Por mais revisões ou releituras que se façam da História, ninguém no seu perfeito juízo pode acusar o ex-Presidente dos EUA Ronald Reagan de ter sido um perigoso esquerdista. Ele foi, isso sim, conhecido por ser um exímio comunicador dos ideais conservadores. E o homem que ganhou fama como ator em Hollywood antes de chegar à Casa Branca também é lembrado, mesmo por muitos dos seus adversários, pelo seu pragmatismo político – aquele que lhe permitiu, por exemplo, manter uma relação cordial e amistosa com Mikhail Gorbachev, essencial para o fim da Guerra Fria e para a concretização do seu objetivo de fazer dos EUA, no seu tempo, a grande potência hegemónica do planeta.
Foi com essa convicção de dever cumprido que Ronald Reagan se despediu da Presidência, a 19 de janeiro de 1989, com um discurso marcante que agora pode ser lido no site da biblioteca com o seu nome – onde somos recebidos com o aviso de que alguns dos serviços estão agora encerrados, devido ao shutdown, que afeta a Administração Trump.
Nesse discurso, o conservador Reagan foi claro no “pensamento final” que pretendeu transmitir. E identificou “a fonte principal” que, na sua opinião, mais contribuiu para a grandeza da América. Fê-lo de forma clara e eloquente: “Lideramos o mundo porque, de forma singular entre as nações, recrutamos o nosso povo – a nossa força – em todos os países e em todos os cantos do mundo. E, ao fazê-lo, renovamos e enriquecemos continuamente a nossa nação.”
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Para Ronald Reagan, um otimista inveterado, a América iria continuar a ser “grande” desde que soubesse “dar vida aos sonhos”, em claro contraste com “os países que se apegam a um passado obsoleto”.
“Graças a cada vaga de novos imigrantes que desembarca nesta terra de oportunidades, somos uma nação eternamente jovem, sempre a transbordar de energia e de novas ideias, sempre na vanguarda, sempre na liderança mundial rumo à próxima fronteira”, afirmou ainda Reagan nesse discurso de despedida. Com um aviso para o futuro: “Se algum dia fecharmos as portas para novos americanos, perderemos de imediato a nossa liderança mundial.”
Se quisermos perceber como mudou o Partido Republicano, desde Ronald Reagan até Donald Trump, este discurso é absolutamente elucidativo. Revela, em comparação com o que é hoje a retórica oficial de Washington, duas visões sobre a América e sobre o mundo. E demonstra que, como a História nos ensina, as campanhas contra a imigração, que povoam todos os discursos populistas de hoje, não são baseadas no conhecimento nem na razão. Servem unicamente como peças de propaganda, destinadas a criar divisões irreconciliáveis na sociedade, a abalar a confiança nas instituições, a espalhar o medo e, com isso, a abrir caminho para o poder ditatorial, como única forma de restabelecer uma “ordem” que, à custa da mentira e da desinformação, grande parte da população perceciona como estando destruída.
É incrível ver, agora à distância, como Reagan e Trump parecem de partidos diferentes, em relação à imigração. E como um mesmo slogan usado pelos dois – tornar a América grande outra vez – pode ganhar significados distintos.
O pior, no entanto, é o efeito de contágio no resto do mundo. Passámos de um tempo em que os partidos conservadores tinham uma visão otimista sobre a imigração – essencial, por exemplo, para o desenvolvimento económico, social e tecnológico de muitos países, incluindo na Europa – para uma época em que, com receio do crescimento dos populistas, os mesmos partidos do centro-direita dão guinadas para o extremismo, só para tentarem manter ou recuperar o eleitorado que foi manietado pelo medo do “outro”.
E essa é uma das maiores tragédias dos nossos dias, numa sociedade cada mais intolerante e polarizada, dominada pela ditadura invisível dos algoritmos e em que até os valores humanistas são considerados retrógrados ou ultrapassados e, portanto, facilmente substituíveis por uma qualquer Inteligência Artificial – que não se queixa, trabalha as horas que forem precisas e… não precisa de autorização de residência. É assim que, sem o perceberem, os países ficam, afinal, mais pequenos, outra vez
Frente a frente, a Casa da Covilhã e o restaurante Bangla, o mais antigo dos 22 restaurantes do Bangladesh que se encontram na Rua do Benformoso, olham-se ao espelho. Anoitece com uma chuva miudinha e alguns sócios da casa regional, onde volta e meia se comem umas favas ou um cozido à portuguesa, assomam às janelas. Vejo-os a partir do Bangla, com um palak paneer (prato de creme de espinafres e queijo) à frente, recordando que há dias um vizinho do meu bairro também me mandou para a minha terra, nas beiras. O ridículo da situação foi recebido com uma gargalhada, do alto do privilégio de portuguesa branca, (ainda) com capacidade económica para viver no centro da capital. A intenção, no entanto, estava lá: ganhar o debate fazendo o outro sentir-se um estranho, fora do grupo. Quando se abrem estas caixas de Pandora…
A questão é que nem a Casa da Covilhã nem o Bangla se refletem por serem entidades estranhas a esta cidade milenar; eles são Lisboa. Tal como o músico e poeta Mostafa Anwar Swapan, 58 anos, que atua em vários bares e casas de concertos da capital. Carregando a sua tambura colina acima, um instrumento de corda semelhante à sitar indiana, com um som do outro mundo, ele é parado mais de uma dezena de vezes por conhecidos que o cumprimentam ou por turistas americanos que lhe pedem para o fotografar.
O “sonho europeu”: pagar 20 mil euros por um visto arranjado por “agentes” vulgarmente conhecidos como máfia, trabalhar, lutar pela legalização, descansar num beliche
A sua família é do distrito de Patuakhali, no sudoeste do Bangladesh, onde os portugueses chegaram em 1518, estabelecendo uma feitoria e uma alfândega em Chittagong, cidade a que chamaram “Porto Grande de Bengala”. Mostafa enumera as palavras que ficaram: janala (janela), chabi (chave), balti (balde), almari (armário), sabão, toalha e tantas outras. “Foi Manuel da Assunção, um padre jesuíta, quem fez a primeira gramática da língua bengali”, diz-nos, antes de escrever no caderno biroho para nos dizer que a saudade também existe em bengali.
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Mostafa é um cientista de grande cultura musical. Formado em Física Nuclear, em Daca, foi professor universitário, trabalhou no Ministério da Ciência e Tecnologia do Bangladesh, fundou o seu próprio laboratório com projetos para empresas farmacêuticas internacionais, trabalhou para as Nações Unidas, mas no seu país começou a sentir-se pressionado por “grupos corruptos” na sua área de trabalho. “Um dia, fui a uma conferência musical em Alexandria, no Egito, olhei para o Mar Mediterrânico e pensei: ‘Como será Portugal?’”, conta. Chegou a Lisboa em 2013, com uma bolsa de mestrado na Nova SBE para estudar Gestão.
Continuou a trabalhar nos seus projetos internacionais, para a União Europeia e as Nações Unidas, até que a pandemia encerrou tudo. Mostafa passou um mau bocado e foi sobrevivendo como músico. Deixou de poder enviar dinheiro para a mulher e as três filhas, mas não lhe passou pela cabeça deixar Portugal. “A vida não pode ser só trabalho e aqui tenho comunidade, amigos de muitas nacionalidades, convívio”, diz, enquanto dedilha a tambura e uma família de turistas gregos, achando que ele estava a tocar na rua para ganhar dinheiro (na verdade, estava a tocar para a reportagem da VISÃO), lhe deixa cinco euros.
