“Isso também se aprende”, disse o Presidente da República, confrontado com as dificuldades da ministra da Administração Interna em dar esclarecimentos à comunicação social. “Eu também tive de aprender.” Maria Lúcia Amaral, antiga provedora de Justiça, há dois meses e meio no cargo, teve o seu literal batismo de fogo com os pavorosos incêndios que foram deflagrando pelo País, em agosto. De todas as frentes surgiam críticas de deficiências no comando, descoordenação entre proteção civil e bombeiros e falta de pulso da tutela. Os dois aviões Canadair contratados permaneciam pousados, com avarias, e a situação foi remediada com o empréstimo de dois aparelhos, e respetivas tripulações, do Reino de Marrocos. O Governo não declarou estado de contingência, nem de calamidade, conforme a sugestão do secretário-geral do PS e ex-ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, o que conferiria meios legais para uma atuação mais musculada no combate aos fogos. A ministra explicava que todas as medidas e todos os meios já estavam no terreno, mesmo sem estado de contingência ou de calamidade. Em vários takes, a comunicação era a possível, como nestes dois diálogos com os jornalistas.

Diálogo 1:

Jornalista: “Toda a gente se queixa de falta de meios, senhora ministra…”

Ministra: “Os meios… aahhh… pois… perante tudo o que está a acontecer, os meios são sempre ilimitados [Sic]. Sempre.”

Jornalista: “Ilimitados?…”

Ministra: “Minha senhora, lamento, mas já lhe respondi!”

Diálogo 2:

Jornalista: “No ano passado, o primeiro-ministro já tinha pedido mão pesada para os autores das ignições. Que tipo de mão pesada?”

Ministra: “Ora bem: que tipo de mão pesada… ahhh… Não sei. E acho que também as autoridades não sabem. [E prossegue] Eu tive a possibilidade de estar com o senhor primeiro-ministro e, agora mesmo combinámos – não tínhamos combinado antes –, mas combinámos que, devido à situação crítica, iremos os dois já para a sede da Autoridade Nacional da Proteção Civil. Até por uma questão de cortesia perante os responsáveis da Autoridade Nacional da Proteção Civil, que acabaram por saber, deste modo, que nós lá vamos, que os senhores [Jornalistas] me dispensem o tempo de ir conversar com eles para que eles se preparem.”

E no final da leitura de um comunicado numa conferência de imprensa, quando os jornalistas tentavam colocar algumas perguntas: “Em nome de todos, muito, muito obrigada. [E levantando-se, dirigindo-se aos seus colegas na mesa] Vamos embora.”

Perante estas gaffes que evocam vagamente o estilo do antigo PR Américo Tomás, Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou ao que considera uma necessidade de aprendizagem da ministra: “Nem sempre quem está perante situações de sufoco é capaz de responder em conformidade.”

Túmulo de políticos

Alberto Costa, António Costa, Eduardo Cabrita, Eduardo Pereira, Fernando Gomes, Jaime Gama, Jorge Coelho, José Luís Carneiro, do PS; Ângelo Correia, Eurico de Melo, Fernando do Amaral, Magalhães Mota, Dias Loureiro e Miguel Macedo, do PSD; e Costa Braz, independente: o que têm todos estes nomes em comum, além de terem sido ministros da Administração Interna? Eram todos pesos políticos importantes, figuras reconhecidas, pela sua experiência e pela sua competência, e, na maioria dos casos, não só muito próximos do circuito íntimo dos seus primeiros-ministros, mas também exímios gestores da comunicação política. Essas qualidades, justa ou injustamente, não são, no seu conjunto, reconhecidas a figuras como Silveira Godinho (primeiro MAI da maioria absoluta de Cavaco Silva) ou, mais recentemente, Constança Urbano de Sousa (António Costa) ou Margarida Blasco e Maria Lúcia Amaral (Luís Montenegro).

Mesmo assim, experiência política ou saber acumulado nunca foram suficientes para mandatos incólumes no Ministério da Administração Interna, notoriamente uma casa cheia de minas e armadilhas e um dos cargos mais pesados e trabalhosos de qualquer governo. E algumas destas personalidades tiveram mesmo de sair antes do final dos respetivos mandatos, acabando a carreira política. O MAI é responsável por uma área de soberania que abarca as várias polícias (à exceção da Judiciária, que fica na alçada do Ministério da Justiça), os corpos de bombeiros, a proteção civil, toda a área de segurança interna, quer no policiamento e no monopólio da força do Estado, quer na resposta a catástrofes naturais, e ainda a nevrálgica e sensível organização dos processos eleitorais. A tensão entre organismos, a necessidade mastodôntica de coordenação entre todos eles, os interesses corporativos envolvidos e a exposição pública numa das áreas mais escrutinadas pela comunicação social e pelo eleitorado fazem deste lugar um verdadeiro “comboio-fantasma”. A isto se junta o circo mediático dos nossos dias.

Secos & molhados

Um dos primeiros grandes exemplos deste escrutínio em direto – mesmo descontando as imagens da então estação única de televisão, a RTP – foi a reportagem da TSF, a 21 de abril de 1989, na manifestação de polícias fardados na Praça do Comércio (também conhecida pelo nome pré-pombalino de Terreiro do Paço), em Lisboa. Enquanto o repórter João Almeida fazia um relato vívido e emocionante dos acontecimentos, o Corpo de Intervenção (CI) da PSP, muito contrafeito, carregava, timidamente, sobre os colegas manifestantes. Pela primeira e única vez, na História da democracia portuguesa, foram usados canhões de água – e foram-no contra polícias! Os homens de farda seca do CI encharcavam os colegas, agora molhados, das esquadras do País. A imagem é a de uma barreira firme, suportando os jatos de água, tendo sido necessário o envio de um segundo contingente do CI para se ter assistido a uma carga, digna desse nome, sobre os manifestantes, que, finalmente, dispersaram. O CI era comandado por um oficial de cavalaria, general Governo Maia, muito pouco sensível às nuances cívicas de uma polícia civil e determinado em manter disciplina militar na PSP.

Os polícias reivindicavam direitos que hoje parecem óbvios, como os de terem uma associação sindical, um dia de folga semanal, melhores remunerações e instalações e direito de defesa em processos disciplinares. O ministro da Administração Interna, Silveira Godinho (aliás, ligado ao primeiro-ministro, Cavaco Silva, por laços familiares), ficou imediatamente marcado pela desastrosa intervenção e pela forma inábil como lidou com a crise. O desprestígio da sua polícia parecia irremediável, depois das cenas lamentáveis que não soube prevenir nem mitigar. Seria remodelado em janeiro do ano seguinte, numa primeira leva de substituição de ministros. Para o seu lugar seguiria o experientíssimo e politicamente hábil Dias Loureiro, um dos grandes ministros políticos de Cavaco, que conseguiria a proeza de se manter até ao fim das maiorias absolutas cavaquistas e sendo o ministro, nos últimos 40 anos, que mais tempo ocupou o cargo – não deixando de enfrentar os seus próprios problemas, nos bloqueios à Ponte 25 de Abril, em 1994…

Mais tarde, na campanha eleitoral para as legislativas de 1991, Cavaco, que, embora se gabasse de não ler jornais, não tinha esquecido a reportagem da TSF, vingou-se, com um insuspeitado sentido de humor, do repórter João Almeida, escalado para acompanhar a campanha. Numa sessão de perguntas, arrancou-lhe o microfone das mãos e imitou-o, numa espécie de relato que revivia as emoções daquela tarde, no Terreiro do Paço: “E agora salto por cima de uma cadeira, e passo por baixo de uma mesa, já levei um pontapé na cabeça, estou a aproximar-me do primeiro-ministro…”

O atentado dos pregos

Por falar em situações caricatas, ficou célebre o caso em que o ministro do último governo de Francisco Pinto Balsemão, Ângelo Correia, considerou uma ameaça para a segurança nacional o facto de ter sido encontrada uma caixa de pregos no interior do automóvel de um dirigente sindical. Em 1982, a CGTP convocou a primeira greve geral da democracia, uma greve um tanto ou quanto política, visto que o seu principal objetivo era ajudar a derrubar o já periclitante governo da AD. Esta ameaça laboral, de consequências imprevisíveis – nunca se havia feito uma experiência similar – provocou grande nervosismo no governo. O titular da pasta, Ângelo Correia, entrou em ação, dramatizando ao máximo aquilo que considerava uma “insurreição” contra o regime democrático. E quando foi encontrada, num carro da central sindical, uma caixa de pregos, o ministro publicamente deduziu que os pregos iriam ser cirurgicamente espalhados pelas estradas, furando pneus e impedindo a circulação das viaturas policiais, de forma a assegurar “o sucesso da sublevação” sindical. A gargalhada foi geral, em todo o País.

