De todos os géneros literários, o diário é certamente o mais difícil de definir, o mais híbrido. E considerá-lo um género literário é já em si assumir que se escreve para ser lido, mesmo no caso de um escritor, como Vergílio Ferreira, que nunca se cansava de dizer que não escrevia para os outros, apenas para si próprio, como necessidade, modo de ser e de estar. Mas é esse diário monumental, que o ocupou de 1969 a 1992, que agora regressa às livrarias portuguesas, numa nova edição da Quetzal.
O primeiro volume, que recolhe os três tomos iniciais, foi lançado no passado mês de abril, na casa do escritor, em Melo (ver caixa nas páginas seguintes), o segundo será lançado no próximo dia 22. Em novembro encerra-se este enorme empreendimento editorial, só possível com o apoio da Câmara Municipal de Gouveia, que na sequência das comemorações do centenário do autor de Aparição, em 2016, continua empenhada na divulgação da obra do escritor mais relevante do seu concelho e aquele que melhor transportou, para os seus livros, aquela região.
“Lutar contra o esquecimento”
Ao seu diário, Vergílio Ferreira chamou Conta-Corrente, expressão do mundo da economia que sublinhava a omnipresença da escrita. Talvez também estivesse na cabeça do escritor a vontade de distanciar estas entradas regulares, logo a partir do título, de uma literatura mais séria – o que, como muitos leitores e críticos apontaram, muitas vezes se concretizou, noutras se contrariou. Apesar de ter iniciado a prática diarista em 1969, o primeiro tomo só viria a ser publicado em 1980. A sua publicação foi um acontecimento editorial; tal como esta reedição, que o faz regressar às livrarias portuguesas depois de muitos anos inacessível, também o é.
Vergílio Ferreira era, à data, um dos autores mais prestigiados do país. Fora um autor de referência durante o Estado Novo, com obras que marcaram o panorama literário português, como Manhã Submersa (1954) e Aparição (1959), mas também pelos ensaios, sempre de pendor existencialista, como Carta ao Futuro ou Interrogação ao Destino, André Malraux. A década de 80 marcou a sua consagração, com sucessivos galardões, incluindo o Prémio Camões, em 1992.

Além disso, se é certo que havia uma tradição diarística em Portugal, ela nunca fora muito expressiva. Quando Vergílio Ferreira começou a escrever o seu diário, havia o de Miguel Torga, iniciado em 1941 e também com enorme repercussão, fundada na relevância literária do seu autor e sobretudo na diversidade de textos aí recolhida; e o de Ruben A., a partir de 1949. Refira-se, ainda, para acrescentar mais exemplos, o de Sebastião da Gama, publicado postumamente, em 1958, o de Manuel Laranjeira, dado à estampa seis anos antes, e o de José Gomes Ferreira, que na década de 60 já tinha começado a sua aproximação ao diário, que viria a continuar, em sucessivos volumes, anos mais tarde.
Mas para se avaliar o impacto que Conta-Corrente teve, mais importante do que a genealogia em que Vergílio Ferreira se inseriu, é preciso atender à natureza do próprio diário, numa abordagem que fez escola, nomeadamente nos Cadernos de Lanzarote que José Saramago iniciou em 1994. Estas são páginas íntimas e de autointerpretação, para recorrer a uma expressão de Fernando Pessoa, mas também dos dias comuns, do quotidiano do escritor, das suas alegrias, sempre breves, e das suas irritações, nunca omitidas. É também o retrato de uma época em constante mudança, com os últimos anos da ditadura do Estado Novo, a efervescência da Revolução de 1974 e a democratização do país. Nesse sentido, é um documento único, uma cartografia de modas, tendências, novidades, recorrências e acontecimentos interpretados por um autor já formado, com sólidas bases na filosofia e no pensamento, e que usa a escrita para se compreender e compreender o outro, para se interrogar e para interpelar o mundo. “Este é o diário mais importante da literatura portuguesa”, defende Francisco José Viegas, escritor e editor da Quetzal, leitor obsessivo de Vergílio Ferreira, sobre quem escreveu por diversas vezes, incluindo nas páginas da VISÃO. “Voltar a publicá-lo é lutar contra o esquecimento, esse exército terrível e invisível.”