1 de Novembro de 2025 – Portugal, Lisboa. Reportagem sobre a comunidade do Bangladesh. FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/VISÃO
Apoio no feminino Farhana Akter e Selina Sultana, duas mulheres que imigraram sozinhas. O marido de Selina juntou-se a ela entretanto. Farhana é cofundadora da Cooperativa Bandim, onde as mulheres costuram e fazem bordados que colocam à venda na loja, em Arroios, Lisboa. FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/VISÃO
A viver num pequeno quarto alugado, começou um novo trabalho que lhe enche as medidas: mediador cultural num agrupamento de escolas nos arredores de Lisboa, onde faz a ponte entre as crianças e as famílias estrangeiras e a escola, para facilitar a integração. O primeiro salário seguirá inteiro para as duas filhas que estudam no estrangeiro.
O medo mútuo
Com todas as diferenças que cada ser humano carrega consigo, as histórias repetem-se nos seus traços gerais: trabalhar, enviar dinheiro para a família, tentar trazer a família para cá, debater-se num sem-fim de burocracias e dificuldades com a legalização dos documentos, gerir todos os cêntimos para conseguir pagar uma casa ou um quarto ou um beliche num quarto, perceber que o “sonho europeu” vendido no Bangladesh é uma falácia depois de se ter perdido 20 mil euros para pagar o visto arranjado por “agentes” vulgarmente conhecidos como máfia.
O medo incutido nos portugueses sobre as pessoas do Bangladesh é construído em cima de mitos e de uma infinita ignorância sobre os hábitos e a cultura daquele país – e não, as mulheres bengalesas não andam todas de burca na rua, não é assim tão habitual em Daca, capital do Bangladesh, quanto mais em Lisboa!
Depois das grandes vagas de imigração africana, europeia de leste e brasileira, os imigrantes do sul da Ásia são agora a face mais visível das comunidades estrangeiras em Portugal, embora a mais numerosa continue a ser a brasileira. Segundo o último relatório da AIMA, a 31 de dezembro de 2024 registavam-se 1 543 697 cidadãos estrangeiros a viver no nosso País, um terço dos quais oriundos do Brasil (484 596). Seguem-se a Índia (98 616), Angola (92 348), Ucrânia (79 232), Cabo Verde (65 507), Nepal (58 086), Bangladesh (55 199), Reino Unido (48 238), Guiné-Bissau (47 252) e Paquistão (41 508).
A comunidade bengali anda com medo, por causa dos discursos e das agressões. Sentem também que não podem contar com as autoridades
Na mesma data, a Direção-Geral dos Serviços Prisionais registava 12 360 reclusos, condenados e preventivos. Destes, 2 151 (17,4%) eram estrangeiros, 925 oriundos de países africanos, 740 sul-americanos, 365 europeus e 121 vindos de “outros países”. Nestes 121 (0,1% do total) estarão os do sul da Ásia, entre outros.
À falta de argumentos baseados em factos estatísticos, recorre-se ao medo da religião. Mas não consta que os muçulmanos andem de porta em porta a converter católicos. Porque se tornaram os imigrantes do Bangladesh um alvo?
“Os bengaleses são empreendedores. Abrem restaurantes, lojas, na Baixa de Lisboa haverá umas 600 lojas de imigrantes do Bangladesh. Estão no atendimento ao público, dão a cara. Quem imigra não são os mais pobres, esses não têm dinheiro para a viagem e para o visto. Vem uma classe média baixa, que vende as suas propriedades na terra para poder pagar o visto e começar um negócio aqui. Querem sustentar a família e viver melhor, tornar-se uma verdadeira classe média. Também há muita gente que vem enganada por aquilo que foi vendido como o ‘sonho europeu’”, descreve Rana Taslim Uddin, 59 anos, empresário e tradutor, presidente da associação Portugal Bangladesh Friendship e do Centro Islâmico do Bangladesh.
Rana chegou a Portugal em 1991. Depois de se licenciar em Ciências Políticas, viu-se obrigado a sair do Bangladesh por razões políticas, perseguido pelo regime militar do final dos anos 80. Em Hong Kong, trabalhava numa empresa de importação e exportação quando o patrão o mandou para Portugal, avisando-o: “É um país muito atrasado, como o norte de África, mas como tem sol, podemos vender lá muitos óculos de sol.”
Concentração No Porto, a comunidade encontra-se maioritariamente na zona da Batalha, Santa Catarina e Sé. Em Lisboa é na Baixa e Martim Moniz. São assim mais facilmente identificados, o que leva a provocações
“Depressa aprendi a falar português, fiz muitos amigos entre os estudantes que frequentavam o Bairro Alto, achei os portugueses cordiais, sem sombra de racismo ou xenofobia. Até há cinco anos, estava tudo tranquilo. Nos últimos dois anos, piorou ainda mais. Querem que me vá embora? Não vou, Portugal é a minha terra, os meus filhos são lisboetas e vou morrer aqui. Vivo em Lisboa há muitos mais anos do que muitos deputados do Chega”, ironiza.
O facto é que a comunidade sente medo, sentimento para o qual muito contribuem os homicídios. Na semana passada, Shamim Bhai, 34 anos, foi mortalmente esfaqueado por dois indivíduos que tentaram roubar-lhe a bicicleta elétrica com a qual entregava comida ao domicílio. Trabalhos como a entrega na Uber Eats ou na Glovo são, muitas vezes, um dos part-times que os imigrantes encontram para compor o salário, depois dos trabalhos na construção civil ou nas cozinhas dos restaurantes. Shamin enviava, todos os meses, dinheiro para a mulher e a filha bebé.
Em junho, no Feijó, Almada, outro imigrante, de 44 anos, foi baleado, frente à mulher grávida e às duas filhas menores, quando dois assaltantes tentaram entrar na sua mercearia para a roubar. E há dois anos, dois irmãos portugueses mataram Gurpreet Singh, 26 anos, com um tiro de caçadeira disparado através de uma janela, enquanto o imigrante indiano estava no quarto. A ideia dos irmãos era matar todos os imigrantes que viviam na casa, situada nas Praias do Sado, em Setúbal.
Na cooperativa das mulheres
Várias agressões contra homens imigrantes do sul da Ásia têm sido noticiadas e muitas outras não são. Porque as mulheres também são vítimas, embora não cheguem aos jornais. Há pessoas a tentarem tirar-lhes os lenços da cabeça na rua ou nos supermercados, como os relatos que chegam a Farhana Akter, 43 anos, mediadora cultural. Há pessoas que as insultam na rua, como já aconteceu a Shubarna Akter, 29 anos. Embora a jovem nem tenha conseguido entender ao certo o teor dos insultos, o tom agressivo deixou-a bastante assustada e percebeu que se referiam ao seu hijab (o lenço com que cobre o cabelo).