De novo os polícias

Os polícias representaram, desde o episódio dos “secos & molhados” e até hoje, um foco de tensão com a tutela. O MAI de António Guterres, Alberto Costa, agastado com alguns excessos de violência policial, disse uma frase que o queimou para sempre, junto da corporação, dinamitando o seu desempenho no cargo: “Esta não é a minha polícia!” Mas os governos sociais-democratas também tiveram os seus revezes. Em novembro de 2013, uma gigantesca manifestação de polícias, que invadiu as escadarias da Assembleia da República, seria o primeiro incidente em que as próprias autoridades se excederam, na linha de fronteira entre o protesto legal e a ação violenta. Um jogo do gato e do rato repetiu-se, como nos secos e molhados, mas desta vez sem a espontaneidade de 1989 e com a ação de agitadores previamente preparados. Era o primeiro sinal do que, uma década depois, se fazia sentir com ações supostamente inorgânicas, e fora do âmbito sindical, promovidas pelo Movimento Zero. A politização dos protestos policiais (bem como dos bombeiros profissionais) veio trazer novos desafios aos ministros do setor, sobretudo depois da guerra dos subsídios de risco, que o governo de António Costa tinha atribuído à Polícia Judiciária e negado às forças de segurança. Um legado tóxico do governo de maioria absoluta do PS.

Mas houve outro ministro socialista mais antigo – e um dos maiores seniores políticos do PS, de quem chegou a dizer-se que poderia ter ensaiado, em vez de Jorge Sampaio, uma candidatura presidencial em 1996 – de seu nome Fernando Gomes, MAI entre 1999 e 2000, que também se deu pessimamente com os ares tóxicos do ministério. Confrontado com uma onda de assaltos a bombas de gasolina em várias autoestradas do País, sem qualquer medida eficaz para pôr cobro à situação, o antigo presidente da Câmara Municipal do Porto mostrava inépcia total. O assalto e a tentativa de violação da atriz Lídia Franco, então muito popular, numa destas ações de carjacking, potenciou o alarme da opinião pública. Sabendo-se da existência de um gangue composto por cerca de oito jovens negros, Fernando Gomes atribuiu as culpas à… “imigração descontrolada”: “É evidente que há também aqui uma outra questão, que é a questão da legislação sobre a imigração, que estará em debate na próxima semana na AR. Eu espero que se possa vir, a partir daí, a apertar o cerco e a manter uma rede fina de controlo sobre a imigração”, disse o ministro, numa intervenção que nos parece estranhamente familiar…

Noutra frente, num episódio bastante embaraçante, Gomes viu-se desautorizado quando quis proibir as touradas de morte em Barrancos. O acumular de casos e casinhos levou à sua exoneração, um ano depois de ter sido empossado, facto que o ex-autarca nunca perdoou ao primeiro-ministro António Guterres, de quem fora um dos mais próximos.

Mais desastres socialistas

A propensão para a gaffe da atual ministra Maria Lúcia Amaral ainda não atingiu o ponto que levou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a exigir – embora apenas nas entrelinhas de um discurso fatal – a demissão de uma sua antecessora socialista. No rescaldo da “tranche 2” dos incêndios de 2017, desta vez, depois de Pedrógão, em junho, o caso de Oliveira do Hospital, em outubro, com mais um acumular de mortes, e perante as críticas de falta de empatia de António Costa e da ministra Constança Urbano de Sousa, esta era diariamente confrontada pelos jornalistas sobre uma eventual demissão. E foi com os cadáveres quentes dos incêndios de 15 de outubro que respondeu, a 16, depois de muito pressionada, e revelando um colapso emocional que não a recomendava para continuar no cargo: “Para mim seria mais fácil, pessoalmente, ir-me embora e ter as férias que não tive, mas agora não é altura de demissões.” Com esta afirmação, a ministra queria enfatizar o seu empenho e o seu sacrifício, mas o que os portugueses viram foi uma governante contrariada com a chatice de os incêndios lhe estragarem as férias. Num discurso que foi uma peça de filigrana política, proferido no dia seguinte, em Oliveira do Hospital, Marcelo exigiu uma “rutura” com o passado e aconselhou “humildade cívica”, exigindo um pedido de desculpas do governo às vítimas. Depois, exortou o executivo a tirar “todas, mas todas, as consequências da tragédia”, acrescentando que competia, agora, à Assembleia da República pronunciar-se sobre se queria ou não “manter o governo”. Minutos depois do discurso, Constança Urbano de Sousa caiu em si e pediu a demissão.

O sucessor, Eduardo Cabrita, tinha o condão de fazer regressar ao ministério a experiência política e a vantagem da proximidade pessoal ao líder. E notou-se logo uma mudança segura: Cabrita reforçou a profissionalização nos corpos de bombeiros, aumentando o número de equipas de intervenção permanente, apostou no Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) da GNR, duplicando o dispositivo e passando a estar presente em todo o País para o combate e a prevenção dos incêndios. O ministro reativou a carreira de guardas-florestais com a admissão de novos elementos, o que não acontecia desde 2006, e, durante o seu mandato, acabaram as fases de combate a incêndios, que foram substituídas por níveis de prontidão. E o dispositivo passou a estar permanente ao longo do ano, além de terem aumentado os operacionais, viaturas e meios aéreos. Independentemente dos humores do clima, o certo é que as medidas tiveram efeito. Mas logo que a pressão política de alguns casos mal resolvidos pôs em causa a sua posição, Eduardo Cabrita deu sinais de descontrolo, com declarações polémicas, como quando chamou a si a responsabilidade pela recandidatura de Marcelo. O PR tinha dito, em 2017, que se voltasse a haver um verão com vítimas mortais, por causa da inépcia do Estado, não voltaria a candidatar-se. Com zero vítimas até 2021, Cabrita, sabendo que a sua estrela empalidecia em Belém, procurava puxar os galões ao mesmo tempo que ironizava, sobre o Presidente. “Candidata-se graças a mim…”

Entre outros casos, o que se tinha passado, entretanto? No aeroporto de Lisboa, um cidadão ucraniano, Ihor Homeniuk, tinha sido assassinado por elementos do SEF, um caso tornado público, mas desvalorizado pela onda mediática que, na altura, tinha as atenções monopolizadas pela pandemia da Covid-19. O caso esteve a borbulhar durante meses, com o MAI, perfeitamente conhecedor do incidente, a varrer o lixo para debaixo do tapete, até que, repentinamente, saltou para o prime time noticioso.

Mas havia outros casos: a autorização para os festejos dos adeptos do Sporting, pela conquista do Campeonato Nacional, na época 2019-20, em pleno estado de emergência pelas restrições da pandemia, com o MAI a empurrar a responsabilidade do aumento de infeções para a CML e para o clube, definiu uma quebra de autoridade do Estado perante o populismo futebolístico.

