapei sem dizer água vai, o meu pai foi deparar com a Maria do Manel embiocada da cabeça aos pés, a varejar as alfarrobeiras com uma cana. 

O varejo das alfarrobeiras cabia normalmente aos homens, mas a Maria valia tanto quanto muitos homens, o Manel perdia as noites à lula e, lá a maneira deles, cuidavam bem um do outro. 

A colheita da alfarroba começava de manhã cedo, para se encher as sacas de serrapilheira que seguiam de carroça até à entrada de Albufeira, onde a fábrica que as fazia em farinha lançava estrada acima um cheiro, para mim pestilento, que se estendia por quilómetros antes da curva da descida para a vila e ali ficava o verão todo, estarrecido pelo peso do calor em volta.

– Ó Maria, isso não lhe faz calor?

– Não, senhor arquiteto, ele não entra, nem sai, anda aqui comigo desde sempre… 

À falta de biocos, as mulheres que trabalhavam de sol a sol embiocavam cabeça e ombros em lenços ou xailes, e ainda se enchapelavam, abas largas a cobrir a cara.

O que havia nessa altura de mulheres embiocadas, Algarve fora, eram muitas.

O que havia nessa altura de coisas que eu ouvia em casa e nunca por nunca poderia repetir na rua eram muitas.

A pasta de creme Nívea tapa a única vez que apanhei um escaldão. Tinha saído sem bioco.

Sempre houve biocos no Algarve no tempo em que só lá havia algarvios, alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras, malacuecos, carroças, e burros que nos passeavam na praia uma vez vendidos os malacuecos, e biocos. E coisas que não se podia dizer aos quatro ventos, senão éramos presos.

Mas de bioco éramos livres de andar.

Agora, obcecados que andamos com a história das burcas, vem-me ainda à memória a primeira vez que ouvi a minha mãe soltar um impropério, que não fosse o seu clássico “sacré nom d’un chien”.

Estávamos já uns anos à frente da minha infância “lá em baixo”, agora primavera de 1970, eu em casa nas férias de Páscoa, quando a senhora regressa a meio da manhã.

– Merde, merde, merde…. E atira-se para o sofá, descalça as sandálias, iça as pernas e fica estirada a olhar o teto.

– Não me digas nada, isto já passa, não tens coisas para ler, pintar, o que seja para te entreter?

Desapareci. Ao almoço, que se almoçava em casa nesses tempos, descose-se.

– O Azeredo Perdigão apanhou-me à entrada na receção e à frente de todos mandou-me embora, que só volte amanhã, vestida condignamente.

Nunca por nunca tinha pessoa alguma achado que a minha mãe estivesse vestida sem ser condignamente.

A razão da irritação do presidente da Gulbenkian era a minha mãe ter-se apresentado para trabalhar com um tailleur de calças e casaco amarelo-mostarda, e uma camisa branca abotoada até aos colarinhos longos.

Uma senhora, que fosse uma senhora, não vestia calças.

– Que me lembre, só passei vergonha parecida quando o cabo de mar de Albufeira me levou para a esquadra, com o teu pai atrás, porque me apanhou na praia, bem antes de tu nasceres, sem a alça do fato de banho ao pescoço.

– E porque não a puseste?

– Não a tinha comigo! Não me servia para nada senão para deixar uma tira branca na pele. E que mal fazia a alguém eu não ter aquela tira?

Já com público a assistir – chegada a novidade ao Café Bailote, lugar de estada, fora das horas de calor, dos poucos estrangeiros todos vagamente artistas, habitués da Albufeira dos anos 50, correu tudo à esquadra – pagou, frente ao público, a multa por falta de decoro em público.  

Este arrazoado lembra que já muitas indumentárias se viram proibidas, ou exigidas, pelas mais variadas razões, ao longo de todos os tempos. E o correr dos tempos também veio trocar as voltas aos exigidos, ou proibidos.

E chegamos ao busílis das duas questões que me lançaram para anos atrás no tempo, perdida entre memórias de idades diferentes.

