O Tribunal da Relação de Évora confirmou, esta sexta-feira, as penas a que tinham sido condenados 11 dos 23 arguidos no processo do roubo e da recuperação das armas militares dos paióis de Tancos. O acórdão teve de ser repetido por causa da “lei dos metadados”, depois de, em fevereiro de 2023, os juízes terem decidido anular a sentença do Tribunal Judicial de Santarém, uma vez que a prova conseguida através dos metadados foi considerada inválida.
Ainda assim, o tribunal considerou válidas as declarações proferidas em sede de julgamento, mantendo a decisão da primeira instância. Na leitura do acórdão, o presidente do coletivo, Nélson Barra, afirmou que o tribunal “eliminou as referências ao metadados”, mas entendeu que “as declarações dos arguidos, em sede de audiência, constituem meios de prova e são suscetíveis de serem valoradas”. O coletivo de juízes manteve assim “tudo o que foi dito aquando do acórdão inicial” do processo.
A decisão apanhou de surpresa a defesa, que considerava que a anulação das provas que estavam ligadas à geolocalização dos telemóveis iria fragilizar a tese da acusação. Isso não aconteceu.
O autor confesso do furto aos paióis de Tancos, João Paulino, mantém a condenação a oito anos de prisão efetiva. João Pais a cinco anos de prisão e Hugo Santos a sete anos e seis meses.
Em liberdade, mantêm-se Luís Vieira (condenado a quatro anos de prisão com pena suspensa), o major Vasco Brazão (a cinco anos de pena suspensa), Pinto da Costa e Lima dos Santos (condenados a cinco anos), Lage de Carvalho e Bruno Ataíde (a três anos) e Batista Gonçalves (a dois anos e seis meses).
O “filme” de Tancos
Recorde-se que o assalto a Tancos ocorreu na noite de 28 de junho de 2017. No dia seguinte, o exército português tornou público o desaparecimento de material de guerra de dois dos paióis nacionais. O caso provocou um “terramoto” nos universos político e militar – com o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, no olho do furacão (chegou a ser arguido, mas foi absolvido dos crimes de denegação de justiça, prevaricação, favorecimento pessoal praticado por funcionário e abuso de poder.).
No dia 18 de outubro de 2017, a Polícia Judiciária Militar (PJM) anunciou que intercetara o material roubado na região da Chamusca, Santarém, “com a colaboração do núcleo de investigação criminal da GNR de Loulé”, numa altura em que o caso já tinha passado para a alçada da Polícia Judiciária (PJ). O desfecho apanhou todos de surpresa – uma vez que teria resultado de uma investigação paralela ao caso, ordenada pelo então diretor da PJM, Luís Vieira, à revelia da PJ e do Ministério Público (MP). As “discrepâncias” entre material desaparecido e encontrado, que foram sendo dadas a conhecer nas semanas seguintes, “embrulharam” ainda mais o caso, não permitindo amainar (nem um pouco) a polémica, e obrigando à intervenção do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que veio a terreiro exigir o “esclarecimento cabal” de todo o processo.
Quase um ano depois, a 5 de setembro de 2018, a Polícia Judiciária levaria a cabo a “Operação Húbris”, que culminou com a detenção do diretor-geral da PJM, Luís Vieira, e de três militares da GNR de Loulé (entre oito mandados de detenção que visaram ainda outros militares da PJM e um civil). No âmbito das investigações, o MP pediria também a detenção do porta-voz da PJM, Vasco Brazão, que se encontrava em missão na República Centro-Africana (Brazão regressaria ao país e seria detido para interrogatório a 1 de outubro).
Precisamente um mês depois da “Operação Húbris” (a 4 de outubro de 2018), o semanário Expresso daria mais pormenores do caso, noticiando que a recuperação do material não terá passado de uma encenação da PJM, em conivência com o autor do furto e a GNR de Loulé, e que até o próprio Azeredo Lopes teria conhecimento do plano – uma informação dada por Vasco Brazão durante o seu primeiro interrogatório (negada pelo ministro da Defesa).