Outro caso em que o ministro ficou muito mal na fotografia, com buscas da PJ efetuadas no seu gabinete, foi, em 2019, o das “golas de fumo”. A empresa Foxtrot Aventura recebeu 267 mil euros pelo fornecimento dos kits de emergência do programa Aldeia Segura. E do valor total adjudicado pela Proteção Civil, mais de 100 mil euros foram atribuídos para a produção de 70 mil golas antifumo. Um preço superior ao habitual neste tipo de produto, sem que a ANEPC tenha feito qualquer consulta pública, como devia, para este serviço. Mais, as golas, 100% poliéster, eram altamente inflamáveis (mesmo tendo em conta que se destinavam a proteger do fumo e não das chamas, não deixavam de ser perigosas). Mas o ponto principal foi a coincidência de a Foxtrot Aventura ter sido fundada menos de dois meses depois da criação do programa Aldeia Segura. O dono da empresa era Ricardo Peixoto Fernandes, marido da socialista presidente da junta de freguesia de Longos, em Guimarães, Isilda da Silva. E a responsabilidade pela encomenda dos “kits de incêndio” não era clara, mas todas as diversas hipóteses comprometiam dirigentes socialistas. A consequência imediata fora a demissão de Francisco Ferreira, adjunto do secretário de Estado da Proteção Civil – e também presidente da concelhia do PS/Arouca. E foram constituídos arguidos o ex-secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, o ex-presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), Carlos Mourato Nunes, e outros 17, entre pessoas e empresas. Seis anos depois, o caso ainda está em julgamento.

Já depois da reeleição de Marcelo, em junho de 2021, deu-se o acidente na A6, em que a viatura de serviço do ministro atropelou um trabalhador quando decorriam trabalhos de conservação na via, entre Évora e Lisboa. Muito tempo depois, apurou-se que o carro seguia a 163 km/h e o motorista Marco Pontes viria a ser condenado por homicídio por negligência – sendo que também foi provada negligência por parte da vítima. Cabrita negou sempre responsabilidades, mas viria a ser acusado pelo Ministério Público, o que motivou, finalmente, a sua demissão, em dezembro de 2021.

O próprio chefe, António Costa, carregava um pecadilho dos seus tempos de MAI, num governo de José Sócrates: alguma responsabilidade no contrato celebrado para a aquisição do SIRESP. O Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) fora adjudicado a um consórcio liderado pela Sociedade Lusa de Negócios (depois rebatizada como Grupo Galilei, após a derrocada do BPN) por um valor de 538,2 milhões de euros. O despacho da adjudicação foi assinado pelo então ministro da Administração Interna de Pedro Santana Lopes, Daniel Sanches, a 23 de fevereiro de 2005, três dias após as eleições legislativas que resultaram na vitória por maioria absoluta do PS de José Sócrates.

Após a tomada de posse do novo governo, a 12 de março de 2005, Costa assumiu o cargo de ministro da Administração Interna e renegociou o contrato com o mesmo consórcio, confirmando a adjudicação definitiva do SIRESP. A única diferença foi ter conseguido reduzir o preço para 485,5 milhões de euros, mesmo assim, três vezes superior ao real valor definido em relatórios independentes posteriores.

Os vistos gold

Miguel Macedo, do PSD, quando se viu submergido pelo caso dos vistos gold, era um dos ministros mais competentes e populares do governo de Pedro Passos Coelho. Em novembro de 2014, no âmbito da Operação Labirinto, foram detidos o diretor do SEF, Manuel Palos, o presidente do Instituto de Registos e Notariado, António Figueiredo, e a secretária-geral da Justiça, Maria Antónia Anes. O MP investigava um caso de corrupção envolvendo o IRN o SEF num esquema para o favorecimento de empresários chineses que, aproveitando a legislação dos vistos gold, pretendiam declarar residência em Portugal. Três dias depois, o MP acertava no porta-aviões, com a demissão do ministro Miguel Macedo, que seria constituído arguido apenas seis meses depois. Em 2019, quando, no tribunal, se chegou ao final do julgamento, dos 47 crimes só sobraram sete. A pena mais grave foi a de António Figueiredo, com quatro anos de prisão suspensa. Maria Antónia Anes e os chineses Zhu Xiong e a mulher foram, além de Figueiredo, os únicos de 11 arguidos condenados, nomeadamente, por tráfico de influências. Manuel Palos foi absolvido e Miguel Macedo também, ilibado de todas as acusações. Mas era tarde para um regresso: “O tempo da política acabou”, declarou, à saída do tribunal, o ex-ministro. Quando, em março deste ano, o País ficou chocado com o falecimento prematuro e inesperado de Miguel Macedo, aos 65 anos, o elogio fúnebre foi unânime, em todos os quadrantes políticos. Ninguém queria que ele dissesse “vamos embora”.

As forças israelitas fizeram implodir, na sexta-feira, um dos edifícios mais altos da Cidade de Gaza um prédio com 14 andares que, alegam, era usado pelo Hamas. Sete segundos foi quanto a torre demorou até se transformar em escombros.

Israel defende-se das acusações de ignorar baixas civis com o aviso que fez, na sexta-feira de que ia ia fazer, “nos próximos dias”, um ataque contra edifícios altos na Cidade de Gaza antes de conquistar a cidade, argumentando que os prédios “se tornaram infraestruturas terroristas”.

A ONU estima que estejam cerca de um milhão de pessoas na região da Cidade de Gaza, alertando para um “desastre iminente” caso a ofensiva israelita contra a cidade se expanda.

Decorridas algumas horas sobre o acidente trágico do Elevador da Glória, o presidente da Carris, que gere o ascensor, Pedro de Brito Bogas, colocou lugar à disposição, mas Carlos Moedas não aceitou.

Questionado sobre o assunto pela SIC, uma fonte próxima do presidente da Câmara de Lisboa limitou-se a responder: “Aqui ninguém foge”.

Presente no local do descarrilamento na quarta-feira, Pedro de Brito Bogas garantiu, na altura, que a manutenção do elevador foi “escrupulosamente respeitada”.

O ascensor liga os Restauradores ao Jardim de São Pedro de Alcântara, no Bairro Alto, num percurso de cerca de 265 metros. O descarrilamento provocou 16 mortos e mais de 20 feridos. Estava prevista para sexta-feira a divulgação de uma “nota informativa” sobre o acidente, mas foi adiada e só este sábado deverão ser conhecidas as primeiras conclusões.

O historial de manutenção e supervisão do ascensor será analisado exaustivamente pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF), que vai contar com ajuda externa na investigação. Será analisado não só o projeto inicial do ascensor, como a sua posterior eletrificação e “sucessivas melhorias e renovações”, mas sobretudo o historial de manutenção e fiscalização, garantiu, na quinta-feira, o coordenador do GPIAAF, Nelson Oliveira.

Nesta análise inclui-se também “a formação das pessoas que fazem as intervenções, os contratos que existem de prestação de serviços com os prestadores externos à Carris”.

É urgente uma reflexão sobre a nossa relação com a floresta, a gestão do território e o impacto dos incêndios que continuam a devastar, ano após ano, Portugal. Acredito que é fundamental trazer à tona questões que envolvem não apenas a destruição, mas também a responsabilidade coletiva e a urgência de ações concretas para um futuro sustentável.

Desde 2017 – dos incêndios de Pedrógão -, muitas promessas foram feitas para ordenar e proteger as nossas florestas, mas, passados oito anos, o que vemos é uma realidade ainda mais caótica. O ordenamento florestal, que deveria ser a base de uma gestão responsável, parece ter sido esquecido ou abandonado. Enquanto isso, espécies em vias de extinção continuam ameaçadas, e as áreas queimadas permanecem abandonadas, muitas vezes com eucaliptos que se regeneram sem controlo, formando um ambiente de monocultura que favorece novos incêndios e a degradação do solo.