Desabalada e de torneira aberta
Vergílio Ferreira acabava de fazer 53 anos. Influenciado pelos autores que lera e admirara, vivia, nessa idade, o tempo da confissão, da coragem com que concretizava apelos antigos; ou, pelo menos, o tempo de deixar de se render ao pudor. E sabia as implicações e o significado de um diário de um escritor já muito lido, sobretudo quando escrito com ideia de vir um dia a publicá-lo. “Admiro os que o conseguiram, desde a juventude. Um romance é um biombo: a gente despe-se por detrás. Isto não. Mesmo que não falemos de nós (é-me difícil falar de mim). Aliás, como os outros, desconheço-me”, confessa logo na primeira entrada, a 1 de fevereiro de 1969, ele que celebrara o seu aniversário a 28 de janeiro. “Serei agora capaz? Tento. Seguro-me ao argumento de que me dá prazer ler os registos dos outros. Leem-se sempre com curiosidade. Um motivo para insistir – satisfazer a curiosidade dos outros. Mas terei eu ‘outros’?”

O antecedente mais direto de Conta-Corrente na obra de Vergílio Ferreira, segundo Fernanda Irene Fonseca, professor Catedrática aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que tem dedicado vários estudos ao escritor, é Invocação do Meu Corpo. Este “ensaio poético-filosófico” foi publicado em 1969 e abriu a porta para a “escrita do eu” e, não menos importante, um registo alternativo ao romance. O próprio Vergílio Ferreira viria a reconhecer e até a detalhar, com humor, a especificidade de Invocação do Meu Corpo e de Conta-Corrente. Ao contrário da ficção e da narrativa longa esta era uma escrita mais rápida, embora não menos refletida, com outro tom e toada, num encontro entre racionalidade e emoção. É, nas palavras do escritor, uma escrita “excessiva”, “desabalada”, “de torneira aberta”. Uma escrita, ao fim e ao cabo, heterodoxa, como o seu autor.
“O escritor noturno levou a sua febre de escrever, a sua euforia/agonia da escrita para o dia, para o diário”, sublinha Fernanda Irene Fonseca, no ensaio Vergílio Ferreira: A Celebração da Palavra. “Em Conta-Corrente vai expandir-se esse ‘modo pessoal e vivido’ de atravessar as grandes questões do seu tempo. Mas não só: de atravessar também as pequenas questões do seu quotidiano, os pormenores fortuitos em que é possível surpreender uma instantânea revelação.”
“Conta-Corrente”

Até ao fim do ano, estará nas livrarias a totalidade dos diários de Vergílio Ferreira, editados em três volumes. Este primeiro (Quetzal, 1 168 págs., €27,70), já lançado, engloba textos escritos entre 1969 e 1981
Uma outra escrita que não poucas vezes saturou o escritor, da mesma forma que o seduziu. Depois de cinco tomos, publicados entre 1980 e 1987, Vergílio Ferreira anunciava o fim de Conta-Corrente, publicando, pouco depois, o ensaio Pensar. Mas seria pausa de pouca dura, pois em 1993/94 lançou uma nova série do diário, com mais quatro tomos. Em excesso ou em contenção, Vergílio Ferreira ambicionava sempre o mesmo, como confessava no próprio diário: “Que bom poder escrever e ser feliz na escrita.”
Contra a morte
Para os leitores que atacam os livros com um lápis bem afiado, Conta-Corrente é uma obra tentadora. Além do domínio do aforismo, a escrita de Vergílio Ferreira é reflexiva e preenchida, como pedia Camões, com o saber de experiência feito. Experiência essa que também vinha da própria leitura e da escrita, do conhecimento e das potencialidades que o texto encerra. “Toda a obra de arte é um combate contra o tempo, contra a morte, a decadência de nós, a estupidez e a opacidade do mundo”, afirma em Conta-Corrente, como que reforçando o sentido e o significado do seu gesto literário e artístico. “A realidade imediata é pesada como a estupidez. E como ela é tirânica. Se a arte fosse um ‘refúgio’, a vida seria bem ligeira. Mas para chegar até à arte há que ultrapassar várias camadas sobrepostas de matéria grossa e espessa.”
Conta-Corrente dá-nos um extraordinário retrato do escritor – “A literatura é a minha razão de ser. Tudo o mais me ésecundário” – e revela-nos as suas opiniões fortes sobre a vida, o País, a literatura e os seus autores. Algumas passagens conseguiram pôr Vergílio Ferreira de mal com todos, incluindo no espectro político. Mas disso o escritor nunca se queixou. São vários os exemplos que podem ser citados, algum certeiros, outros cómicos (“Há três grupos de escritores: o dos bons ou muito bons, o dos razoáveis e o dos maus. Alguns não fazem parte de nenhum destes grupos.”), muitos bem atuais. E é essa a força de uma escrita que, de tão corrente, se fez contínua, abarcando a vida toda.