“O que as mulheres do Bangladesh vestem é a kamiz (blusa comprida ou túnica), com umas calças por baixo e sempre com o kurti-orna (écharpe). Outras vestem o sharee (sári). Ou então roupa ocidental, como as estudantes que estão no estrangeiro. A nossa roupa tradicional não é a burca”, explica Farhana, que era professora de Química em Daca e emigrou sozinha para continuar os estudos. Tirou uma pós-graduação na Universidade de Lisboa, em Desenvolvimento Comunitário. “Nós temos uma cultura de obediência, mas não só as mulheres, temos todos. Não chegamos aos 18 anos a dizer que agora fazemos o que queremos. Ouvimos a família e tomamos as decisões de vida em família, mesmo sendo já adultos”, acrescenta.
Farhana trabalha no CLAIM (Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes) da Associação Renovar a Mouraria e desenvolve também projetos ligados ao empoderamento das mulheres migrantes. Leva-nos à cooperativa que cofundou, a Bandim, e que tem uma loja no bairro de Arroios, onde se vende artesanato e tecidos bordados por mulheres migrantes que deixam lá o seu trabalho para ganhar um dinheiro extra. A Bandim promove vários workshops, muitos deles ligados à costura e aos bordados.
Ali encontramos Selina Sultana, 45 anos, que com as suas costuras acrescenta rendimento ao que o marido ganha, a conduzir um TVDE. Selina e o marido (os três filhos, já adultos, estão no Bangladesh) dividem um apartamento com o irmão de Selina, Sharif Mutasim Billah, 29 anos, e a sua mulher, Shubarna Akter. É um T2 pequenino, num rés do chão na Falagueira, Amadora, numa zona humilde, pelo qual pagam 900 euros mensais de renda. O apartamento não tem mais de 60 metros quadrados.
Sharif e Shubarna formaram-se em várias universidades, dividindo o curso em semestres pelas grandes cidades europeias. Num desses semestres vieram parar à Universidade do Algarve, onde tiraram o mestrado de Ecohidrologia Aplicada. Sharif está agora a trabalhar como administrativo num instituto de línguas. “Quando viemos era tudo mais pacífico, agora as pessoas temem pela sua segurança e não têm a quem recorrer. Há uns tempos, um casal de conterrâneos teve a sua mercearia assaltada. Chamaram a polícia e a polícia ainda os levou sob custódia porque tinham um documento fora do prazo”, conta o imigrante, que ainda não perdeu a esperança de encontrar trabalho na área ambiental em que se formou.
A sétima comunidade de imigrantes mais numerosa em Portugal tem cerca de 55 mil pessoas. São empreendedores, abrem negócios, criam emprego, tornam-se mais visíveis
Sharif e Shubarna fazem contas à vida, olham para o preço das casas e da comida, acham o custo de vida caríssimo em relação aos salários e estão também a tentar emigrar de novo, para outro país europeu onde os salários sejam mais compensadores. Com a sua juventude e os estudos superiores, o tempo é de lutar para se viver da melhor forma possível, com segurança e qualidade de vida.
Como diz Rana Taslim Uddin, “quando alguém não está bem, não precisa que ninguém o mande embora, ele próprio vai”. Sempre funcionou assim nos picos de imigração – o mercado determina a vontade de entrar e sair, enquanto houver emprego, pois as pessoas vêm para trabalhar e ganhar dinheiro e não para aceder a subsídios, como mostra bem o saldo positivo dos imigrantes nas contas da Segurança Social. Em 2024, as contribuições dos imigrantes totalizaram 2 200 milhões de euros, sendo que apenas receberam 380 milhões de euros em prestações sociais, originando um saldo positivo de 1,8 mil milhões de euros.
Um CEO na cozinha
O Bangladesh tem uma economia emergente com 174 milhões de habitantes, tendo conquistado a independência do Paquistão em 1971, depois de uma guerra civil. A inflação alta e os baixos salários levam as pessoas a procurar vidas melhores noutros países, embora através de redes internacionais que fornecem vistos a altos preços.
“A estabilidade política, a possibilidade de crescimento nas carreiras ou a mudança de ramo atraem as pessoas para muitos países europeus. Além disso, conseguem dar aos filhos uma educação internacional”, diz Farhana Akter. As provações pelas quais passam, sobretudo nos primeiros anos de imigração, os beliches em quartos divididos com mais pessoas porque é impossível suportar uma renda sozinho, as longas horas de trabalhos acumulados, a saga kafkiana para tratar dos documentos… tudo isso é suportado em nome de uma esperança, a tal que Pandora ainda conseguiu guardar na caixa.
Graças a Farhana conseguimos chegar a outras mulheres bengalesas porque nesta altura todos se retraem, com medo, preferem passar o mais despercebidos possível numa sociedade onde se sentem um alvo político. “Os portugueses são pacíficos, este tipo de ódio atual é uma novidade. Mas se assim continua, quem sabe se algum dia recuperarão a situação anterior que tinham? O hábito do ódio instala-se”, lamenta Farhana que, acima de tudo, quer passar uma mensagem: “Regulem a imigração como quiserem, com mais entradas ou menos entradas, isso é uma decisão do país. Mas não tratem mal quem está cá a trabalhar.”
O medo alastra-se mesmo entre os ativistas que dão a cara pela comunidade, temendo represálias contra as suas famílias. O jornalista Farid Patwary, 43 anos, correspondente em Portugal de um jornal diário do Bangladesh, recebe mensagens ameaçadoras nas redes sociais e chegou a ser visado num vídeo por um deputado do Chega. “Há cinco anos não acontecia nada disto, não havia esta agressividade. Como é possível que isto aconteça num país que trouxe tantas culturas para a Europa e que foi pioneiro a abolir a escravatura?”, espanta-se.
Além de jornalista, Farid é tradutor. Mas já teve outras vidas. Em Daca, era CEO de uma das cinco maiores empresas do ramo imobiliário no Bangladesh. A sua ideia de procurar uma vida melhor não passou pela questão económica, mas pela qualidade de vida. “Trabalhava demasiadas horas, era muito stressado, só folgava meio dia por semana. Tinha uma filha bebé e só a via a dormir, não tinha tempo para passear com a família ao fim de semana”, conta o licenciado em Gestão.
Jornalistas Amena Begum, 29 anos, reporta a partir do Porto para um canal do Bangladesh; e Farid Patwary, 43 anos, a partir de Lisboa para um jornal diário
Quando a mãe morreu, no final de 2014, a tristeza apoderou-se dele e resolveu fazer uma grande viagem pela Europa – Holanda, Alemanha, Bélgica, França e… Portugal. “Fiquei surpreendido com Lisboa. Pessoas amigáveis, bom clima, boa Natureza. Pensei: ‘Aqui posso sair do trabalho e ir beber um café frente ao rio ou frente ao mar para relaxar antes de ir para casa… Prolonguei as férias e acabei a falar com um advogado para nos tratar dos papéis”, diz. A filha, na altura com 2 anos, entrou na escola, e Farid empregou-se num supermercado. Depois tentou o seu próprio negócio, não resultou, e foi cortar batatas e legumes na Adega Machado, um restaurante típico de fado.
De CEO a cortador de batatas? “A cozinha relaxava-me. Ia substituir uma pessoa durante 15 dias e acabei por ficar como estagiário, depois ajudante de cozinha, depois cozinheiro de 3ª, depois cozinheiro de 2ª… O chefe Alexis Gregório ensinou-me tudo sobre cozinha portuguesa. O que eu mais gostava de fazer era o bacalhau espiritual. O bacalhau é muito sensível, tem de ser bem cuidado, saber exatamente em que ponto se mistura o azeite, o alho, as quantidades ideais. E, sim, também cozinhava lombo de porco. Não comia, mas cozinhava sem problemas e provava para ver se estava bom”, conta.