Estamos em 2025 e o ordenamento florestal não foi feito. Falamos em espécies em vias de extinção, mas o ordenamento florestal é que ficou extinto. Os eucaliptos renasceram e em muitas regiões, nem os queimados foram retirados, coabitando num ambiente caótico até hoje. E não, não sou contra a cultura do eucalipto, sou é a favor da sua utilização de forma consciente.

“O que será do interior se a floresta não der rendimento?”, perguntam os defensores da monocultura do eucalipto.

Não sou contra o cultivo do eucalipto, mas defendo uma utilização consciente, que considere o equilíbrio entre produção e preservação. A monocultura, muitas vezes, é vista como uma solução rápida de retorno financeiro, mas esquecemos que ela deixa uma herança de solo pobre, biodiversidade reduzida e vulnerabilidade a incêndios. É uma visão de curto prazo que compromete o bem-estar das futuras gerações.

A conversa que travo com quem defende a monocultura revela uma questão mais profunda: o que é realmente “rendimento”? Se pensarmos apenas no lucro imediato, esquecemos que a verdadeira riqueza está na diversidade, na saúde do solo, na água, na biodiversidade e na cultura de quem vive na terra. Como podemos ensinar às novas gerações a sobreviverem a incêndios, a cuidarem do solo, a valorizarem o que a natureza oferece de forma sustentável?

A resistência de alguns agentes privados e de pessoas locais que amam e zelam pelo seu território é uma esperança. Mas, enquanto o poder público não assumir a responsabilidade de gerir o território com sensibilidade, empatia e conhecimento, o ciclo destrutivo continuará. A gestão do território não pode ser feita por quem não sente a terra nos pés, o cheiro a folhas molhadas e a doçura de uma amora selvagem, assim nunca vamos fazer um ordenamento florestal.

Tem sido feito um trabalho incansável por alguns agentes privados e gentes locais que emanam uma responsabilidade coletiva e amam e prezam o seu território. A força do interior, das comunidades que vivem e trabalham na terra é o que realmente sustenta a esperança de recuperação, como aconteceu em 2027. Mas este ano, há uma diferença: há o Tiago, a Inês, a Raquel e o Ricardo, pessoas dispostas a conectar, a ajudar, a plantar, a cuidar, a reconstruir. Essas ações, pequenas ou grandes, são o que nos dão esperança de que a natureza, com sua paciência e persistência, sempre encontra uma forma de renascer.

Por fim, é fundamental que repensemos as nossas prioridades. Não podemos permitir que interesses económicos de curto prazo destruam o que é vital para nossa sobrevivência. Precisamos de um ordenamento florestal sério, de políticas públicas que valorizem a biodiversidade e de uma mudança de mentalidade coletiva. Afinal, a floresta não é apenas um recurso, é o nosso lar, a nossa história, o nosso futuro.

Vamos aprender com a natureza: renascer lentamente, mas com força e beleza.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Há dias, encontrei um amigo de longa data – alguém com quem partilhei juventude, ideais, debates sobre justiça e liberdade. Sentámo-nos num café como algumas vezes antes, mas desta vez o clima era outro. Quando mencionei o meu desconforto com o crescimento de certos discursos na política portuguesa, ele olhou-me com firmeza e disse: “Estou na lista do Chega. Não por ódio, mas por amor. É pelo futuro da minha filha.” Fiquei em silêncio. Não pela surpresa, mas pela dor de ver alguém que amo atravessar uma linha invisível que, uma vez ultrapassada, transforma o amor em exclusão, a proteção em hostilidade. Porque é exatamente assim que o autoritarismo avança: não com botas, mas com ternura; não com ameaças, mas com promessas de segurança para os nossos filhos. E é nesse ponto, precisamente, que devemos parar e perguntar: que futuro estamos a construir quando o preço da proteção é o desprezo pelo outro? Quando dizemos que queremos um país melhor para os nossos filhos, mas só para os nossos filhos – e não para todos os filhos?

Este gesto – o de um pai que, movido por um amor legítimo, adere a um projeto político que nega dignidade a outros – é um sintoma de uma falha mais profunda. Não se trata apenas de uma escolha partidária. É o sinal de que a democracia falhou em oferecer respostas que reconciliem a esperança com a justiça. E é nesse vazio que o populismo de extrema-direita cresce: não nas certezas, mas nas angústias; não na razão, mas no medo disfarçado de sentido.

Ernesto Laclau, professor argentino, defende que o populismo nasce quando um conjunto heterogéneo de insatisfações – económicas, simbólicas, existenciais – se une a um discurso que nomeia um “inimigo” comum. Esse inimigo não precisa de existir de forma concreta; basta que seja sentido como ameaça. No caso do Chega, esse inimigo é múltiplo: o político corrupto, o juiz “ativista”, o imigrante “ilegal”, o sistema que “não funciona para o povo”. O que une estas figuras não é uma análise estrutural, mas uma emoção coletiva: a sensação de que se foi traído, esquecido, desrespeitado.

É um sentimento real, verdadeiro. Muitos portugueses vivem na precariedade, com reformas de miséria, com serviços públicos degradados. A corrupção existe. A insegurança urbana é uma dor concreta em certas comunidades. Mas em vez de se apontar às estruturas – ao falhanço do Estado social, à desigualdade económica, à concentração de poder –, o discurso populista desloca a responsabilidade, a culpa. Aponta para quem é mais fraco, mais visível, mais fácil de estigmatizar. E nesse processo, transforma a justa indignação numa violência simbólica, como bem descreveu Pierre Bourdieu.

Quem fica de fora?

Porque o que está em jogo não é apenas o voto, mas a forma como vemos o outro. Quando se diz que “Portugal é para os portugueses”, não se está a defender a nação – está-se a definir quem nela tem direito a pertencer. E quem fica de fora? Os que não se encaixam na imagem purificada de “português de verdade”, na “gente de bem”. É um mecanismo antigo, já estudado por Theodor Adorno no pós-guerra: a “personalidade autoritária” não nasce do nada. Nasce da humilhação social, da insegurança económica, do sentimento de perda de estatuto. E quando o sistema não oferece esperança, oferece-se, em troca, superioridade simbólica: a ilusão de que, mesmo sem dinheiro nem poder, se é “mais legítimo” do que o outro.

É aqui que o discurso do Chega se torna perigoso: não por falar de problemas reais, mas por responder a problemas reais com soluções irracionais. Quer mais segurança? Então expulsemos os imigrantes. Quer menos corrupção? Então descredibilizemos todos os juízes. Quer proteção para os nossos filhos? Então fechemos as portas aos filhos dos outros. É uma lógica de cerco, de pureza, de ordem restaurada – que, como bem alertou Chantal Mouffe, pode facilmente deslizar para o antipluralismo, onde o adversário político deixa de ser um interlocutor e passa a ser um inimigo a eliminar.

E é por isso que o testemunho do meu amigo me assombra. Porque ele não é um homem mau. É um amigo. É um pai que tem medo. Medo de que a filha cresça num país em crise, sem oportunidades, sem segurança. Mas o que ele não vê – ou não quer ver – é que o futuro da filha está ligado ao futuro de todas as crianças. Que a verdadeira proteção não se constrói com muros, mas com escolas, hospitais, políticas de inclusão. Que um país que exclui parte dos seus cidadãos não é mais seguro – é mais frágil, mais dividido, mais próximo do colapso civil.

A democracia não é um regime de consenso fácil. É, como Mouffe insistiu, um campo de “agonismo” – onde os conflitos existem, mas são contidos pela regra comum do respeito mútuo. O seu colapso começa quando se deixa de ver o outro como adversário legítimo e se passa a vê-lo como ameaça à ordem natural das coisas. É nesse momento que se abre caminho para a ilegitimidade, para a violência, para o fim do debate.

