A 30 de junho de 2019, o então 45º Presidente dos EUA fez história ao encontrar-se com o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, em Panmunjom. O encontro não deu em nada, exceto muita euforia mediática e vagas promessas de paz. Curiosamente, horas antes de se encontrar com o líder da dinastia estalinista, Donald Trump sobrevoou parte daquilo que se designa há sete décadas como a zona desmilitarizada (DMZ) da península. Comentário que lhe terá saído ao ver os bosques e a área virgem, altamente minada, ao longo do paralelo 38: “Isto tem um enorme potencial para se fazerem condomínios fantásticos!” Já no ano anterior, em Singapura, os dois dirigentes conheceram-se pessoalmente e, na conferência de imprensa que se seguiu, a Casa Branca divulgou um vídeo promocional de quatro minutos, intitulado A Story of Opportunity, sobre as vantagens que o regime de Pyongyang teria em abdicar do seu arsenal bélico e investir, por exemplo, no turismo. Trump fora previamente informado de que o reino eremita dos Kim tinha “belas praias” e que podia ser uma “Riviera”.

Nos últimos dias, a “diplomacia do imobiliário” ganhou novos contornos com a proposta do antigo empresário da construção civil de converter a Faixa de Gaza num território sob tutela dos Estados Unidos da América e de a transformar numa estância balnear de luxo ‒ “para todo o mundo”. Pormenor: esta “Riviera do Médio Oriente” seria erguida sobre os escombros acumulados desde o início do conflito entre Israel e o Hamas, a 7 de outubro de 2023, e os dois milhões de palestinianos que ainda vivem no retângulo de 360 quilómetros quadrados, junto ao Mediterrâneo, teriam de procurar abrigo em outras paragens. As reações foram imediatas e de repúdio. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, afirmou ser “essencial evitar qualquer forma de limpeza étnica” e sublinhou que uma “paz duradoura exige progressos claros, irreversíveis e permanentes para (…) o fim da ocupação [israelita] e o estabelecimento de um Estado palestiniano independente, com Gaza como parte integrante”. Os países árabes manifestaram idêntica posição, incluindo os que são aliados tradicionais de Washington, e advertiram que jamais aceitarão uma tal deportação que pode desencadear mais uma crise de proporções inimagináveis na região. O líder da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, afirmou que os direitos dos seus compatriotas “não são negociáveis”, nem se encontram “à venda”.
Exemplos históricos de invasões e ocupações dos EUA
IMPERIALISMO LIBERTINO
Em declarações ao New York Times, Janina Dill, diretora do Instituto Oxford para a Ética, a Lei e os Conflitos Armados, garante que os EUA, a cumprirem-se as intenções do líder republicano, estariam a violar as convenções de Genebra e a cometer um “crime contra a Humanidade”. Outros académicos partilham da mesma opinião e recordam que o Tribunal Internacional de Justiça já por duas vezes reconheceu Gaza como parte integrante de um futuro Estado palestiniano ‒ aliás, já reconhecido por 146 dos 193 países que integram a ONU. “Trump está apenas a querer normalizar a violação ou a propor que se violem os princípios basilares da lei internacional. (…) Se passarmos a viver num mundo em que as conquistas são normalizadas e as regras legais são postas de lado, viveremos num planeta completamente diferente, que será também incrivelmente perigoso para os americanos”, alerta a académica. Nada que preocupe o homem que deveria ser o “líder do mundo livre” ‒ expressão que vem do início da Guerra Fria ‒ e que continua a assinar diariamente dezenas de memorandos e decretos presidenciais que estão a provocar uma crise constitucional a nível doméstico e uma vaga de indignação nos cantos mais remotos do planeta.
Depois de já ter retirado os EUA da Organização Mundial de Saúde, do Conselho de Direitos Humanos da ONU e do Tratado de Paris sobre o Clima, Trump decidiu, a 7 de fevereiro, impor sanções financeiras e restringir vistos aos funcionários, procuradores e magistrados do Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia (Países Baixos), por “abuso de poder” e “atacarem indevidamente” os Estados Unidos da América e Israel. Uma medida logo condenada por 79 dos Estados-membros do organismo que começou a funcionar em 2002 e tem por objetivo perseguir e julgar os responsáveis por crimes de guerra, genocídio e lesa-humanidade. António Costa, presidente do Conselho Europeu, foi uma das personalidades que não hesitou em tomar posição, em Bruxelas, ao lado de Tomoko Akane, a juíza japonesa que preside ao TPI: “Sancionar o TPI ameaça a independência do Tribunal e mina o sistema de justiça penal internacional.”