Acabou de ser aprovada pelo nosso Parlamento, a proibição da utilização da burca em espaços públicos.

Em causa a “utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto”, como é o caso da burca. Impedindo também o ato de “forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião”.

Ora, os trabalhos do nosso círculo parlamentar, com trabalhadores pagos por todos nós, têm ultimamente sido interrompidos, por explosões de uma linguagem de fazer corar carroceiros, adotada por ilustres eleitos frente ao restante plenário, dirigida a eleitos em particular, sempre acompanhada de trejeitos faciais e linguagem gestual, que me parecem de uma enorme falta de decoro em público. 

Para quando a proibição de linguagem ofensiva, e ameaçadora, impedindo também o ato de forçar alguém a desviar o rosto no Parlamento por motivos de género ou vergonha? **

E saber-se-á lá – que curiosa e rica esta nossa língua tão prestável a barbaridades quanto a ingenuidades – e saber-se-á lá, quando se entrará a talho de foice para recompor uma democracia perdida.    

** Constituem deveres dos Deputados: e) Respeitar a dignidade da Assembleia da República e dos Deputados; f) Observar as disposições do presente Estatuto e demais legislação conexa, do Regimento da Assembleia da República e demais deliberações desta que lhes sejam aplicáveis, bem como contribuir para as boas práticas parlamentares em conformidade com o Código de Conduta.

Não sei se o leitor se deu conta, mas estamos em plena campanha eleitoral. A que interessa: a do Benfica. A segunda volta é já dia 8 de Novembro e, como em tudo o que realmente importa, há uma ferida a sangrar. Uma ferida antiga, que não devia doer só a nós, os do Benfica, mas a todos os portugueses. Porque é congénita. É visceral. É uma fenda que nos atravessa a todos — desde o Portugal das Sesmarias ao da organização feudal — e que, de tempos a tempos, reabre expondo o seu estrago, dividindo-nos em dois.

As partes que se opõem conforme o tempo e o espaço vão variando ligeiramente nas sensibilidades e nas coordenadas, mas, no essencial, mantêm-se mais ou menos constantes. Falo do país de D. Miguel e do país dos liberais. Do país republicano e das incursões monárquicas de 1912. Dos bandos do PREC e das mocas de Rio Maior. Falo, hoje, do país do Chega e do país da Iniciativa Liberal. Um Portugal cujas matizes, cores e ideias podem ir variando, mas cuja guerra tem sido sempre a mesma: uma tensão antiga entre o campo, que encara a mudança como ameaça à ordem natural das coisas, e a cidade das classes letradas, que vê a tradição e o costume como obstáculos ao avanço civilizacional.

Nestas eleições do Benfica, e no duelo Rui Costa/João Noronha Lopes, tem-se assistido a este embate de raízes fundas na genealogia das eras. De um lado, o país legitimista, da fidelidade e da linhagem: Rui Costa, o herdeiro, símbolo da continuidade, o número 10 que “é dos nossos”. Do outro, o país liberal, do contrato e da reforma: João Noronha Lopes, o estrangeirado, do mérito e do método, mensageiro da promessa de uma nova ordem.

Só que ao contrário dos fortes, campos e ruas de outros tempos, a batalha de hoje trava-se — exacto, adivinhou — nas redes sociais. E eu, que tinha jurado nunca mais lá pôr os pés, entusiasmado que ando com esta disputa — Deus me perdoe! — não tenho feito mais nada desta vida.

E o que se vê então nessas cloacas digitais? Bem. Vê-se o que já se tinha visto, com a diferença de caber no bolso. Por um lado, há o X, o território de João Noronha Lopes: a Lisboa esclarecida, mais nova, mais escolarizada, a burguesia digital que se vê como razoável, que acredita que saber o método justo equivale a ser moralmente justo. Depois, há o Facebook, onde domina Rui Costa: o resto do País, onde as pessoas são mais velhas, mais pobres, e reconhecem nele a segurança do menino que, aos oito anos, começou a jogar de encarnado. É gente que vive o Benfica como se vive em família: sem planos estratégicos, mas com amor. Vê o Preço Certo e comenta em maiúsculas, como quem berra da bancada, movida por fé e instinto. Tudo certo. Tudo errado. Todos irmãos. E um potencial infinito de desentendimento. Só que — convenhamos — a sociologia não vê pessoas, só detecta padrões.