Escolher a luz

A resposta ao populismo não pode ser o escárnio. Como Boaventura de Sousa Santos alertou, o desprezo é o oposto da justiça. A resposta tem de ser a reafirmação de uma democracia radical, que não se limite a eleger governos, mas a transformar as condições de vida de quem foi esquecido. Tem de ser uma política que escute os medos, mas não os instrumentalize. Que reconheça a raiva, mas não a converta em ódio.

Porque o futuro da nossa filha – de todas as nossas filhas, porque também eu tenho – não se constrói com listas de exclusão. Constrói-se com direitos, com igualdade, com a coragem de dizer que ninguém é descartável. Que ninguém é “menos português” por nascer noutro continente, por falar outra língua, por crer noutra fé.

O amor não deve ser a justificação para o encarceramento. Deve ser a razão para a abertura. 

E a política, se for verdadeiramente democrática, não pode ser o lugar onde o medo vence. 

Tem de ser o lugar onde, mesmo em tempos sombrios, escolhemos a luz da solidariedade.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:


Já conhecia a comunidade do Riobom há algum tempo. É gente simpática, boa, pura. São uns amores de pessoas, que estão ali há 50 anos e nunca houve confusões.

Sou da Madeira, mas vivo no Porto há várias décadas. A primeira vez que estive no bairro, com o antropólogo Fernando Matos Rodrigues, pensei: como é possível existir isto no centro da cidade?

Vi a cana-de-açúcar, os abacateiros, as bananeiras… Aquelas plantas são todas iguais às da minha terra, mas comecei a conversar com os moradores e senti-me numa ilha cabo-verdiana.

Aquela escarpa está virada a sul e há muita água da nascente, deve ter um micro-clima. Eu consegui ter uma pitangueira na minha varanda e já não está mal!

Adorei regressar ao Riobom para fazer esta reportagem. Sempre achei que este bairro tinha uma mística, que é um oásis africano no meio do Porto.

A reportagem para ler na edição da VISÃO que está bancas ou aqui, em exclusivo para assinantes.

O sol já desceu bastante no horizonte quando dizemos adeus ao sr. Carlos, ao seu cãozinho Michael e às suas muitas galinhas que não olhamos nos olhos porque em breve uma delas será a protagonista de uma prometida cabidela. Eu tenho um comboio à minha espera na Campanhã (estou quase a perdê-lo, ui, ui), mas a Lucília Monteiro ainda tira mais umas fotografias – percebo-a tão bem.

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A conversa tinha sido ótima, a água da nascente soubera-nos pela vida e estava decidido o sacrifício de um galináceo, sem hipótese de escusa. Mas como resistir a retratá-lo agora de chapéu só para o estilo e a disfarçar as poses com uns repetidos “anda, Michael”?

“Eu telefono e voltam cá”, diz Carlos, sob o sorriso divertido do seu vizinho Isolino que deve conhecer-lhe o charme mas nada comenta, talvez por ter uma horta a pedir umas valentes mangueiradas no final de mais um dia de trabalho do outro lado do rio Douro, em Vila Nova de Gaia.

Tinham passado quase sete horas desde o momento em que havíamos atravessado um bairro abandonado, passado por cima de linhas férreas, percorrido uma primeira fileira de casas de costas para o rio e – numa curva – dado de caras com o exotismo do Riobom. “Este sítio é lindo!”, exclamara eu, surpreendida com a vista e já a escutar o ferrinho e a gaita de um funaná.

Não fosse pela imponente Ponte D. Maria a enquadrar a paisagem e ainda seria maior a sensação de que chegámos a Cabo Verde ou mais exatamente à Ilha de Santiago, conhecida pela agricultura e pelos seus vales muito verdes – e não a um antigo bairro construído pela família Riobom para alojar os operários da sua fábrica de curtumes, em plena escarpa sobre o Douro e entre duas linhas de comboio.

HERICA, A LINDA

Num primeiro olhar, repara-se numa casa amarela e só depois nas outras casinhas, aqui e ali semeadas na encosta semicoberta pela trepadeira de flores azuladas e afuniladas que conhecemos como bons-dias ou corriola. Veem-se figueiras, pessegueiros, loureiros e também grandes abacateiros, carregados de frutos. Lá em baixo, recortados no azul do rio, há muito milho e cana-de-açúcar, em hortas seguidas onde a couve-portuguesa dá nas vistas, altaneira, entre pés de feijão e de tomate.

Pelas bananeiras carregadas de bananas, só daremos horas mais tarde, e por essa altura estamos já tão mergulhadas na crença de que o Riobom é uma ilha cabo-verdiana ficcionada que estranhamos quando a dona Eugénia, sempre a sorrir e a tagarelar num português acrioulado, nos mostra uma parreira. Há videiras em Cabo Verde, mas esta parreira é minhota por todos os lados.

A maneira como Herica, de 10 anos, resume o seu amor ao Riobom caracteriza-o bem: “Do que eu gosto é da Natureza e da convivência com eles, são todos divertidos. Ao fim de semana, vamos à praia e há música em casa”

“Prove!”, incita ela, as mãos em concha cheias de uvas americanas, apressando-se a descer uma escada que alguém inventou com metade de um escadote e as grades de uma cama de metal, para alcançar a sua horta. Num ai, está na cota mais baixa do terreno, olha para trás e quase me apanha a careta. “Também acho que estão ácidas”, ri-se, cúmplice, Herica, filha do namorado de uma das suas netas e tão linda que sonha, com razão, ser modelo.

Herica tem 10 anos e veio ao Riobom para passar férias com o pai, a madrasta e a “mamãe novo”, como todos chamam à dona Eugénia na família. O 5º ano espera-a em Vila Nova de Milfontes, onde mora com a mãe, mas, enquanto as aulas não começam, passa boa parte dos dias em brincadeiras com a filha da sua madrasta, Laura, de 5 anos, e com Alana, de 3, filha de Maria de Fátima, a neta mais velha de Eugénia.

A miúda é a melhor cicerone do bairro e a maneira como resume o seu amor ao Riobom caracteriza-o bem: “Do que eu gosto é da Natureza e da convivência com eles, são todos divertidos. Ao fim de semana, vamos sempre à praia e há música em casa.”

Tínhamos acabado de a conhecer literalmente entre galinhas, no caso as do sr. Arlindo, a picarem no chão, mas já à espera do djanta. O almoço para nós ainda vinha longe e o dia de sol estava a ser excelente para conhecer uma boa parte dos habitantes do bairro. Um pouco de água da nascente direta de uma mangueira e siga!

“Fizeram análises e ela é boa”, incitara Arlindo. “A terra é que tem de ser estrumada, porque é muito fraquinha”, sabe ele e sabe Eugénia, agora já a caminho da sua horta, a uns metros da linha desativada que ligava a Alfândega do Porto à Campanhã e quase por baixo da Ponte D. Maria, desenhada por Eiffel e encerrada em 1991.

Nós vamos atrás. O almoço pode esperar.

PARA LÁ DA LINHA

Flashback para a entrada no Riobom, feita de mansinho, o único jeito que eu e a fotojornalista Lucília Monteiro conhecemos para chegar ao pé das pessoas, e por portas travessas, como neste caso tem mesmo de ser.

Estacionado o carro no Largo do Padre Baltasar Guedes (também chamado “do seminário” porque no século XIX foi brevemente essa a função do enorme edifício que hoje acolhe o Colégio dos Salesianos do Porto, na ponta mais a sul da freguesia do Bonfim), descemos a Rua de Gomes Freire até encontrarmos uma abertura numa correnteza de pequenas casas desabitadas.

Ganhamos, assim, acesso ao Bairro dos Moinhos, parcialmente em ruínas, no topo da encosta sobre o rio Douro. É quase meio-dia, está um dia esplendoroso de verão e o rio, cruzado constantemente por barcos turísticos, cintila lá em baixo, enquanto nós evitamos tropeçar em blocos de cimento soltos e nalgum lixo.