Recorde-se que, em 2020, Trump tomou uma iniciativa similar, que visava particularmente Fatou Bensouda, a então procuradora do TPI, que investigava denúncias de crimes de guerra cometidos no Afeganistão e nos territórios palestinianos ocupados. As retaliações contra a jurista gambiana também não foram um caso inédito. No início do século, a Administração de George W. Bush ameaçou utilizar todos os meios ao seu alcance caso algum cidadão dos EUA fosse indiciado pelo TPI e John Bolton, na altura secretário-adjunto para as questões de Segurança Internacional, e depois embaixador dos EUA na ONU, chegou a afirmar que Washington tinha planos de contingência para intervir militarmente nos Países Baixos e resgatar algum soldado norte-americano que estivesse detido em Haia.
Na primavera de 2004, em plena guerra contra o terrorismo global e na sequência das invasões do Afeganistão e do Iraque, George W. Bush foi muito claro: “Não somos uma potência imperial, mas uma potência libertadora.” Atualmente, Donald Trump já nem se dá ao trabalho de negar o caráter messiânico do Colosso [Ascensão e Queda do Império Americano (Temas e Debates)], título de uma das obras mais conhecidas do historiador Niall Ferguson. A antiga vedeta televisiva assume com toda a naturalidade que os seus desejos são como ordens. No início desta semana, tanto na entrevista que deu à Fox News como na conferência de imprensa em que apareceu, reiterou que os palestinianos terão de abandonar Gaza e que o Egito e a Jordânia os devem acolher. Problema: o general Abdel Fattah El-Sisi, o Presidente do Egito e “ditador favorito” de Donald Trump ‒ expressão do inquilino da Casa Branca, em 2019 ‒ não está pelos ajustes. E o monarca do reino hachemita, em que metade da população é de origem palestiniana, ainda menos. Abdullah II reuniu esta terça-feira com o Presidente norte-americano e, à hora a que esta prosa está a ser escrita, não se conhece qualquer cedência de parte a parte. Como é habitual, Trump encarrega-se de gerir as narrativas e fez saber que está disposto a cancelar todos os apoios norte-americanos a Amã e ao Cairo. Como agora se diz, uma “lógica transacional” ‒ que só pode ser descrita como chantagem. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, agradece e prepara o fim da trégua com o Hamas. O governo de Telavive, uma coligação constituída por ultranacionalistas e fundamentalistas religiosos, é quem mais beneficia com as teses de Trump e com o ultimato que este fez ao movimento de resistência islâmica, exigindo a libertação de todos os reféns até ao meio dia de sábado, 15. E o que sucederá ao território pisado e conquistado pelo faraó Tutemés, por Nabucodonosor II, por Alexandre Magno, por Saladino e por Napoleão, caso isso não aconteça? “Vai ser o inferno”, assevera o governante mais alaranjado do mundo, ou seja, a “Riviera do Médio Oriente” volta a ser a maior prisão a céu aberto do planeta e acabam-se os planos e o dinheiro para a reconstruir ‒ qualquer coisa como 53 mil milhões de dólares, segundo um relatório divulgado por António Guterres na última terça-feira.
INUNDAÇÕES E DITADORES
Claro que o anúncio da ONU se perdeu entre os anúncios permanentes e iconoclastas do homem que pretende desmantelar o Ministério da Educação e a USAID (a agência de ajuda aos países em desenvolvimento criada por John F. Kennedy, em 1961), que já está a purgar o Pentágono e todo o setor da Justiça, e que não se poupa a esforços para despedir os funcionários que ponham em causa a ordem trumpiana ou expulsar os “maiores criminosos” que entraram de forma irregular na terra que já foi do Tio Sam. Com o precioso auxílio de Elon Musk (empresário que se já se comporta como vice-rei das Américas), de Stephen Miller (cruzado anti-imigração e vice-chefe de Gabinete) e de Russ Vought (ideólogo anti-woke responsável pelo Departamento de Gestão e Orçamento), o 47º Presidente tem todas as condições para continuar a sua (contra) revolução para devolver a grandiosidade aos EUA. O que quer que isso signifique. Trump promete uma nova Era de Ouro equivalente à Gilded Age, a época do capitalismo selvagem e dos multimilionários que monopolizavam a riqueza e ditavam as regras do poder, entre o fim da guerra civil (1865) e a afirmação do país como uma potência global (no início do século XX).