É nesse vazio que prosperam as empresas de comunicação: alimentam a guerra como quem dá de comer ao diabo. Também no século XIX havia industriais liberais a pagar a frades legitimistas para escrever panfletos a seu favor. Hoje é igual: há quem difame conforme o soldo e o alvo. A João Noronha Lopes cola-se o rótulo “Vale e Azevedo 2.0”; a Rui Costa chamam-lhe “banana”, “impreparado”, “Ruie”. Nada de novo. D. Miguel era o “monstro de Alcobaça” e, como Noronha, também não merecia. Eram assim os avençados de outrora, de batina e pena de ganso, a explorar a credulidade e as paixões das almas simples.

E então, acicatados pela virulência artificial, dos tais bots, das tais contas falsas arranjadas pelos tais profissionais da infâmia, no esgoto das redes sociais, andam todos às cabeçadas.

O problema, amigos, não está no campo ou na cidade, nem na esquerda ou na direita, no vermelho velho ou no vermelho novo. Está antes na incapacidade moral e interior de escutar o outro, de dominar os próprios ressentimentos, de agir com carácter.

As leituras sociológicas apenas descrevem os sintomas, não o sentido moral do que está em jogo. Porque o mal não é um “problema social”, é uma coisa que trazemos connosco. E, em última análise, é o temperamento dos corações que tem a palavra final em qualquer disputa. A questão já não é “quem tem razão”, mas quem tem alma. E se ela está em condições.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

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Durante esta semana, teve início do julgamento do processo que ficou conhecido como “Operação Lex”. Não há como negar a importância de que este processo se reveste no panorama jurídico português, constituindo também um relevante teste à robustez do nosso Estado de Direito. Com efeito, e tal como sucede com todos os processos em que estejam em causa titulares ou ex-titulares de órgãos de soberania, servidores do Estado ou responsáveis por instituições relevantes para o seu funcionamento, sempre que um tribunal é chamado a apurar eventuais responsabilidades criminais por factos cometidos no exercício de funções, há sempre um natural sobressalto na perceção pública a que se impõe dar resposta com clareza e transparência, tal como exigido numa sociedade moderna e verdadeiramente democrática.

Contudo, sem prejuízo de algumas perigosas generalizações e do normal interesse mediático que envolve este processo, tal como vai sucedendo com outros chamados “megaprocessos”, a verdade é que o mesmo se apresenta como absolutamente inédito e excecional na história judicial portuguesa. Essa excecionalidade decorre, desde logo, da qualidade dos envolvidos que, em parte, serviam à data dos factos como juízes desembargadores, sendo que este processo, sem deixar de causar forte apreensão, beliscando a confiança pública na justiça, não deixa, em contraponto, de se afirmar como um exemplo de que a mesma, dentro de todas as suas contingências e dificuldades, não deixa de funcionar.

Com efeito, apesar de chegarmos a julgamento volvidos quase oitos anos, o que, manifestamente, se afigura um prazo longo motivado pela complexidade da investigação e pela intermediação de uma fase de instrução, a verdade é que a inquietude que o mesmo suscita, desde logo por existirem acusados que exerceram funções judiciais, não pode deixar de legitimar o contraponto de tranquilidade que representa a sensação de que o sistema de justiça foi efetivamente capaz de detetar, investigar e agir.