Como bom jornalista, antecipa as perguntas que poderemos fazer. Mas esta não estava no nosso guião: “Várias vezes me perguntavam quantas mulheres tinha. ‘Só uma’, respondia. ‘Mas podes ter várias!’, retorquiam. Sim, posso ter várias, mas também posso ter só uma. É assim a liberdade. A nossa cultura não é da Arábia. No Bangladesh as mulheres trabalham, conduzem, tivemos duas mulheres primeiras-ministras, a última das quais até ao ano passado”, sublinha. Farid sente que nem todo o racismo vem do ódio – há uma parte que nasce da ignorância, do medo de conhecer o outro. “Tive um colega que era muito xenófobo, mas depois de conviver comigo mudou de opinião. A falta de conhecimento também provoca estas reações.”
Farid, que nos tempos livres faz ações de voluntariado na Santa Casa da Misericórdia e no Banco Alimentar, começou a seguir Portugal, pela primeira vez, no Mundial de Futebol de 2002, porque “adorava o Luís Figo”. Agora há o Cristiano Ronaldo, António Guterres na ONU, Lisboa a ganhar prémios de turismo, e as pessoas do Bangladesh ficam atraídas pela fama do nosso país. “As nossas bandeiras têm as mesmas cores e, quando há campeonatos, muitas janelas em Daca exibem a bandeira portuguesa.”
O jornalista descreve a comunidade bengali em Portugal como sendo geralmente “instruída (há muitos licenciados, inclusive médicos), empreendedora, que se emprega nos restaurantes, nas lojas, na hotelaria, nos serviços de entregas e na agricultura, à procura de qualidade de vida num país onde há emprego”. Porque, no fim de contas, estes imigrantes “só querem é trabalhar”.
Outra jornalista, Amena Begum, 29 anos, que faz reportagens sobre Portugal para um canal do Bangladesh, também trabalha como assistente social no Espaço T, no Porto, dando apoio a imigrantes com a documentação, com as aulas de Português e na procura de emprego. “Vou a festas locais, a eventos culturais, e adoro conhecer tradições, música e gastronomia. Sinto que quando nos aproximamos da cultura do país onde vivemos, a integração se torna muito mais natural. A cultura portuguesa já faz parte do meu dia a dia e isso deixa-me feliz”, diz-nos, acrescentando que se sente “bem tratada, com respeito e gentileza”. “Os portugueses são, na maioria, muito educados, tolerantes e humanamente solidários. Vejo o futuro com esperança e confiança. Quero trabalhar, crescer e contribuir para a sociedade que me acolheu”, refere.
Trabalho dia e noite
A Rua do Benformoso, em Lisboa, tornou-se um símbolo da comunidade bengali, com as suas muitas lojas e restaurantes, um autêntico centro comercial, onde se compram as mercearias, se trata dos telemóveis e também se encontra ajuda com os documentos. Foi ali que, também simbolicamente, uma ação gratuita e inconsequente da polícia encostou os imigrantes à parede, como se fossem criminosos.
“A comunidade do Bangladesh tende a concentrar-se num mesmo local, ao contrário de outras comunidades que se encontram mais dispersas. Tem um forte espírito comercial, o que explica essa concentração e a consequente visibilidade. No Porto, estão maioritariamente na zona da Batalha, Santa Catarina e Sé; em Lisboa, no Martim Moniz. Por essa razão, são mais facilmente identificados, o que às vezes leva a provocações. O mesmo acontece com a comunidade indiana, embora muitos deles não sejam muçulmanos”, explica Abdul Rehman Mangá, presidente do Centro Cultural Islâmico do Porto. Nascido em Moçambique no tempo colonial, formado em Contabilidade, veio para Portugal em 1984 e sempre se considerou português. Serviu nas Forças Armadas e sente orgulho tanto na sua nacionalidade como na sua fé muçulmana.
Nas ruas, há quem tente tirar à força os lenços da cabeça das mulheres e as insulte de forma agressiva quando elas usam o hijab
Nos anos 90, os imigrantes do Bangladesh eram poucos no nosso país e trabalhavam sobretudo como vendedores de rua. “Com o tempo, começaram a arrendar lojas baratas na Rua Chã, criando os seus próprios negócios. Isso atraiu outros compatriotas, inclusive famílias que viviam noutros países europeus, contribuindo para o crescimento da comunidade. Atualmente, muitos membros trabalham em supermercados e armazéns, procurando uma vida melhor. Trabalham arduamente, alguns de dia nos armazéns e à noite como estafetas, para poderem enviar dinheiro às famílias, já que o custo de vida cá – especialmente a habitação – aumentou muito”, continua Abdul Rehman Mangá.
O Centro Islâmico recebe regularmente alunos de escolas e universidades para conhecerem melhor o Islão. São promovidas palestras e conferências, especialmente desde o 11 de Setembro de 2011, para esclarecer que as guerras e os conflitos nada têm a ver com a religião, mas sim com questões políticas e territoriais. À procura de um espaço maior para uma mesquita à altura do crescimento da comunidade, o líder islâmico do Porto sublinha a importância do diálogo inter-religioso e da convivência pacífica entre os vários credos.
Alam Shah Kozol, 53 anos, comerciante, é o fundador da Associação Comunidade do Bangladesh. Chegou a Lisboa em 1995, onde foi rececionista numa pensão. Cinco anos depois, mudou-se para o Porto, ainda sem turistas quase, e abriu uma loja de bijuteria. Agora o que não falta são turistas nas suas lojas de souvenirs. A família juntou-se a ele em 2002 e três filhos já nasceram na Invicta.
Nesta zona da Batalha, Alam Shah Kozol, que se filiou no PS e trabalhou na Junta de Freguesia do Bonfim, é muito conhecido e cumprimentado pelos transeuntes. Através da sua associação, dá apoio a muitos dos seus conterrâneos, que se empregam na agricultura, nas fábricas ou nos grandes armazéns, como os da Sonae, na Maia. É o caso de Dulal, que chegou a Portugal há três anos e luta para conseguir trazer a família. Já tem dois filhos consigo, para que possam estudar cá, mas a mulher ficou no Bangladesh com outro filho, até conseguirem arranjar uma casa para acolher toda a família.
“Nos últimos anos, a vida aqui ficou muito cara e está difícil pagar casa e despesas com um ordenado de 870 euros. Por isso, as pessoas alugam uma casa e moram lá várias para poderem sobreviver. O custo de vida está difícil para todos, portugueses e imigrantes”, remata Alam Shah Kozol.
Com visto Gold
Os sócios Arafat Hosan, 39 anos, e Abdue Akin, 40, empregam 26 pessoas, entre trabalhadores portugueses, do Bangladesh, da Índia e do Paquistão. Começaram por criar uma empresa no Dubai, correu bem, e há sete anos vieram ver como seria investir em Portugal. Obtiveram um visto Gold e abriram uma empresa de turismo, depois um supermercado, depois um restaurante… E já vão em seis empresas no total, incluindo quatro restaurantes.