Pressionado pela oposição, Azeredo Lopes acabaria por cair. No dia 12 outubro de 2018, demitia-se do cargo, justificando querer evitar que as Forças Armadas fossem “desgastadas pelo ataque político” e pelas “acusações” de que dizia estar a ser alvo. João Gomes Cravinho assumiria, assim, a pasta da Defesa.
Apenas a 26 de junho de 2020, os 23 arguidos do processo de Tancos souberam que iam a julgamento. Nove dos arguidos acusados de planear e executar o furto do material militar e os restantes 14, entre eles Azeredo Lopes e os dois elementos da PJM, da encenação que esteve na base da recuperação do armamento. O julgamento arrancou a 2 de novembro – No dia 7 de janeiro de 2022, o Tribunal Judicial de Santarém condenou 11 dos 23 acusados, decisão que seria anulada devido à nova “lei dos metadados”.
A Relação de Évora mantém agora a decisão da primeira instância. Conheça os condenados e respetivas penas:
1. Luis Vieira, 68 anos, coronel, ex-diretor da PJM. Foi condenado a quatro anos de prisão com pena suspensa, pelos crimes de favorecimento pessoal. Fica ainda impedido de desempenhar funções públicas durante três anos;
2. Vasco Brazão, 50 anos, antigo coordenador de investigação criminal da PJM, era o porta-voz desta polícia. Foi condenado a cinco anos de prisão com pena suspensa, por favorecimento e falsificação. Fica ainda impedido de desempenhar funções públicas durante dois anos e seis meses;
3. Roberto Pinto da Costa, 50 anos, major, ex-inspetor-chefe da PJM, foi condenado a cinco anos com pena suspensa. Segundo a investigação, teria sido informado que se preparava um roubo aos paióis um mês antes do furto. Terá tido papel importante na farsa da recuperação do armamento. É ainda afastado da carreira durante dois anos;
4. Caetano Lima Santos, 44 anos, sargento, antigo chefe do Núcleo de Investigação Criminal (NIC) da GNR de Loulé. Foi condenado a cinco anos de prisão com pena suspensa e está proibido de desempenhar funções públicas durante dois anos;
5. Bruno Ataíde, 35 anos, guarda da GNR de Loulé, investigador do NIC de Loulé. Foi condenado a três anos de prisão com pena suspensa por favorecimento pessoal praticado por funcionário – foi este militar que recebeu a informação sobre a localização do material roubado (encontrado na Chamusca). O tribunal considerou que não deve ser suspenso de funções;
6. Mário Lage de Carvalho, 45 anos, primeiro-sargento da GNR, investigador da PJM. Seria o elo de ligação entre PJM e GNR em todo o processo de recuperação do armamento. Foi condenado a três anos de pena suspensa por favorecimento pessoal praticado por funcionário;
7. José Gonçalves, 35 anos, guarda da GNR de Loulé, investigador do NIC de Loulé. Faria parte do grupo que preparou a farsa da localização das armas. Foi condenado a dois anos e seis meses de pena suspensa, também pelo crime de favorecimento pessoal praticado por funcionário;
8. João Paulino, 35 anos, ex-fuzileiro, conhecido das autoridades por ser traficante de droga, é o autor confesso do furto do armamento. Foi condenado a oito anos de prisão por terrorismo e tráfico de droga;
9. João País, 34 anos, amigo e cúmplice de Paulino, conhecido por “Caveirinha” e “gadelhas” – por usar cabelo comprido –, também já era um velho conhecido das autoridades por ligações ao tráfico. Foi condenado por terrorismo, em coautoria com Paulino, a cinco anos de prisão;
10. Hugo Santos, 37 anos, também amigo de Paulino, cúmplice no tráfico, foi condenado a sete anos e meio de prisão por terrorismo e tráfico;
11. Jaime Oliveira, 38 anos, conhecido de “Pisca”, dono de um restaurante em Aveiro, chegava a esta fase acusado de tráfico de droga, mas acabou condenado apenas por consumo. Tem de pagar uma multa de 300 euros.