Dito isto, e porque por vezes se verifica alguma estranheza pelo facto do julgamento decorrer no Supremo Tribunal de Justiça – em regra um tribunal de recurso –, cumpre explicar que tal circunstância decorre diretamente da lei. De facto, prevê o Estatuto dos Magistrados Judiciais, em norma que visa o estabelecimento de maiores garantias de imparcialidade e distanciamento, que o foro competente para o inquérito, a instrução e o julgamento dos magistrados judiciais por infração penal, bem como para os recursos em matéria contraordenacional, é o tribunal de categoria imediatamente superior àquela em que se encontra colocado o magistrado, sendo para os juízes do Supremo Tribunal de Justiça este último tribunal. Assim, pese embora os antigos juízes envolvidos no processo já não exerçam funções à data de hoje, seja por jubilação, seja por força de decisões proferidas pelo Conselho Superior da Magistratura em processo disciplinar, a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça deve julgar os factos como se de um tribunal de primeira instância se tratasse.

Este caráter singular confere à “Operação Lex” uma dimensão especial em que um coletivo de Conselheiros terá a seu cargo a condução dos trabalhos de julgamento, ouvindo as testemunhas, analisando documentos e demais provas para, no final, tomar uma decisão fundamentada de absolvição ou condenação. Trata-se, inegavelmente, de um momento em que o próprio sistema judicial se vê colocado sob escrutínio público e em que a justiça é chamada a julgar factos que, em parte, se relacionam consigo mesma.

Esta raridade, porém, não deve ser vista como sinal de fragilidade, mas antes como demonstração de maturidade institucional. O simples facto termos chegado à fase de julgamento é um sinal de que existem mecanismos internos de controlo e de que ninguém, independentemente da sua função ou estatuto, está acima da lei. É um sinal de que também os juízes podem ser objeto de escrutínio em processos de natureza penal, aí podendo exercer, como todos os cidadãos, os seus direitos e beneficiando das mesmas garantias legais e constitucionais.

Afigura-se importante que o acompanhamento deste processo se faça de forma exemplar e sem mácula, pois que a sua transparência e a sua compreensão serão sempre as melhores garantias para salvaguarda da confiança pública nas instituições e na justiça em particular, assim se demonstrando que esta não se fecha sobre si própria, mas antes se dispõe a ser escrutinada e ao dever de fundamentar e esclarecer.

Num momento em que, um pouco por todo o mundo, crescem fenómenos que fomentam e se alimentam da perceção de descrédito público das instituições, afigura-se particularmente importante que este julgamento decorra com o máximo de rigor, mas também de serenidade e de clareza. A justiça não se mede apenas pelas decisões que profere, mas pela forma como os processos decorrem e pelo modo como são compreendidos pela sociedade. Este, como todos os julgamentos, não pode prescindir do absoluto respeito pelos direitos dos arguidos, pelo princípio do contraditório e pela presunção de inocência, sem cedência a pressões mediáticas ou externas de qualquer tipo.

Ao mesmo tempo, é fundamental que se evite a lentidão processual que tantas vezes mina a credibilidade dos tribunais. O equilíbrio entre o rigor jurídico e a celeridade processual é aqui decisivo: cada decisão deve ser tomada com base em provas sólidas e devidamente fundamentadas, para que o resultado — seja condenatório ou absolutório — seja percebido pela sociedade como justo e verdadeiramente imparcial.

A Justiça é um pilar essencial de qualquer democracia e deve responder com prontidão e capacidade de comunicação em todas as circunstâncias. Muito mais do que o resultado da decisão final, o modo como este processo vai decorrer servirá, inegavelmente, como um barómetro para aferir da credibilidade do sistema e da forma como a justiça é capaz de alcançar resultados que sejam compreensíveis para o cidadão comum. Se o julgamento for exemplar, transparente e justo, tal será um sinal de vitalidade institucional e de confiança renovada. Se, pelo contrário, fosse conduzido de forma obscura ou complacente, o dano à imagem da justiça seria incalculável.