Abdue, o sócio minoritário, ainda não conseguiu trazer a família do Bangladesh porque, diz, é muito complicado encontrar uma casa que não custe os olhos da cara. “As pessoas preferem alugar a turistas, metem as casas no Alojamento Local. O custo de vida aumentou muito e os ordenados continuam maus”, justifica. Arafat acrescenta:”Além disso, fazem muitas exigências para arrendar, como ter dois fiadores portugueses. Até para mim, que sou empresário, fica difícil. Então para um imigrante ainda à procura de emprego é impossível”.
Histórias Rana Taslim Uddin, um dos porta-vozes da comunidade bengalesa, vive em Lisboa há 35 anos, aqui fotografado na Rua do Benformoso. Ao lado, Abdul Rehman Mangá, presidente do Centro Cultural Islâmico do Porto, nasceu em Moçambique e está em Portugal desde 1985. Em baixo, Farhana Akter no local onde dá apoio a imigrantes. E os irmãos Selina Sultana e Sharif Mutasim Billah vivem com os cônjuges num pequeno T2 na Amadora. A renda custa 900 euros
Arafat trouxe a família e a sua filha de 7 anos já fala bem português e ensina o pai. Os empresários têm um novo restaurante pronto para abrir, mas não conseguem fazê-lo por falta de trabalhadores. “Não nos aparecem portugueses a pedir emprego e os imigrantes, como o custo de vida está muito alto para os salários do País, acabam por procurar outros destinos, como a Alemanha, França ou a Bélgica”, nota.
Todos os indicadores económicos e demográficos apontam o valor inestimável da imigração para o nosso país. Vários setores, como a agricultura, as pescas, o turismo e a restauração, não sobreviveriam já sem eles. O medo é simplesmente algo sem fundamento, emoção primária usada no discurso político para obtenção de vantagens eleitorais.
Já o ódio, esse, tem várias explicações. Pondo o dedo na ferida: o racismo tem sempre implícita a ideia de que o outro ser humano vale menos. E, portanto, como bons cobardes, decide-se bater no elo mais fraco. Naturalmente, o discurso xenófobo vindo dos políticos atiça e inspira a violência nas ruas. Não há inocentes neste caminho. É nesta encruzilhada que nós, enquanto sociedade, nos encontramos.
SEXTA-FEIRA NAS BANCAS
Devido a um problema informático, que acabou por afetar toda a cadeia de impressão e distribuição, a VISÃO vai chegar, esta semana, um dia mas tarde aos pontos de venda – facto de que pedimos desculpa aos nossos leitores, que tantas provas de confiança nos têm dado, nos últimos tempos. (A edição digital está disponível, como habitualmente)
“A Comissão abriu hoje uma investigação aprofundada ao abrigo do regulamento relativo às subvenções estrangeiras sobre possíveis distorções do mercado causadas por subvenções estrangeiras. A investigação irá examinar se essas subvenções conferiram à empresa estatal chinesa fabricante de material circulante CRRC uma vantagem indevida na participação num concurso público para a aquisição de veículos ferroviários ligeiros em Portugal”, anunciou a instituição em comunicado.
A investigação surge na sequência de uma notificação de um consórcio liderado pela Mota-Engil, que inclui subcontratantes como a Portugal CRRC Tangshan Rolling Stock Unipessoal e participou num concurso do Metro de Lisboa lançado em abril de 2025 para a conceção, construção e manutenção da nova linha violeta.
De acordo com a Comissão Europeia, existem “indícios suficientes de que a Portugal CRRC Tangshan Rolling Stock Unipessoal pode ter beneficiado de subvenções estrangeiras que distorceram o mercado interno, justificando uma investigação aprofundada”.
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A investigação visa agora avaliar se tais subsídios conferiram à empresa uma vantagem indevida no concurso e, dependendo das conclusões, o executivo comunitário pode impor medidas corretivas, proibir a adjudicação do contrato ou emitir uma decisão de não objeção.
“Isto demonstra a determinação da Comissão em garantir uma concorrência leal e condições de concorrência equitativas na UE”, refere o executivo comunitário.
De acordo com o Governo, em dezembro de 2025 será consignada a empreitada da obra referente à linha violeta do Metro de Lisboa. Num comunicado divulgado em julho, o Metro de Lisboa disse ter recebido quatro propostas no âmbito do concurso para a construção da Linha Violeta, com a da Mota-Engil a apresentar o valor mais baixo.
O concurso para a empreitada da Linha Violeta foi lançado pelo Metropolitano de Lisboa em 15 de abril, com um preço base de 600 milhões de euros, acrescido de IVA.
Recorda a Lusa que o consórcio constituído pela Mota Engil, Engenharia e Construção, S.A./Zagope – Construções e Engenharia, S.A./Spie Batignolles Internacional – Sucursal em Portugal propôs a construção pelo valor de 598,8 milhões de euros. Este investimento enquadra-se na expansão da rede do Metropolitano de Lisboa e tem conclusão prevista para o ano de 2029.
A Linha Violeta, com 11,5 quilómetros de extensão, contempla 17 estações: nove no concelho de Loures (que servirão as freguesias de Loures, Santo António dos Cavaleiros e Frielas, numa extensão de cerca de 6,4 quilómetros) e oito no concelho de Odivelas (para servir as freguesias de Póvoa de Santo Adrião e Olival de Basto, Odivelas, Ramada e Caneças), numa extensão total de cerca de 5,1 quilómetros.
As estações terão diferentes tipologias, sendo 12 de superfície, três subterrâneas e duas em trincheira.
No total são 28 debates com oito candidatos às eleições presidenciais: André Ventura, António Filipe, António José Seguro, Catarina Martins, Henrique Gouveia e Melo, João Cotrim de Figueiredo, Jorge Pinto e Luís Marques Mendes.
Ao todo, a RTP vai transmitir 12 debates, a SIC oito e a TVI outros oito, todos em sinal aberto, de forma a chegar a um número mais abrangente de telespetadores, em horário nobre (21:00).
O primeiro acontece em 17 de novembro, na TVI, opondo os candidatos André Ventura e António José Seguro, e o último ocorre em 22 de dezembro com o frente a frente entre Gouveia e Melo e Marques Mendes na TVI.
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Devido a vários jogos de futebol, há dias em que não haverá debate, e esta é também uma das razões para estes se prolongarem até perto do Natal.
“Os três canais FTA [de sinal aberto] propuseram aos candidatos presidenciais a realização de 28 debates frente a frente, em horário nobre. Isto representa um enorme investimento televisivo dos canais generalistas”, referem os três canais.
“Nesse sentido, consideramos que a realização de outros debates, no mesmo período, não é razoável porque iria contribuir para desviar a atenção dos espetadores, prejudicando o esforço dos três canais FTA e, em segundo lugar, o esclarecimento dos eleitores, uma vez que atingiria audiências significativamente inferiores”, rematam.
