Todos os movimentos de luta pelos direitos humanos precisam dos seus símbolos, dos seus momentos de coragem radical e das suas heroínas. O movimento pelos direitos civis das pessoas negras, nos EUA, teve Rosa Parks e a sua radical recusa em levantar-se do seu lugar na frente do autocarro e ir ocupar um lugar nas traseiras. O feminismo, e a sua luta pelo fim da cultura de violação, têm Gisèle Pélicot e o momento radical em que esta recusou que o julgamento dos crimes de que foi vítima fosse realizado à porta fechada, declarando que “La honte doit changer de camp!” (“A vergonha tem de mudar de lado!”).
Ao fazê-lo, Gisèle Pélicot tornou-nos testemunhas de tudo o que se passou naquela sala de audiências de Avinhão. E levantou o milenar manto de vergonha com que o patriarcado cobre as mulheres vítimas de violência sexual. Gisèle Pélicot quis que ouvíssemos e testemunhássemos todas as aleivosias que lhe fizeram e lhe disseram. E foram tantas.
É já consabido que, durante quase uma década, o seu (agora ex-)marido, Dominique Pélicot, a drogou e recrutou online dezenas de homens comuns que, numa pacata vila francesa, Mazan, a violaram enquanto dormia sob influência de sedativos, na sua própria casa, filmando e fotografando os ataques. Os violadores eram jornalistas, bombeiros, enfermeiros, DJs, trabalhadores da construção civil, brancos, negros, jovens, idosos, gordos, magros, solteiros, pais de família. A imprensa francesa chamou-lhes Monsieur Tout le Monde (Sr. Toda a Gente). E é isso mesmo que eles eram: o patriarcado, o sistema de poder que permite aos homens, desde que o mundo é mundo, oprimirem e objetificarem as mulheres pelo simples facto de eles serem homens e nós mulheres.
Durante 9 longos anos, não houve um único homem que, tendo visto o hediondo anúncio online, tenha feito uma denúncia, mesmo anónima, do absoluto horror que ali se passava. Uma simples denúncia anónima teria permitido poupar a Gisèle Pélicot anos de grande sofrimento físico e confusão mental, bem como as inúmeras doenças sexualmente transmissíveis que contraiu, pois que nem sequer a clemência de usar proteção os violadores tiveram para com aquela mulher indefesa.
Só que Gisèle Pélicot recusou a condição de vítima indefesa e reclamou agência sobre o que lhe aconteceu. Ao fazê-lo, pode bem ter-nos salvado a todas, porque mudou o discurso sobre crimes sexuais. É que Gisèle Pélicot é também a sobrevivente perfeita de um crime sexual: trata-se de uma senhora idosa que, adormecida e na suposta segurança do seu lar, foi violada repetidamente por dezenas de homens comuns, com a conivência e o encorajamento do homem que, segundo o contrato social que firmamos com o patriarcado ao casar-nos, a deveria proteger – o seu marido. Não lhe podem dizer que a saia que usava era demasiado curta, que bebeu demais, que estava num local perigoso a uma hora pouco recomendável, que foi imprudente, que estava a pedi-las. Não. Gisèle Pélicot é a própria negação de todo este caldo cultural tóxico. A vítima perfeita. E a cliente com que sonham todas as advogadas de direitos humanos: sempre calma, ponderada, digna, de queixo levantado mas sem ser demasiado virulenta nas suas declarações à imprensa. Inatacável.
Mas oh, se tentaram atacá-la! Gisèle Pélicot fez de nós testemunhas das perguntas que alguns membros do coletivo de juízes entenderam colocar-lhe sobre os seus hábitos sexuais, a sua vida sentimental, até sobre o método contracetivo que esta mulher sénior utilizava (!). Fez de nós testemunhas das alegacões orais em que os advogados dos seus violadores vociferaram contra a histeria das feministas e da imprensa, tecendo vis considerações sobre o perfil psicológico de Gisèle Pélicot como suposta cúmplice de um narcisista. Culpada do seu próprio infortúnio, no fundo.
O que, em 19 de dezembro de 2024, o Tribunal de Avinhão nos veio dizer com o seu veredito foi que, apesar de tudo, isso já não passa, e que o tempo da impunidade e da culpabilização da vítima acabou. Dominique Pélicot foi condenado a 20 anos de prisão por violação agravada, a pena máxima prevista na lei francesa para este crime. Os restantes 50 violadores de Gisèle Pélicot foram condenados a penas entre os 3 e os 15 anos. Não houve absolvições. É verdade que o Tribunal não condenou os 50 outros violadores nas penas pedidas pelo Ministério Público, mas quase nunca há vitórias totais em tribunal. A de Gisèle Pélicot andou muito perto disso. Justiça!
Aqui deixo os nomes dos 51 violadores de Gisèle Pélicot. Porque, hoje, a vergonha mudou mesmo de lado! Parabéns e obrigada, Gisèle Pélicot! Mil vezes, obrigada!
Dominique Pélicot
Jean-Pierre Marechal
Joseph Cocco
Didier Sambuchi
Patrick Aron
Jacques Cubeau
Hugues Malago
Andy Rodriguez
Jean-Marc Leloup
Saifeddine Ghabi
Simone Mekenesse
Philippe Leleu
Paul Grovogui
Ludovick Blemeur
Mathieu Dartus
Quentin Hennebert
Patrice Nicolle
Husamettin Dogan
Cyrille Delville
Nizar Hamilda
Redouane El Fahiri
Boris Moulin
Cyril Baubis
Thierry Postat
Omar Douiri
Jean Tirano
Mahdi Daoudi
Ahmed Tbarik
Redouane Azougagh
Lionel Rodriguez
Florian Rocca
Grégory Serviol
Abdelali Dallal
Adrien Longeron
Cyprien Culieras
Karim Sebaoui
Jean-Luc La
Christian Lescole
Thierry Parisis
Nicolas Francois
Cendric Venzin
Joan Kawai
Vincent Coullet
Fabien Sotton
Hassan Oamou
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Jérôme Vilela
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