Por tudo isto, o início do julgamento da “Operação Lex” não é apenas um episódio mediático, mas um marco no percurso da democracia portuguesa e de afirmação do princípio da igualdade perante a lei enquanto pedra de toque do Estado de Direito. De igual modo, é um marco na afirmação inequívoca do princípio da independência judicial no ato de julgar, independentemente da qualidade dos intervenientes e do sentido para onde a decisão deverá pender após análise imparcial das provas.

No final, mais importante ainda do que o desfecho concreto do caso será o exemplo que o processo deixará. Se aos olhos da comunidade estivermos perante um caso rigor, serenidade, celeridade, transparência e justiça, então todos assistiremos a uma vitória da confiança nas instituições e na própria democracia como valor maior numa sociedade moderna.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Foram ontem divulgados pelo INE os dados preliminares sobre a evolução da economia no 3º trimestre de 2025. As notícias da imprensa económica são de espanto perante a superação das expectativas, com um crescimento em cadeia de 0,8% relativamente ao trimestre anterior e a aceleração da variação homóloga para 2,4% relativamente a 2024.

Tomado de entusiasmo na Assembleia da República, o ministro Castro Almeida veio dizer que estes resultados provam que o crescimento anual irá certamente superar os 2%, contra todas as desconfianças de analistas domésticos e das instituições internacionais, e que o pedido de reprogramação do PRR até iria antecipar metas apontadas só para o próximo ano.

Uma análise mais cuidada do destaque do INE obriga a moderar o júbilo. Digamos que os dados sobre crescimento económico confirmam os resultados das eleições autárquicas e as previsões científicas de Castro Almeida na Universidade de Verão da JSD de que “enquanto tiverem os bolsos cheios as pessoas continuam a votar no PSD”.

Basicamente, o que sucedeu no 3º trimestre deste ano é a repetição do crescimento pontual e artificial da economia devido ao aumento do consumo interno verificado no último trimestre do ano passado.

Recorda-se que, no ano passado, a conjugação do pagamento dos retroativos da redução do IRS com o bónus de outubro dado aos reformados, acompanhando com o efeito das despesas familiares da época de Natal, levou a um surpreendente crescimento em cadeia no final do ano, que passou de 0,2% para 1,2% no último trimestre, mas que foi seguido de uma contração da economia no início de 2025.

Mas, mesmo com toda a ginástica político-orçamental, o crescimento anual em 2024 foi inferior ao de 2023.

Este ano as eleições eram no início de outubro, por isso a operação foi antecipada de forma sábia, com novo pagamento de retroativos de IRS em agosto e setembro e novo bónus a pensionistas em setembro, como a devida ajudinha à vitória eleitoral de outubro.

Os resultados foram igualmente suportados pela nova superação de resultados das receitas turísticas no pico do verão apesar de, como diz o INE, as exportações de bens não acompanharem o aumento das importações e o investimento estar com uma execução medíocre relativamente ao previsto.

A campanha de Montenegro em 2024 anunciava trepidantes níveis de crescimento acima de 3%, mas mesmo com estes fogachos de economia eleitoral os resultados voltarão este ano a ser inferiores aos dos anos pós-pandemia de António Costa. E, já agora, sempre abaixo da taxa de crescimento da vizinha Espanha, nosso principal parceiro económico do qual nos continuamos a afastar.

Pior ainda, como revelaram Luís Montenegro e Miranda Sarmento durante o debate orçamental, e o Ministério da Saúde já está a executar, a festa acabou nem que seja com instruções para reduzir as despesas com cuidados de saúde programados.

Os impactos das guerras tarifárias promovidas pelo mercador de Washington irão fazer-se sentir de forma crescente e a guerra tecnológica Estados Unidos-China já colocou em lay-off prolongado 2500 trabalhadores em Braga.

Quanto ao que depende de nós, como a aceleração das obras públicas ou da construção de habitação, vão começar a sentir-se os danos causados pelo efeito devastador para a economia da política migratória motivada por uma cruzada ideológica liderada pelo Chega, mas que tem como porta-voz no Governo o trauliteiro Leitão Amaro.