Calendário dos debates
17 de novembro: André Ventura vs. António José Seguro (TVI) 18 de novembro: Luís Marques Mendes vs. António Filipe (SIC) 20 de novembro: Henrique Gouveia e Melo vs. João Cotrim de Figueiredo (RTP) 23 de novembro: Catarina Martins vs. Henrique Gouveia e Melo (SIC) 24 de novembro: João Cotrim de Figueiredo vs. Jorge Pinto (RTP) 25 de novembro: Luís Marques Mendes vs. André Ventura (SIC) 26 de novembro: Jorge Pinto vs. Henrique Gouveia e Melo (TVI) 27 de novembro: António José Seguro vs. João Cotrim de Figueiredo (RTP) 28 de novembro: André Ventura vs. Catarina Martins (TVI) 29 de novembro: Luís Marques Mendes vs. Jorge Pinto (RTP) 30 de novembro: João Cotrim de Figueiredo vs. António Filipe (SIC) 1 de dezembro: António José Seguro vs. Jorge Pinto (RTP) 2 de dezembro: António Filipe vs. Henrique Gouveia e Melo (TVI) 3 de dezembro: António José Seguro vs. Luís Marques Mendes (RTP) 4 de dezembro: Catarina Martins vs. João Cotrim de Figueiredo (TVI) 6 de dezembro: António José Seguro vs. Catarina Martins (SIC) 7 de dezembro: João Cotrim de Figueiredo vs. Luís Marques Mendes (TVI) 8 de dezembro: António Filipe vs. Jorge Pinto (RTP) 9 de dezembro: Henrique Gouveia e Melo vs. António José Seguro (SIC) 10 de dezembro: Catarina Martins vs. António Filipe (RTP) 11 de dezembro: André Ventura vs. Jorge Pinto (SIC) 12 de dezembro: Luís Marques Mendes vs. Catarina Martins (RTP) 13 de dezembro: André Ventura vs. António Filipe (RTP) 15 de dezembro: Henrique Gouveia e Melo vs. André Ventura (RTP) 19 de dezembro: João Cotrim de Figueiredo vs. André Ventura (SIC) 20 de dezembro: António José Seguro vs. António Filipe (TVI) 21 de dezembro: Catarina Martins vs. Jorge Pinto (RTP) 22 de dezembro: Henrique Gouveia e Melo vs. Luís Marques Mendes (TVI)
As eleições presidenciais estão agendadas para 18 de janeiro.
Vivemos num tempo em que o stress deixou de ser uma exceção e passou a ser quase uma condição permanente. Entre responsabilidades profissionais, preocupações financeiras, exigências familiares e a pressão constante do dia a dia, são poucos aqueles que conseguem escapar a esta realidade. O problema é que o stress não fica apenas na mente: tem impactos diretos no corpo e, muitas vezes, na relação que temos com a comida. Sem nos apercebermos, acabamos por comer demais, de menos ou de forma desequilibrada, apenas porque estamos a tentar compensar a tensão acumulada.
Quando o corpo enfrenta situações de stress, liberta hormonas como o cortisol e a adrenalina e estas substâncias, que nos ajudam a reagir rapidamente a situações de ameaça, têm efeitos colaterais. O cortisol, em especial, está ligado ao aumento do apetite e à vontade de consumir alimentos calóricos e de digestão rápida, como doces, salgados ou com alto teor de gorduras. Por outro lado, há quem reaja de forma contrária, perdendo a fome e saltando refeições. Ambas as situações criam desequilíbrios: no primeiro caso, aumenta-se a ingestão de calorias vazias; no segundo, o corpo sente défice de nutrientes e acaba por compensar mais tarde, frequentemente com escolhas pouco saudáveis.
A chamada fome emocional é um fenómeno muito comum. Comer torna-se uma forma de conforto e alívio momentâneo, mas raramente resolve o problema de fundo. Pelo contrário, a sensação de culpa que muitas vezes se segue intensifica o ciclo de ansiedade e perpetua comportamentos prejudiciais. Além disso, a fadiga provocada pelo stress também leva a uma menor disponibilidade para cozinhar ou planear refeições, o que nos empurra para soluções rápidas e processadas.
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Para quebrar este ciclo, é essencial adotar estratégias que ajudem a reduzir o stress e a restabelecer uma relação mais equilibrada com a alimentação. O exercício físico é uma das formas mais eficazes de libertar tensões e regular o humor, mesmo que seja apenas uma caminhada diária. As técnicas de respiração consciente ou de meditação têm igualmente mostrado benefícios, reduzindo a ansiedade em poucos minutos. O sono é outro fator crítico: dormir bem ajuda a controlar o apetite e a evitar decisões impulsivas no momento de escolher o que comer.
Também o planeamento alimentar faz toda a diferença. Preparar refeições equilibradas com antecedência permite ter alternativas saudáveis sempre à mão, mesmo nos dias mais caóticos. Além disso, fazer pausas curtas ao longo do dia para beber água, alongar ou simplesmente respirar fundo é uma forma simples de quebrar o ritmo acelerado e dar espaço ao corpo e à mente. Não menos importante é a dimensão social: partilhar preocupações com amigos, família ou colegas pode aliviar a pressão e dar uma nova perspetiva sobre os desafios.
É inevitável sentir stress, mas não é inevitável deixar que ele dite a forma como nos alimentamos ou como nos sentimos. Reconhecer os sinais, dar prioridade ao autocuidado e implementar pequenas mudanças na rotina pode fazer toda a diferença. Ao cuidarmos do equilíbrio emocional, protegemos também a saúde física e ganhamos mais energia, clareza e bem-estar para enfrentar os desafios do dia a dia.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Nas últimas décadas, o panorama político português tem-se transformado, em parte, graças ao surgimento de movimentos independentes que procuram desafiar as estruturas tradicionais dos partidos. Este fenómeno é, em princípio, saudável, pois representa um sinal de vitalidade democrática, de abertura à participação cidadã e de renovação de práticas políticas muitas vezes desgastadas. Contudo, esta dinâmica positiva tem vindo a ser contaminada por um fenómeno menos nobre, o uso oportunista desses movimentos por pessoas que, sob a capa da independência, procuram apenas influência, visibilidade e lugares de poder.
A ideia de independência exerce um fascínio compreensível num contexto de crescente desconfiança em relação aos partidos. Muitos eleitores sentem-se desencantados com a lógica partidária, marcada por carreirismo, lutas internas e promessas não cumpridas. Nesse cenário, apresentar-se como “independente” soa a pureza, autenticidade e proximidade ao cidadão comum, porém, o termo tem sido progressivamente esvaziado do seu sentido original, transformando-se num mero instrumento de marketing político.
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Ser independente deveria significar liberdade de pensamento, compromisso com causas concretas e rejeição de interesses instalados. No entanto, em muitos casos, a independência serve apenas como um disfarce conveniente. Depois das eleições, volta-se rapidamente à teia de influências e alianças, revelando que a suposta independência não passava de uma estratégia eleitoral.
Esta apropriação oportunista não só desvirtua o conceito de independência, como ameaça a própria credibilidade dos movimentos genuínos. Há grupos verdadeiramente enraizados nas comunidades locais, que nascem de causas concretas e que procuram dar voz a quem raramente é ouvido. Quando figuras com ambições pessoais se infiltram nessas dinâmicas e usam-nas como trampolim, acabam por fragilizar o trabalho coletivo e comprometer a confiança do eleitorado. A política deixa de ser espaço de participação e volta a ser palco de protagonismo.
O problema é agravado pela ausência de mecanismos claros de escrutínio. Movimentos independentes, por definição, operam fora da lógica disciplinar dos partidos, o que pode ser uma vantagem para a liberdade de ação, mas também um terreno fértil para a opacidade. A falta de estruturas internas sólidas permite que decisões cruciais fiquem concentradas nas mãos de poucos ou mesmo de uma só pessoa. Quando a transparência e a prestação de contas não acompanham o discurso da independência, a promessa de uma nova forma de fazer política cai por terra.