Já sabíamos que este bairro foi afetado pelas enxurradas de janeiro de 2023 e comprado pela câmara, por 900 mil euros, depois de saírem quase todas as duas dezenas de famílias. E que mora aqui apenas um jovem casal “de resistentes”, assim caracterizado pelo antropólogo Fernando Matos Rodrigues, que acompanha as ilhas e os bairros populares do Porto há perto de três décadas. Não os vemos, provavelmente por ser dia de trabalho.

À nossa frente, segue apressado Isolino, com a farda de uma empresa que presta serviços ao município de Gaia. “Vai almoçar a casa?”, arrisco, quando ele nos sorri de volta. “Acertou em cheio!”, responde, sem se deter por ali abaixo, só abrandando ao chegar aos quatro ou cinco degraus que desembocam na linha de comboio que liga as estações da Campanhã e de S. Bento.

Estacamos os três a olhar para os túneis, um de cada lado, e à escuta. Uma mulher, de mala de viagem aos pés, fala ao telemóvel com alguém a quem explica que vai chamar um Uber “lá na rua”. A música animada que ouvimos, baixinha, vem do interior da casa de Zainira, uma das quatro ou cinco da fileira junto à linha.

Reparamos primeiro no vestido de Zainira, amarelo e feito de capulana, e só depois no lenço com a bandeira de Cabo Verde que traz amarrado à cabeça. Cumprimentamo-la, explicamos-lhe ao que vimos e perdemos Isolino de vista porque, depois de uma curva, a tal, somos recebidas pelo imenso verde do Riobom e a Nossa Senhora duas vezes colada numa porta fechada de onde se solta um funaná.

“AQUI, ERA SÓ SILVAS”

A Lucília fotografa a porta, como não?, mas eu já me virei. “Este sítio é lindo”, digo em voz alta e escrevo no bloco de notas (como se pudesse esquecer as flores que cobrem a encosta, combinadas com o azul do rio ao fundo das hortas), enquanto ela acena para um homem que lhe acena de volta, dum socalco mais abaixo, no meio de cana-de-açúcar.

Não é a primeira vez que a fotojornalista da VISÃO aqui vem – a ideia desta reportagem, aliás, foi sua. Talvez o sr. Arlindo nem se lembre, mas chegamos à sua beira e ele faz que sim com a cabeça, chamando-nos para a sombra de um abacateiro que logo lhe dá tema de conversa. “Este ano, pariu muito atrasado, não sei se é por causa do clima ou do instinto da Natureza”, diz, apontando para os frutos pequeninos.

Um retrato dos dois podia ter como legenda “madeirense e cabo-verdiano adotados pelo Porto”. Se ela se instalou no continente aos 19 anos, para estudar Fotografia, ele chegou a Portugal aos 20, para cumprir o Serviço Militar Obrigatório, com mais de dois mil mancebos de Cabo Verde que tiritaram de frio em Vila Real. “Frio mesmo frio”, insiste. “Cinco graus abaixo de zero!”

Em jovem, Arlindo tinha pensado trocar a sua terra, Assomada, no interior da ilha de Santiago, por uma cidade holandesa, mas em 1971 a tropa trouxe-o até cá e por cá ficou. Já no Porto, começou por trabalhar 15 anos na fábrica de vidro Barbosa e Almeida, a verificar garrafas, e depois esteve mais uns quantos na fábrica de gelados Globo, como motorista, ganhando assim memórias em grande parte do País, conta a caminho do barraco onde guarda três belos galos.

Algures ainda na década de 1970, quando um amigo português o convidou a conhecer o Riobom, o cabo-verdiano morava nas Fontainhas, num quarto. “Aqui, era só silvas e a linha [de comboio], mas já fiz a minha casa”, recorda.

Nessa altura, Arlindo tinha a companhia da mulher e do filho, que entretanto se mudaram para o Bairro da Corujeira, em Campanhã. Ele preferiu ficar com o seu pedaço de terreno bem cultivado e a criação, vai contando, enquanto descasca com uma faquinha um pedaço de cana-de-açúcar que já não se atreve a chupar “por causa do dente fraco”.

HAVIA POUCOS AFRICANOS

Estamos nisto e aparecem Gino, que vive há 50 anos em Portugal e mora em Paranhos, e Carlos, cuja casa, a mais abaixo na escarpa, só visitaremos mais tarde.

Gino pega num pedaço de mangueira e empoleira-se numa cadeira para prender uns ramos da bananeira que cresce a um canto da horta do seu amigo Carlos. Traz vestida uma t-shirt da Iniciativa Liberal, mas diz não votar “neles”, embora alinha pela mesma ideia de que a imigração “descontrolada” deve ser regulada, “para evitar as vagas de criminosos”.

Arlindo ouve-o sem o interromper e depois toca-me num braço e sai-se com uma longa tirada e um recado no final: “A imigração é precisa. Se eu não puder fazer uma coisa, o outro faz, né? Eu não emigrei, vim obrigado, nem contava que com esta idade ia estar neste país, mas comecei a ganhar-lhe amor. Nós no mundo não somos nada, sabemos que temos de morrer. Para que quero 50 pratos de comida na mesa se só como um e os outros estão à fome? Se eu não puder ocupar um sítio, os outros que ocupem.”

No rio, reparamos agora no branquíssimo Porto Mirante, que teve a sua viagem inaugural em maio e oferece cruzeiros de uma semana no Douro, leremos mais tarde no site da empresa Viva Cruises. O navio-hotel, com espaço para 120 hóspedes, tem um lounge panorâmico, piscina e outros luxos que Arlindo não parece invejar. “Esse passa da Régua”, diz apenas, e fecha o seu pensamento assim: “Nós aqui só precisávamos de ajuda para limpar o mato.”

A corriola é uma espécie invasora. Achamo-la linda, mas dá cabo das hortas que garantem parte da subsistência da comunidade cabo-verdiana que começou a estabelecer-se nesta escarpa há quase 50 anos.

Quando os antigos operários da fábrica de curtumes saíram do Riobom, após o 25 de Abril, as casas já estavam muito degradadas, porque a família entretanto abrira uma outra fábrica, de sabões, no Freixo, e abandonara o bairro. Quase todos seriam realojados no âmbito do SAAL, um programa liderado pelo então secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, pioneiro a envolver a população no desenho das suas próprias casas e bairros.

Os cabo-verdianos que começaram a chegar ao Riobom tinham em comum o facto de não conseguirem arrendar uma casa nem ter acesso à habitação social, porque lhes faltava o título de residência, conta Fernando Matos Rodrigues. “E eram vítimas de racismo, porque havia poucos africanos no Porto”, lembra o antropólogo. “O bairro dava-lhes a invisibilidade de que necessitavam.” (Ver entrevista nestas páginas)

Ao construírem em cima de algumas das ruínas, abaixo dos Salesianos, fecharam o acesso ao bairro que antigamente se fazia através de um estradão imortalizado no filme Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira

CORREIO SÓ NA VENDA

Entre a saída de uns e a entrada de outros, o terreno foi ficando coberto de silvas até se tornar difícil lá entrar. Tomás “Didi” Lopes Tavares, que morreu nem há um ano, Arlindo Furtado e Acácio Gonçalves, todos da ilha de Santiago e dos primeiros a encontrarem ali uma alternativa para a falta de um teto, arrancaram o silvado, limparam o lixo e começaram a reconstruir as casas e a recuperar as hortas.

Ao construírem em cima de algumas das ruínas, no topo leste da encosta, abaixo dos Salesianos, fecharam o acesso ao bairro que antigamente se fazia através de um estradão imortalizado no filme Aniki-Bóbó, de Manoel de Oliveira, parte dele hoje ocupado por um campo de jogos do colégio.

