Abraço os meus filhos, com força. Aperto-os e beijo-os muitas vezes. Fingem que fogem. Riem-se enquanto lhes faço cócegas, pedem-me que os tape com os lençóis e que fique mais um pouco antes de ir dormir. Fico. Não me sai da cabeça a imagem de uma menina palestiniana que vi umas horas antes na internet. Os olhos encovados, os ossos espetando-se nos ombros. “Só queria que tudo voltasse a ser como antes”. Foi tudo o que tive coragem de a ouvir dizer. Ela terá mais ou menos a idade dos meus filhos e suporta horrores que eu nem consigo imaginar. Fome, sede, medo. Mas foi a mim que me falharam as forças para a ouvir falar. E agora cresce-me no peito um aperto, enquanto deito os meus filhos e penso em todas as crianças que em Gaza não têm a mesma sorte.
“A lista de Schindler” estreou quando eu era miúda. Nesse filme também havia uma menina. Estava vestida de vermelho, quando tudo à sua volta era a preto e branco. Schindler vê-a ao longe, cambaleante, com passos hesitantes de criança pequena, atravessando as ruas por onde os soldados nazis vão matando a tiro homens que passam, saqueando casas, atirando objetos pelas janelas. A menina caminha até entrar num prédio. Sobe as escadas, entra numa casa abandonada e esconde-se debaixo de uma cama. Vemos-lhe, então, a cara de frente e acreditamos que vai sobreviver. Mas o casaco vermelho identifica-a numa pilha de cadáveres, umas cenas mais à frente. A fuligem dos corpos judeus incinerados, acumulando-se sobre o seu carro, não era mais do que um incómodo para Schindler, até ele perceber que a menina estava entre os mortos.
Cresci a ouvir dizer que o “Davim” vinha de uma trisavó judia. E não sei se foi por isso, mas passei parte da adolescência a ler e a ver tudo o que era possível sobre o Holocausto. Nessa altura, as atrocidades nazis pareciam uma suspensão da humanidade, impossível de compreender. “Never again”, dizia-se. E os filmes mostravam como os bons combatiam os maus.
Percebi muito mais tarde que a maldade extrema do nazismo sobre os judeus não foi um episódio isolado de extermínio. Na verdade, foi uma prática reiteradamente usada por regimes colonialistas, nomeadamente no séc. XIX em África, enquanto Adolf Hitler era ainda uma criança. É uma prática de aniquilação que só é possível quando deixamos de ver o exterminado como humano. É, por isso, que a menina de casaco vermelho é tão importante para acordar Schindler do torpor moral que o deixava assistir quase sem reação à perseguição dos judeus. Ela força-o a entender que os perseguidos são humanos.
É por isso que, por todo o mundo ocidental, têm sido cada vez mais reprimidas as manifestações contra o genocídio em Gaza. Os que nos querem lembrar a humanidade dos palestinianos são amordaçados, detidos, afastados com canhões de água, acusados de antissemitismo.
Há, porém, nas fileiras dessas manifestações muitos judeus. Alguns deles são mesmo sobreviventes do Holocausto ou descendentes diretos de quem passou por esse horror.
Stephen Kapos é um deles. Tinha apenas sete anos quando a Alemanha nazi invadiu a Hungria em março de 1944. Em abril de 2024 fez um discurso no Hyde Park, em Londres, para falar de como os nazis deportaram 400 mil judeus para Auschwitz e dos seus 15 familiares, incluindo o seu pai, que passaram por campos de concentração. “Nós, judeus, que sobrevivemos a toda esta dor, mortes, humilhação e destruição, estamos contra a utilização da memória do Holocausto pelo Governo de Israel como cobertura e justificação para o genocídio em curso contra o povo palestiniano em Gaza e na Cisjordânia”, disse, então, perante uma multidão que o ouviu em silêncio e o aplaudiu entusiasticamente no fim.
Quase um ano depois, Stephen Kapos foi detido para interrogatório pela Polícia em Londres para ser ouvido por ter participado noutro protesto pela paz em Gaza. Apesar dos seus 87 anos e de andar titubeante apoiado numa bengala, Kapos foi acusado de tentar furar uma barreira policial. Mas será mais difícil acusá-lo a ele ou aos milhares que fazem parte da Jewish Voice for Peace de antissemitismo. E é também por isso que os que agora gritam “never again for anyone” são tão importantes.
“O que é um massacre?”, perguntou a minha filha, da primeira vez que viu um outdoor onde se apela ao “fim do massacre na Palestina”. Vacilei na resposta. Como é que se explica a maldade a quem ainda nunca a viu? Não sei há quanto tempo foi isso. Mas foi há demasiado. Porque, agora, quando passamos pelo cartaz, ela pergunta, ansiosa: “O massacre ainda não acabou?”.
Envergonha-me dizer-lhe que não, mas tenho ainda mais medo que vá acabar em breve da pior forma possível, quando vejo nas notícias que há um plano de ocupação total de Gaza por Israel.
A “solução final” que os aliados travaram na Segunda Guerra Mundial, avança agora perante a indiferença quase generalizada dos que assistem a um conflito que – quaisquer que sejam as razões invocadas de um e de outro lado – está na prática a deixar milhares de civis encurralados, sem acesso a água, nem comida, nem medicamentos ou qualquer tipo de ajuda. Empurrados para uma morte certa, cruel e silenciosa. Enquanto nós fingimos não ver.