Escrever com Vergílio
Um programa de residências literárias convida escritores e outros artistas a inspirarem-se na mesma paisagem que moldou a obra do autor de Manhã Submersa

Um criador a inspirar outros criadores. Foi com esta filosofia que a Casa Vergílio Ferreira – Para Sempre, na aldeia de Melo, em Gouveia, lançou um programa de residências literárias, com curadoria de Adélia Carvalho e de Valter Hugo Mãe. Os candidatos podem escolher a duração da residência (até um mês) e beneficiar das condições únicas da casa: no sótão têm à sua disposição dois quartos e um escritório, assim como uma cozinha e uma casa de banho. Pela janela, a presença da montanha, a mesma que tanta influência teve na personalidade e na obra de Vergílio Ferreira. “A Casa abre-se para todos os lados, entra por ela à vontade todo do ar quente da tarde, os rumores longínquos da terra”, escreveu em Para Sempre, levando para a ficção a realidade concreta que tão bem conhecia. Passeando por estas divisões, os escritores aqui instalados talvez venham a sentir as mesmas sensações do protagonista desse romance de 1983: “Sozinho na velha casa, é um casarão, estou aqui. Há um grande silêncio comprimido sobre o mundo, atento escuto uma voz que não vem (…). O Silêncio em toda a casa. O silêncio dentro de mim.”
Silêncio semelhante terá sentido Rafael Gallo, escritor brasileiro, vencedor do Prémio José Saramago 2022, que aí terminou a sua residência no final do mês de abril, ainda a tempo de passar em Melo o longo apagão do passado dia 28. Tirando esse dia, aproveitou o vagar do tempo para pensar e adiantar o seu novo romance e para conhecer um autor que, inexplicavelmente, garante, é pouco divulgado no Brasil. Talvez agora se torne o seu embaixador do outro lado do Atlântico.
Como os anteriores escritores que passaram por esta residência (Gonçalo M. Tavares, Isabel Rio Novo ou Francisco Mota Saraiva) e a que a ocupará em julho (Cláudia Lucas Chéu), Rafael Gallo deixou livros seus na biblioteca da casa e escreverá um texto que será disponibilizado no festival literário de Gouveia Em Nome da Terra, que terá a sua 4.ª edição em outubro. E cumprindo o desejo dos promotores da residência, deixou uma frase no candeeiro que ilumina a grande mesa do escritório, num incentivo pessoal à criação. Eis a sua: “Escrever pelos mesmos motivos que um cão ladra.”
Voltar sempre
Ao contrário de muitas casas de escritores, a de Vergílio Ferreira não está cheia de objetos e curiosidades pessoais. É antes uma celebração da obra do autor, com recriações artísticas dos seus principais romances e temas, com destaque para a presença da montanha e a ideia de regresso
É logo na praça que se anuncia ao visitante e futuro leitor que se está perante uma obra maior, composta por várias etapas de um mesmo fluxo literário e de pensamento. Em frente à Casa Vergílio Ferreira – Para Sempre, em Melo, no concelho de Gouveia, abre-se um enorme largo. E a delimitar o seu contorno, pequenas lajes definem a cronologia dos livros do escritor, desde a sua estreia, em 1943, com O Caminho Fica Longe, até Cartas a Sandra, publicado em 1996, no ano da sua morte, primeira de várias edições póstumas. A enumeração, apenas o título e a data, é o primeiro convite a mergulhar num universo literário singular, que não poucas vezes se inspirou neste lugar, nesta paisagem, em vivências e memórias de infância ali passadas e reacendidas a cada regresso nas férias de verão.
Vergílio Ferreira não nasceu nesta moradia amarela, nem aqui viveu muitos anos. Em 1916, os pais moravam noutra casa (só habitariam esta muito mais tarde), a algumas ruas de distância do centro de Melo. E como três anos depois emigraram para os EUA, o futuro escritor cresceu, até ingressar aos 12 anos no seminário no Fundão, com a avó e as tias maternas. Ainda assim, esta casa, de dois pisos, imponente e de um traço elegante, tem uma simbologia especial, pois ressurge muitas vezes quer em romances do escritor, quer no seu diário, agora reeditado. Por isso, em 2016, ao encerrar as comemorações do centenário de nascimento de Vergílio Ferreira, a Câmara Municipal de Gouveia anunciou a compra da casa de família, na altura propriedade de uma sobrinha do escritor, projetando uma intervenção museológica e a abertura ao público, que se concretizou em 2024.