“Como muitos trabalhavam nas obras, as casas foram bem restauradas. E criaram um ecossistema de horticultura urbana com espécies exóticas. A comunidade reergueu-se das ruínas e foi-se estruturando”, analisa Fernando Matos Rodrigues, que ganhou ali grandes amizades. “Agora, estão lá à volta de 20 famílias. Uns foram morrendo, outros foram chegando. Os antigos serão uns 17 e há algumas casas em condições muito más.”

Tanto tempo depois, quando se pergunta ao sr. Acácio o ano em que veio morar para o Riobom, responde, com um ar cansado: “Já nem me lembro… Era jovem e agora ando nos oitentas.”

Agora, de vez em quando o bairro é visitado por forasteiros e mesmo por turistas estrangeiros que decidem ver o que há para lá da abertura na Rua de Gomes Freire. Mas, durante muito tempo, para cá da linha de comboio só passavam os moradores, cada vez em maior número e quase todos cabo-verdianos.

Um dia, os carteiros deixaram de atravessar o Bairro dos Moinhos para chegar até ao Riobom. Vale-lhes, desde então, a boa vontade do sr. Luís Diogo, que tem uma venda na rua acima e sempre os amparou.

“Eles vão lá fazer compras e levam o correio que depois distribuem por todos”, conta o antropólogo, que conheceu o Riobom, na década de 1990, precisamente através de Luís Diogo, quando estava a acompanhar o Bairro do Nicolau, na escarpa junto às Fontainhas, “que o Rui Rio mandou abaixo, em 2013, um crime”.

Por estes dias, Acácio e a mulher andam ocupados com a remodelação da entrada da casa. O chão, novo, obrigou-os a retirar os móveis, uma canseira. Na mesma longa varanda partilhada por vários vizinhos, reencontramos Herica, entretida a ver televisão numa sala de estar muito bem decorada, que nos apresenta a sua madrasta, Cyntia, naquele momento a arranjar os pés de Zainira.

Cá fora, Maria de Fátima pendura um ror de roupa, enquanto o seu filho mais velho repara o telhado de uma das casas da família. O funaná continua a tocar no interior daquela primeira casa após a curva. O som não está alto, mas aposta-se que poderia estar e não incomodaria ninguém. Fernando Matos Rodrigues tem razão quando chama ao Riobom “uma varanda para o Douro que parece uma ilha”.

Uma horta diferente No Riobom, onde mora, Laura já sabe que tanto encontra bananeiras como parreiras de uva americana

“SÓ QUERO ESTA PAZ”

Quando o antropólogo começou a estudar as ilhas e os bairros populares do Porto, os seus alunos do curso de Arquitetura iam com ele desenhar e tirar fotografias para depois proporem projetos imaginários. “Eu falava de gentrificação e ninguém sabia o que era isso”, ri-se.

O palavrão também nada diz ao sr. Carlos, que se mudou para o Riobom ainda antes de se reformar da construção civil. Para trás ficou Braga, onde os dois filhos, que moram agora em Londres, cresceram e estudaram, ela Engenharia Civil e ele Medicina. Mais para trás ainda ficou o trabalho de pintor de navios na Lisnave – foi com o fecho do estaleiro de Cacilhas, em 2000, que ele se mudou para o Norte.

Por vezes, o bairro é visitado por gente de fora e por turistas estrangeiros que decidem ver o que há para lá da abertura na Rua de Gomes Freire

Nascido na cidade da Praia, não se imagina a regressar à capital de Cabo Verde porque só confia no seu médico português para lhe amparar os males do coração. É um homem robusto, mas a convalescer de uma cirurgia e por isso à espera da visita de um irmão que vai ajudá-lo a refazer os tetos da casa que nos mostra com orgulho.

Quando uns dias mais tarde, já em Lisboa, alguém me telefona dum número desconhecido, penso na cabidela prometida pelo sr. Carlos, mas é Alexandre, o vizinho que mora na casa mesmo por cima do túnel do comboio, com a melhor vista do bairro, a saber quando passa a reportagem na televisão. A confusão é habitual, a resposta sai-lhe invulgarmente simpática: “Revista é melhor, posso guardar.”

Tínhamos estado com ele no Riobom e ouvido como chegou a Portugal antes da independência de Cabo Verde e trabalhou na cofragem da Ponte de São João. De início, morou “lá no fundo”, por sugestão de Isolino, na casa que é hoje de Carlos. Mas, graças ao êxito profissional como empreiteiro (construiu, por exemplo, a fileira de prédios a seguir ao Casino de Espinho), refez uma vivenda, à beira do Campo 24 de Agosto, para si, a mulher e os filhos.

Até que a wsua vida deu uma reviravolta, das más, e hoje, os 400 e pouco euros de reforma não lhe chegam para arrendar uma casa, nem arredondando-os com a venda de sucata. “Vim aqui parar outra vez e agora já só quero esta paz”, disse-nos, entre goiabeiras. “Gosto de fazer a minha hortazinha e de criar as minhas galinhas. Se eu sair daqui, vou morrer cada dia.”

Ao telefone, o sr. Alexandre conta que foi pressionado para sair do Riobom “quanto antes”, mas que tem esperança de que a comunidade vença a luta pelo direito a ficar no bairro. “Graças a Deus, tudo tem solução, né?” É. Mas eu ponho as minhas fichas em Fernando Matos Rodrigues e na Nossa Senhora de Fátima amiga do funaná.

Estão confirmadas as nacionalidades das 16 vítimas mortais, depois de identificadas com a colaboração do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. É esta a lista divulgada pela Polícia Judiciária e, afinal, não inclui o alemão dado como morto.

– 5 portugueses;
– 2 sul coreanos;
– 1 suíço;
– 3 britânicos;
– 2 canadianos;
– 1 ucraniano;
– 1 americano;
– 1 francês

O cidadão alemão que estava dado como uma das vítimas mortais, foi encontrado pela família internado no Hospital de São José. É o pai do menino de três anos que foi retirado dos escombros do Elevador da Glória. A mãe está também internada, em estado crítico, mas estável, no hospital de Santa Maria.

Em comunicado, a Polícia Judiciária confirma que “o cidadão alemão dado, na quinta-feira, como sendo uma das vítimas mortais, veio a apurar-se, durante a noite, que se encontra internado no Hospital de São José”.

De tempos a tempos são lançadas para o debate público novas propostas relativas à avaliação dos juízes. Em regra, tais ideias surgem em pacotes de medidas que visam a apresentação de diretrizes para uma reforma do sistema de justiça. Foi o que voltou a suceder por estes dias com o surgimento de uma nova proposta partidária no sentido da necessidade de revisão do modelo de inspeção e avaliação do mérito profissional dos juízes baseada na taxa de decisões confirmadas em sede de recurso e na duração média dos processos que lhe são atribuídos. Não pondo em causa as preocupações legítimas de quem quer contribuir para o debate e para a melhoria do sistema, a verdade é que a questão impõe uma análise mais profunda, atento o seu potencial de risco para a independência dos tribunais e para a arquitetura do Estado de Direito.

A nossa Lei Fundamental é muito clara quando refere que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” (artigo 203º da Constituição da República Portuguesa). Por sua vez, o Estatuto dos Magistrados Judiciais determina que estes “julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores” (artigo 4º, nº1). As normas mencionadas são a tradução em letra de lei do princípio da independência. E este não corresponde a uma fórmula de natureza meramente simbólica, mas antes constitui a espinha dorsal da função jurisdicional em qualquer regime democrático e é o único garante de que o juiz pode e deve decidir sem receio de pressões externas, sejam elas políticas, económicas, avaliativas ou disciplinares.