Ao suspender leis anticorrupção, ao dizer que o Golfo do México passa a chamar-se Golfo da América, ao impor taxas alfandegárias de 25% às importações sobre o aço e o alumínio, ao decretar o regresso das palhinhas de plástico ‒ porque as de papel “às vezes explodem” ‒, ou ao revelar a libertação de um professor norte-americano (Mark Fogel) que cumpria uma pena de 14 anos na Rússia, Trump e a sua equipa cumprem uma política comunicacional que tem por objetivo neutralizar adversários e críticas. Steve Bannon, o ex-estratega-mor do Presidente, chamou-lhe a estratégia da inundação ‒ flood zone. Com múltiplas notícias e iniciativas, verdadeiras ou falsas, com ou sem ligação entre si, o efeito de hiperatividade, de saturação, de caos, está garantido.
Vamos a um exemplo. Quem se lembra ainda da recente promessa de colocar 30 mil migrantes em Guantánamo? O absolutismo de Donald Trump e a desinformação ‒ não só nas redes sociais ‒ fazem com que poucos se questionem sobre a exequibilidade de uma tal medida. No final da passada semana, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, informou que o plano já esta em curso e que os primeiros voos com “largas dezenas” de indocumentados tinham já aterrado na maior ilha das Caraíbas. Nem foi preciso explicar que há a forte possibilidade de se tratar de mais uma clara violação às convenções de Genebra e à lei internacional, como defendem vários académicos e organizações de direitos humanos. Os “homo economicus” do Presidente estão dispostos a tudo, até a omitir que a famosa base norte-americana, com 117 quilómetros quadrados, não tem sequer capacidade para acolher tantos “criminosos estrangeiros”, por falta de instalações apropriadas. A não ser que seja erguida, à pressa, uma cidade de tendas. O que não parece razoável, nem possível, nos terrenos disponíveis e adjacentes à enorme baía de águas profundas. Há duas décadas, quando o complexo atingiu a sua lotação limite, com 800 prisioneiros suspeitos de terrorismo e seis mil militares e respetivas famílias, Washington teve de raspar o erário público. Segundo uma investigação da NPR, a rádio pública, os contribuintes têm de pagar, pelo menos, 380 milhões de dólares por ano.
Trump quer que Gaza seja a “Riviera do Médio Oriente”, desde que haja quem pague
a reconstrução: 53 mil milhões de dólares,
segundo António Guterres
Criada em 1903, na sequência da guerra entre Espanha e Estados Unidos da América, que ditou o fim do império colonial de Madrid, esta é a prisão mais cara do mundo. Em 1934, o governo de Havana aceitou subscrever um novo contrato de arrendamento, por tempo indeterminado e no valor de 3800 euros anuais. Com a chegada ao poder dos revolucionários barbudos, liderados por Fidel Castro, o cheque no montante atrás descrito deixou de ser cobrado. Barack Obama e Joe Biden quiseram fechar o complexo penitenciário na mais antiga base militar dos EUA, fora do seu território continental. Os republicanos não o permitiram e cerca de 15 “combatentes inimigos”, alegadamente responsáveis pelos atentados do 11 de Setembro, continuam num limbo legal e sem destino à vista. Para Trump não há problema. Guantánamo é apenas uma das sete centenas de bases militares norte-americanas espalhadas pelo mundo (ver infografia). O importante, no entender do Presidente, é que a América continua a ser a “nação indispensável” e ele possa dispor de todas as ferramentas para negociar e impor a sua lei. Tom Engelhardt, autor de A Nation Unmade by War (Uma Nação Desfeita pela Guerra, em tradução livre), defende que os EUA vivem numa “era do absurdo”, em que a desordem alastra. O economista Branko Milanovic diz o mesmo por outras palavras: “Não há absolutamente nada que se possa oferecer aos ditadores para que abandonem o poder.”