Ainda esta semana foram revelados números do emprego que indicam a maior população empregada de sempre, quase 5,3 milhões de trabalhadores, o que só é possível com o recurso intensivo a mão-de-obra estrangeira que a partir de agora terá um acesso ao mercado de trabalho bastante mais problemático.

A conjugação da entrada em vigor da nova lei de estrangeiros e da conclusão até final do ano do processo de regularização dos cerca de 300 mil trabalhadores que, face ao bloqueio do sistema de acolhimento e integração na transição do SEF para a AIMA, recorreram à demonizada “manifestação de interesse”, terá provavelmente um efeito brusco de criação de uma crise de oferta no mercado de trabalho e de travão da economia.

Será eventualmente esta a razão para o próprio Governo duvidar da evolução positiva das receitas da Segurança Social, invocada como fundamento para as medidas de justiça de aumento das pensões mais baixas propostas por José Luís Carneiro.

Com o equilíbrio orçamental em risco, a economia em abrandamento e o mercado de trabalho à beira da convulsão, os resultados lisonjeiros da economia no trimestre pré-eleitoral são o canto de cisne do estado de graça do modelo de gestão política da economia por Montenegro.

Por ser o rosto da divulgação pública da estratégia seguida, e quem estará na primeira linha da gestão das dificuldades que se avizinham, o prémio Laranja sem Sumo de hoje vai para a doutrina económica de Castro Almeida.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

‘‘Nessa altura, quando vejo o movimento dele, a agressividade, aquela atitude astuta e passivo-agressiva, percebi que queria sair dali a qualquer custo. Quando o vejo a fazer o movimento de ir com a mão à zona da cintura, vejo-o com a faca na mão e subir a mão. Recuo de imediato e disparo para a zona inferior, a zona das pernas.” Tem a palavra Bruno Pinto, agente da PSP, 28 anos. Está na sessão de julgamento pela morte de Odair Moniz, cozinheiro, 43 anos. Bruno fala de uma lâmina, que as imagens de videovigilância só mostram no local onde foi encontrada pelo menos 27 minutos depois de ter sido disparado o primeiro dos tiros que abateram Odair. Não podemos ouvir Odair Moniz. Está morto. Mas concentremo-nos no que nos diz Bruno Pinto.

“O meu colega começa a gritar, quando parecia que estava tudo bem. E disse ‘alto, ao chão’. Ele saiu com uma atitude e a dizer ‘sou doente’. Tinha uma ligadura na mão. Quando sai, percebo que começa a dar passos devagarinho para cima. Presumi que estava a tentar sair. Diz várias vezes ‘sou doente’ e ‘arma não’, ‘bastão não’ e vai subindo devagarinho”, conta o agente Bruno. A juíza não lhe pergunta o que é “uma atitude”.

A cena acontece depois de uma curta perseguição de carro. Odair Moniz estava a conviver com amigos na Cova da Moura e saiu para ir buscar cachupa a casa, no Bairro do Zambujal, quando ficou de frente para o carro-patrulha. A decisão que tomou nesse instante custou-lhe a vida: deu uma guinada à viatura e, com isso, tornou-se suspeito.

Durante pouco mais de um minuto, fugiu até embater contra um carro estacionado. Cá fora, os dois polícias já o esperavam. Bruno tentou algemá-lo. Mas não conseguiu. “Ele vira-se e desfere-me um soco na face. A partir daí foi um momento explosivo e nenhum [dos dois] controlou as forças, estávamos muito ofegantes”, contou à juíza.

“Considero que o ambiente era escuro, estávamos todos sob stresse. Efetuei dois disparos seguidos. Quando olhei para a cara dele, não vi reação ao primeiro disparo, manteve os olhos abertos. Ao segundo disparo, vejo os olhos a fechar e a cair.” A má decisão que Odair Moniz tinha tomado minutos antes custou-lhe a vida.