Quando se propõe avaliar o mérito de um juiz com base na taxa de confirmação das suas decisões por tribunais superiores está-se a preconizar, na prática, uma distorção da liberdade e da imparcialidade que devem presidir à decisão. A ideia de que uma sentença confirmada é necessariamente uma “boa” sentença, e uma revogada é “má”, constitui uma simplificação perigosa, desde logo, porque o sistema judicial não é matemático, admitindo diferentes interpretações da lei que são, não só, possíveis como desejáveis num sistema que reconhece a complexidade da vida real e das matérias jurídicas. O facto de um tribunal superior entender de forma diversa não significa, por si só, que o juiz da primeira instância errou. Muitas vezes, o desacordo entre instâncias reflete a riqueza interpretativa do Direito e não falhas técnicas ou éticas.

Mas mais. Admitir que um juiz possa ser beneficiado na sua avaliação pelo facto das suas decisões serem confirmadas no tribunal superior é, na prática, ignorar que nos tribunais superiores as divergências de entendimento também existem, quer entre tribunais de recurso, quer entre secções desses tribunais, quer até entre os juízes que aí exercem funções. Por conseguinte, indexar a carreira ou a avaliação dos juízes à percentagem com que as suas decisões são confirmadas pode induzir, de forma indireta, o juiz a optar por entendimentos que sejam alinhados com os dominantes nos tribunais superiores, tendo em mente não a melhor solução do caso concreto, mas as consequências da assunção de um entendimento distinto ou inovador. E esse é um cenário que nenhuma força partidária verdadeiramente democrática certamente desejará: o de ter juízes condicionados, temerosos da divergência jurídica e que alinhem por um diapasão de entendimento que não é o seu, em nome de um cauteloso seguidismo.

Já no que se reporta à avaliação dos juízes tendo por base a duração dos processos, a verdade é que esse fator avaliativo não pode ser apresentado como uma novidade. Com efeito, resulta expressamente do Regulamento de Inspeções do Conselho Superior da Magistratura (Regulamento nº852/2021) que uma das principais componentes avaliativas dos juízes é, precisamente, a sua capacidade de adaptação ao serviço, entre outras, na vertente dos prazos de decisão e do tempo de duração dos processos [artigo 12º, nº3, al. d)].

Isto é, aos dias de hoje, a matéria relativa à eficiência, produtividade e celeridade já é contemplada nos relatórios de inspeção dos juízes por parte dos respetivos inspetores judiciais. Contudo, e porque, de facto, de matemática não se trata, mas antes de uma função que visa dirimir conflitos de pessoas concretas, com nome, com rosto e com vidas, aquela alínea não pode ser levada em linha de conta de forma isolada por quem avalia. Com efeito, embora os atrasos que persistem em algumas áreas da justiça constituam um problema que deve ser aplacado, a verdade é que a solução não pode jamais passar por pressionar os juízes a resolver processos em tempos que não atendam à complexidade das matérias em causa, ao volume de serviço ou às condições em que o serviço é prestado. A justiça célere é um objetivo legítimo e um direito dos cidadãos, tal como o é não verem os seus casos pessoais serem julgados por uma justiça apressada e sem o devido grau de análise e ponderação.

É muito importante que se compreenda que cada processo judicial tem a sua própria dinâmica. Se determinados casos são simples e resolúveis num curto espaço de tempo, outros podem exigir longas e complexas produções de prova, análise documental e pericial, sempre com respeito pelo contraditório e pelos direitos processuais das partes no litígio. Deste modo, o critério da duração dos processos não pode valer como critério avaliativo independente, que prescinda de uma análise mais global das circunstâncias. Podendo a falta de celeridade ser um indicador relevante de uma possível situação patológica e, como tal, merecedora de uma análise inspetiva mais atenta, a verdade é que ceder, sem o devido equilíbrio e razoabilidade, à lógica simplista da avaliação mais favorável para quem decida mais depressa, mais não é do que a criação de um incentivo à superficialidade com todos os perigos que daí decorrem no que se reporta à qualidade das decisões.

Por outro lado, fixar o ónus da duração dos processos apenas na figura do juiz mais não é do que ficcionar um sistema que não existe, partindo-se da errónea ideia de que o processo não está sujeito a outras contingências e fatores, que vão desde a escassez de meios humanos e técnicos, à sobrecarga processual ou à interação com outras entidades cuja atividade também se dirige aos tribunais e que têm, também elas próprias, as suas contingências.

Em qualquer caso, e sem prejuízo de todos os sistemas deverem ser objeto de atualização e melhorias, importa não perder de vista que não se deve ceder à tentação de alterar os critérios de avaliação dos juízes sem que se ponderem devidamente as respetivas consequências para os princípios constitucionais em que aqueles devem estar ancorados. O sistema de freios e contrapesos típico do Estado de Direito exige que o poder judicial mantenha a sua separação relativamente aos restantes poderes do Estado. Avaliar juízes com base em indicadores de natureza matemática, sem ponderar a complexidade do caso, do regime legal aplicável e das diversas soluções plausíveis de direito, é fragilizar esse equilíbrio essencial, minando-se a confiança dos cidadãos e a sua perceção de que os juízes atuam livres de pressões externas.

Os debates tendo em vista a melhoria do sistema são mais do que legítimos, mas não só não podem prescindir dos contributos de quem está no terreno, como não podem ceder ao simplismo redutor dos meros indicadores estatísticos. A realidade é mais rica e não há cidadão que queira ver o seu caso decidido numa linha de montagem.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

De acordo com o jornal Expresso, o reitor António Sousa Pereira diz que recebeu pressões de várias pessoas “influentes e com acesso ao poder”, sem querer adiantar nomes, para permitir o acesso à Faculdade de Medicina de 30 candidatos que obtiveram menos de 14 valores na prova de conhecimentos exigida no processo de seleção, o que é automaticamente motivo de exclusão, de acordo com o regulamento do concurso, publicado em “Diário da República”.

O assunto, escreve o Expresso, chegou ao ministro da Educação, que ligou ao reitor a manifestar disponibilidade para que se criassem vagas extraordinárias de modo a que estes alunos (que não tinham obtido a classificação mínima na prova exigida no concurso especial de acesso para licenciados noutras áreas) tivessem lugar na Faculdade de Medicina.

“O ministro gostaria que isso fosse feito, mas eu disse-lhe: ‘Eu não o faço. Eu cumpro a lei. Se o senhor ministro entender que deve ser de outra maneira, dê-me a ordem e eu executo-a'”, disse o reitor ao Expresso.
O ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, confirmou ao jornal a existência da conversa referindo que “durante o telefonema foi manifestada a disponibilidade para a criação de vagas supranumerárias, desde que, para o efeito, existisse base legal”.

No âmbito deste concurso especial, a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto abriu, para o ano letivo 2025/26, 37 vagas, a que concorreram cerca de 50 candidatos. Destes 50 candidatos, apenas sete tiveram 14 ou mais valores na prova, realizada em maio, estando por isso em condições de entrar.

Escreve o Expresso que já depois de conhecidos os resultados do exame, a comissão de seleção do concurso, composta por seis professores da faculdade, “deliberou propor a aplicação excecional’ de uma nota mínima de 10 valores, em vez dos 14 estabelecidos no regulamento, o que permitia a entrada a mais 30 estudantes”.

“E, sem informar o reitor da UP, a quem cabe a competência exclusiva de homologar os resultados definitivos, notificou estes candidatos de que tinham entrado no curso”, refere o jornal.

O reitor “só teve conhecimento vários dias depois, a 7 de julho, e recusou homologar a lista de colocados por considerar que a entrada daqueles candidatos era ilegal à luz do regulamento”.

No seguimento da decisão, foram admitidos apenas os sete que tiveram mais de 14 valores, tendo as restantes 30 vagas inicialmente abertas neste contingente revertido para o concurso nacional de acesso ao ensino superior, como estipula a lei.