É urgente, portanto, distinguir o verdadeiro espírito independente do oportunismo político. Ser independente não é rejeitar a política institucional, é praticá-la de forma mais ética, mais aberta e mais responsável. É compreender que a força de um movimento não reside apenas no carisma de quem o lidera, mas na sua capacidade de representar coletivamente a vontade dos cidadãos. O contrário disso, a transformação de causas em plataformas pessoais, apenas reforça o cinismo e o afastamento do público em relação à vida política.
A democracia portuguesa precisa de vozes novas e de movimentos que desafiem o conformismo. Mas precisa, acima de tudo, de autenticidade. A independência política deve ser um compromisso moral, não uma estratégia eleitoral. A honestidade intelectual, a coerência e a transparência são os pilares que distinguem quem quer servir a comunidade de quem apenas pretende servir-se dela.
O desafio, para eleitores e para os próprios movimentos, é o de manter essa linha clara. Porque se a independência se tornar apenas um rótulo conveniente, estaremos a perder não só a confiança nas instituições, mas também uma das poucas esperanças de regeneração democrática que ainda nos restam.
O oportunismo disfarçado de independência representa o que de pior há na política, a negociata e o terreno lamacento de que já estamos fartos.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
O historial democrático português é pautado por desígnios claros de governação: os executivos de Cavaco Silva focaram-se no aproveitamento dos fundos europeus para o desenvolvimento; António Guterres na modernização do Estado, combate às desigualdades e afirmação externa; José Sócrates na modernização do estado e da economia; Passos Coelho na agenda de “ir além da troika”; e António Costa no fim da austeridade, na devolução de rendimentos e no rigor das contas públicas.
Ora, olhando para ano e meio destes dois governos da AD, constatamos, infelizmente, que o seu único desígnio é a resposta diária ao briefing matinal dos jornais, numa gestão reativa e efémera, não apresentando uma agenda reformista, inspiradora ou criadora de esperança num futuro melhor. Não existe visão nem estratégia, nem, tão-pouco, a competência e a audácia necessárias para enfrentar os problemas que se agudizam a cada dia.
Na Saúde, temos saudades do que Luís Montenegro chamava, ainda há dois anos, de caos. Na habitação, as políticas de estímulo da procura têm agudizado o problema, a economia abranda e falha em atrair e reter empresas que criem produtos de alto valor acrescentado e remunerem condignamente a geração mais qualificada de sempre.
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Pior, não se fala de futuro. As alterações climáticas, a sustentabilidade, a economia verde, cidades mais verdes e promotoras de saúde e qualidade de vida, atração de indústrias de futuro, a sustentabilidade da segurança social, a saúde mental, a desertificação do interior, o combate às desigualdades, a promoção de uma melhor conciliação entre a vida pessoal e profissional… saiu tudo da agenda mediática e política.
Paralelamente a este vazio, o eixo político mudou-se para a direita, a esquerda perdeu o voto de protesto e o Partido Socialista tenta mudar o chip da governação para a oposição, tendo a obrigação de se posicionar como a única alternativa democrática e popular credível a este desgoverno.
No rescaldo das últimas eleições legislativas, defendi que o PS devia adiar a eleição do secretário-geral. Estava errado. O trabalho de José Luís Carneiro demonstrou a importância de um líder que não se fecha no Rato e que correu o País acrescentando valor ao debate nas eleições autárquicas. José Luís Carneiro, com a sua fiabilidade, rigor e empenho constante (uma autêntica “relojoaria suíça”, espero que não leve a mal a comparação) é um ativo valioso.
No entanto, só o trabalho e a fiabilidade não bastam para reabilitar e reerguer o PS como alternativa junto da população. Após oito anos de governação e três derrotas eleitorais, o Partido Socialista deve assumir dois objetivos estratégicos: abrir o partido à sociedade civil e construir uma nova agenda, uma visão e uma estratégia para os próximos 10 anos.
É urgente organizar uns Estados Gerais que procurem incluir autarcas, especialistas, as principais forças vivas do País e da sociedade civil. Esta iniciativa deve levar a reflexão e o debate ao interior, às ilhas e até aos portugueses emigrantes. É preciso sentir o pulsar do País, ouvir as pessoas e construir um caminho a partir da base. É preciso ir à rua, literalmente, ouvir quem trabalha, quem vota, quem não vota e o porquê.
Esta agenda tem de ser um manifesto transformador, alheio à “espuma dos dias” e concentrado em resolver os grandes problemas estruturais de Portugal: políticas de captação de investimento produtivo, aumento de salários, o futuro do estado social, universalização das creches e lares/centros de dia, aproximação à média europeia do peso da habitação pública no mercado total, alterações climáticas e ordenamento do território, mobilidade e, em particular, ferrovia, políticas educativas e formação cívica dos nossos jovens, e, por fim mas não menos importante, a definição de um papel estratégico de Portugal na Europa e no mundo envolvendo a diáspora.
Esta agenda deve identificar indicadores sociais e económicos a melhorar, estabelecer compromissos e metas claras, realistas, mas ambiciosas. Uma agenda reformista e transformadora do País que servirá de base a futuros programas eleitorais do Partido Socialista, a trabalho parlamentar e a uma comunicação positiva e propositiva junto do eleitorado.
Após a construção desta agenda para a década, e apesar de ter, ao longo do tempo, as minhas dúvidas sobre as vantagens de eleições primárias, neste momento estas podem servir para abrir as estruturas locais à comunidade, libertá-las de uma visão puramente utilitária do poder, reforçar a captação de novos militantes e conferir uma legitimidade reforçada ao futuro líder do Partido.
O Partido Socialista tem todas as condições para voltar a ser visto como o partido dos trabalhadores e dos empreendedores, que oferece esperança e um caminho aos mais jovens, dignidade aos mais velhos defendendo o progresso e o Estado Social.
Para isso, é preciso um golpe de asa: descobrir caras e ideias novas, questionar a forma como se comunica, como se trabalha politicamente e, acima de tudo, ouvir o povo. A democracia portuguesa precisa de um partido popular, com história e confiável, renovado e renovador, que tenha uma visão e esperança para o futuro da nossa comunidade.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
No dia 31 de outubro, Dia da Reforma, e na sequência da “Década de Almeida” – João Ferreira de Almeida foi o primeiro tradutor da Bíblia para a nossa língua – a Sociedade Bíblica de Portugal realizou, na Casa da Baía, a VII Jornada “A Bíblia de Almeida: Da unidade à diversidade”. Este ano, o evento decorreu em Setúbal, onde tive a grata oportunidade de ser orador convidado e na qual falei sobre o tema “Bocage, Deus e a Bíblia”, numa ligação cultural à cidade do Sado.
Bocage não era ateu. Antes de mais, o poeta era crente em Deus. É o que se pode apreender do seu soneto “As Contradições do Ateísmo” (1791), no qual verbera um “novo Orestes”, que apelida de “infeliz” e até “blasfemo”, por não crer no “Omnipotente”. Mas o vate não acreditava num deus qualquer. Ele cria mesmo no Deus-Criador. Discorrendo sobre a Natureza no soneto “A Existência de Deus, Provada pelas Obras da Criação” (1791), o poeta atribui a tudo, desde o “vil mosquito” e a “próvida formiga” até aos oceanos, o céu e os astros, a obrigação de confessar Deus: “Tudo que há Deus a confessar me obriga.”