Feito o convite na praça principal, passa-se o portão, empurra-se a porta de entrada e descobre-se a força de uma obra que desafia novos leitores. Ao contrário de muitas casas de escritores, um conceito criado no século XVIII para celebrar grandes nomes da literatura mundial, a Casa Vergílio Ferreira – Para Sempre é tudo menos convencional. Não segue o modelo habitual que procura, com maior ou menor fidelidade, reproduzir o quotidiano do escritor, às vezes com os objetos originais. Aqui não há máquinas de escrever prontas a serem usadas, nem tinteiros cheios ao lado de uma folha de papel em branco, nem uma vasta recolha de manuscritos. É, antes, uma recriação do universo do autor de Aparição, que destaca as suas obras mais emblemáticas e alguns dos conceitos-chave que percorrem romances, ensaios e outros escritos.
Essa recriação é sobretudo visual, com vários artistas a ocuparem cada uma das divisões do primeiro andar, já que no piso térreo o escritor é apresentado numa breve cronologia que esclarece as datas e os locais da sua formação, os seminários que frequentou (também o da Guarda), a sua formação na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Filologia Clássica, e os liceus em que foi professor, primeiro em Faro, mais tarde em Bragança, Évora e Lisboa. Na primeira divisão, António Ramalho, bisneto da ceramista Rosa Ramalho e continuador da sua arte, apresenta, em pequenas esculturas, a “Família Literária” do escritor. “Quem me ensinou a escrever foi Eça de Queirós e quem me ensinou a refletir foi André Malraux”, costumava dizer Vergílio Ferreira. E ali estão eles, em cerâmica, ao lado de mais quatro autores (escolhidos entre muitos outros) que marcaram a sua formação: Raul Brandão, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre e Albert Camus.
Segue-se a sala dedicada à obra Escrever, publicada só em 2001, a partir dos manuscritos encontrados no espólio, que mostra como a escrita era um modo de ser, mas também de estar – na vida, na existência e no pensamento. É uma vida feita de papel e de palavras que a designer gráfica e ilustradora Ana Biscaia interpreta, evocando uma mão que remexe a terra, como quem lança a semente para depois colher. Numa outra sala recorda-se a relação do Vergílio Ferreira com o cinema, em particular a adaptação que Lauro António fez de Manhã Submersa. O filho do realizador, Frederico Corado, assina a curta-metragem que aí se projeta, feita a partir de fotografias tiradas durante a rodagem daquele filme e de outro material inédito. Ao lado, Paulo Neves evoca, numa escultura em madeira, a presença da montanha na obra vergiliana, montanha essa que é tanto um lugar natural, quanto metafísico. Duas outras obras são interpretadas em salas próprias: Para Sempre (o romance em que esta casa é mais evocada), por Evelina Oliveira, e Cartas ao Futuro, por Luís Silveirinha.
A Casa Vergílio Ferreira – Para Sempre encerra o Roteiro Literário Vergiliano que também foi lançado nas comemorações do centenário do seu nascimento. Na aldeia de Melo, passa por 19 pontos, desde a casa onde o escritor efetivamente nasceu até esta casa amarela, passando por capelas, lojas, tabernas e várias ruas. Com a ajuda do guia “Melo e a aldeia eterna de Vergílio Ferreira” é possível ler passagens em que estes edifícios e lugares foram transportados para a ficção, em descrições muitas vezes fieis e precisas. Noutro percurso integrado no Roteiro Literário Vergiliano propõe-se uma volta maior, de nove quilómetros, pela envolvente da aldeia, onde a Natureza mais se impõe. A mesma que moldou a obra de um escritor que dizia escrever “para tornar visível o mistério das coisas”.
Paixões e irritações
Nos diários Conta-Corrente, Vergílio Ferreira revela-se sem filtros
“O português é extremamente ridículo no seu receio de ser ridículo”
“Temos 800 anos, mas somos ainda infantis. Ou somos tão coriáceos, que nada nos penetrou”
“Não te diminuas diante dos outros. Aqueles que te admiram podem sentir-se vexados”
“O ensaísta português é um sabichão. Ou um homem aterrorizado, que se esconde atrás de uma barricada de nomes e de números”
“Uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete”
“O presente é dos fortes, o passado é dos fracos e o futuroé dos imaginativos ou ambiciosos”
“Porque é que queres ser feliz, se não queres ser medíocre?Tens de escolher”