O polícia começou a sessão de julgamento a pedir perdão. “Gostaria de pedir desculpa à família e aos amigos. Acredito que não seja fácil para ninguém”, declarou, antes de referir “aquela atitude astuta e passivo-agressiva” que viu em Odair Moniz, que na altura não tinha nome e, com o rosto mergulhado no escuro, era apenas um homem negro suspeito, na Cova da Moura, um bairro cuja fama evoca fantasmas. Ou será que alguém consegue imaginar o mesmo desfecho para uma perseguição na Avenida de Roma, com um homem branco, louro, de olhos azuis, a sair de um bólide desportivo, depois de ter tomado a má decisão de dar uma guinada ao carro mal viu a viatura policial?

Não foram Bruno Pinto e Odair Moniz quem se encontrou naquela rua da Cova da Moura na madrugada de 21 de outubro de 2024. Eles só seguiram a coreografia de uma dança antiga. A dança em que cada um deles vê o outro como uma ameaça. O polícia que entra no bairro, que o ensinaram a temer, olhando para cada homem negro como uma ameaça. O homem negro que foge instintivamente do polícia, que o ensinaram a temer, tornando-se cada vez mais suspeito à medida que o medo o invade e lhe grita que corra e resista.

Há quem já nasça suspeito. Não acreditam? Um amigo contou-me uma vez que já se habituou a ver as mulheres agarrarem-se às bolsas ou mudarem de passeio quando passa por elas nas ruas. É um homem calmo, doce, um poeta de palavras suaves, que fala quase sempre numa cadência sussurrada. Mas a pele escura anuncia-o antes que lhe possam ouvir a voz. A melanina é uma denúncia. Está na cara que é suspeito, perigoso, uma ameaça. E as mulheres brancas são ensinadas a temê-lo sem nunca o terem conhecido.

O racismo é isso. É temer aquele que não conhecemos, porque ele não se parece connosco. Não é sobre os amigos de pele escura que temos e de quem gostamos. É sobre aquilo que pensamos de quem nada sabemos a não ser o tom da pele, o encrespado do cabelo, a grossura dos lábios ou do nariz. “Enquanto tinha seguranças nos supermercados atrás de mim, para ver se eu ia levar alguma coisa sem pagar, agora tenho para me pedirem uma fotografia, um autógrafo”, contou à VISÃO o Dino D’Santiago para explicar como o olhar racista é o que projeta o ódio no outro quando ele é desconhecido.

É essa a história que nos conta Bruno Pinto que, mesmo no mais escuro breu, viu em Odair Moniz “aquela atitude astuta e passivo-agressiva”. Aquela? Aquela que lhe ensinaram que têm os homens negros suspeitos. Bruno Pinto não viu um homem. Viu um suspeito. Da mesma maneira que Odair Moniz – que agora já não pode falar, está morto – não viu Bruno Dias. Viu um bófia, daqueles que, aprendeu, arranjam problemas a homens negros que andam pelos bairros, daqueles que batem, daqueles que desconfiam, daqueles que com um simples gesto estragam a vida aos que com eles se cruzam.

Não há santos nem inocentes nesta história. Nem Odair Moniz precisa de ser a vítima perfeita, impoluta, pura, para que se faça dele um mártir. Nem Bruno Pinto precisa de ser o vilão racista, impiedoso, desalmado, para ser condenado. E é precisamente por isso que se devia olhar para esta história não como a daquela madrugada de 21 outubro de 2024, em que dois homens tiveram o azar de se cruzar numa rua escura, mas como mais um episódio de uma narrativa muito antiga. O que aconteceu naquela noite começou há centenas de anos. Naquela noite, os homens chamavam-se Bruno e Odair, mas já tiveram muitos nomes. E o que devia acontecer era percebermos isso, para encontrarmos uma forma de encerrar este capítulo. Para que um Bruno não tema um Odair e dispare até o ver cair no chão, porque os olhos abertos e “aquela atitude astuta e passivo-agressiva” o fazem tremer. Para que um Odair não tema um Bruno e fuja e resista, até isso lhe custar a própria vida.

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