Veja-se aqui, aliás, uma réplica da cultura popular do Antigo Israel, plasmada no Livro dos Salmos, o cancioneiro nacional hebreu, onde o salmista convoca as obras da Criação a louvarem Deus (Salmo 148), ou “os rios batam as palmas; regozijem-se também as montanhas” (Salmo 98:8).
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Manuel Maria Barbosa du Bocage não foi boémio toda a vida. Como se vê, era um crente no Deus da religião. Um Deus cujos caminhos nem sempre compreendia, mas que aceitava com resignação cristã talvez por conhecer o que escrevera o profeta Isaías: “Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos” (Livro do Profeta Isaías 55:9). A cultura religiosa do poeta passa também pelos textos bíblicos, tanto do Antigo como do Novo Testamentos, o que nos leva a crer que estaria familiarizado com a teologia de S. Paulo, com a qual encontramos tantos pontos de contacto, em grande parte da sua obra.
Segundo Esther de Lemos, a raiz lírica bocagiana é profundamente cristã. Afirma que é “cristão o sentimento de culpa, os soluços de remorso, os gritos de ideal”, que é “cristã a sua adesão ao mistério, a sua consciência de uma realidade que o transcende; cristãs as verdades que proclama a força da Providência, a responsabilidade do arbítrio humano, (…) a vida extra-terrena entendida como prémio ou castigo, (…) o apelo para uma moral que é raio da graça divina”.
Ainda que a certa altura a dúvida pareça ter-lhe batido à porta, na forma de uma crise de fé, o facto é que, à data da sua morte, Manuel Maria estava convicto da sua crença religiosa, sem qualquer margem de hesitação.
Apesar de tudo o poeta assume, para o comum das pessoas “o anti-herói de um sempre renovado anedotário”, no dizer de Parreira, pré-romântico, ou “com vontade de Romantismo”, segundo Nemésio, Bocage acaba por ser fortemente influenciado pelo Iluminismo e os ecos políticos da Revolução Francesa, mas também pelos enciclopedistas, não deixando de colocar em causa, ainda segundo Parreira: “a contra-reforma do catolicismo português, a castidade da nossa unidade de fé, e o escolasticismo da nossa filosofia que nos autorizava uma cultura censória.”
Porém, se há quem tenha dúvidas sobre a efetiva relação que Bocage de facto terá estabelecido com a Eternidade, pelo menos não parece haver incertezas quanto a um efetivo arrependimento que terá experimentado. Trate-se realmente de arrependimento ou de remorso – conceitos bem diferentes – por ter evaporado o seu ser “na lida insana”, a verdade é que o vate pretende recuperar uma certa dignidade. E mesmo neste caso, se o tal arrependimento (ou remorso) não é uma atitude redentora, espelha pelo menos o desejo de reaver o que foi perdendo em vida e de certa forma um “achamento” de si mesmo, como diz Parreira, isto é, da boa consciência que lhe permitirá morrer em paz.
Nos últimos tempos da sua existência, Bocage consagra assim uma mudança ética ou de estado de espírito, operada em alguém que terá sido um desadaptado toda a vida, que não soube viver, que tinha uma verdadeira arte em criar inimigos e, sobretudo, que sofria uma tendência compulsiva para o desatino. Assim, é face à iminência da morte que Bocage repensa toda a sua vida. Uma vida que sentiu ter desperdiçado durante demasiados anos, mas que ainda foi a tempo de o reconhecer.
Bocage terá sido, afinal, o símbolo do que há de mais humano em cada um de nós. Tanto para o mal como para o bem. Talvez por isso nos fascine ainda hoje e desafie a tentar compreender as suas aparentes incongruências e ziguezagues da vida, mas sempre sob o encantamento que constitui a sua obra literária. Apesar de – como nos elucida Pires – na sua época, as malhas da censura serem “demasiado estreitas para os largos voos do estro bocageano”. Censura essa que Flaubert, citado por Pires (2004), caracteriza como “monstruosidade, uma coisa pior do que o homicídio”.
Apesar disso. não deixa de ser inovador. Segundo Lopes e Martins (1970): “sem sair dos moldes exteriores do arcadismo, dá a mais vívida impressão de uma nova sensibilidade forcejando por exprimir-se”. A “nova sensibilidade” que decorre de uma alma inquieta e inconformada que sempre foi. A mesma alma que a certo momento da sua vida exclamou: “Acode-me, Senhor!”
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Imagine que, num piscar de olhos, a vida transforma-se e o amor leva-o a dedicar os dias, as noites, a carreira profissional – parte da sua existência – a cuidar de um familiar que ama. Imagine e nada será como antes.
Em Portugal, os cuidados informais ganharam visibilidade com a aprovação do Estatuto do Cuidador Informal. Mas bastarão cinco minutos junto de um cuidador, muitas vezes, só e em casa, para concluir que, entre o reconhecimento formal e a transposição prática dos direitos e apoios, existe um abismo onde persiste desigualdade.
Milhares de pessoas são cuidadores informais. Mais preocupante, sabemos que esse número continuará a crescer, impulsionado pelo aumento da longevidade e pela carga, igualmente crescente, das doenças crónicas coligada a novas dinâmicas familiares.
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Imagine que é consigo. Que o problema bate à sua porta e, quando dá por isso, cuida de um familiar doente e dependente.
Os estudos mais recentes revelam que a maioria das pessoas que cuida são mulheres (esposas ou filhas) com idades entre os 50-60 anos. É, por isso, curioso que se fale em “cuidadores” e não cuidadoras; mulheres, em idade ativa, mas que se aproximam dos 65 anos e, como tal, cuidadoras quase idosas. Sim, porque o adjetivo “cuidadora” está, sempre, em primeiro lugar.
Imagine que é consigo.
Imagine que a sua vida é interrompida e, durante anos, é obrigado a reduzir ou abandonar o trabalho remunerado, ocupando esse mesmo tempo, agora, a dar banho, alimentar, pentear, lavar os dentes, assoar, proteger e supervisionar, várias vezes ao longo do dia e da noite. E que preparação teve?
É incomparável, mas note-se que, a cada gravidez, o Serviço Nacional de Saúde propõe aulas de preparação para o parto com especialistas em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (e bem). Mas intriga-me pensar que não existe este registo, tão frequentemente, quando falamos de cuidadores informais que precisam cuidar de adultos com personalidade, preferências e limitações. É curioso, quase que parece que o cuidar informal é natural e inato.
Imagine que é consigo.
O rendimento diminui, os custos aumentam, sente-se exausto física e mentalmente, com conflitos familiares, num trabalho não remunerado sem descanso que, por amor, nem pode nem quer abandonar. E as medidas, concretas, de flexibilidade laboral? E de (in)formação gratuita? E o direito à substituição temporária? E à saúde? E à proteção social?
Imagino que é comigo e reconheço a inadequação e insuficiência das respostas. É urgente apoiar quem de forma invisível e silenciosa suporta o Serviço Nacional de Saúde.
Demos um passo importante ao reconhecer formalmente quem cuida, mas falta converter esse reconhecimento em medidas personalizadas, continuadas e acessíveis. Sem isso, arriscamo-nos ao colapso do serviço nacional de saúde.
Imagine que é consigo. E depois imagine que está num país onde quem presta cuidados informais tem, efetivamente, o apoio de que necessita.
Imagine, porque, por enquanto, não está em Portugal.
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