No decurso da presente semana foi conhecido o mais recente relatório do GREVIO (Grupo de Peritos do Conselho da Europa para a Ação contra a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica). O relatório merece, por um lado, uma análise integral, que não se baste com a simplicidade dos soundbites, e, por outro, uma ponderação evolutiva, tendo em conta, por exemplo, anterior relatório de avaliação de referência sobre Portugal, publicado em 21.01.2019.
Em primeiro lugar, importa salientar que o GREVIO é uma entidade credível e que, uma vez mais, procedeu a uma análise independente sobre os progressos realizados ao nível da prestação de apoio, proteção e justiça relativamente ao fenómeno da violência contra as mulheres e da violência doméstica. Assim, o que se exige sobre o mesmo é, no mínimo, uma ponderada reflexão. A complexidade do tema e todo o seu enredo, seja na vertente social, familiar, educacional, jurídica ou judicial, exige mais uma radiografia conjunta do que o habitual jogo do “passa culpas”, em que poucas ou nenhumas soluções verdadeiramente estruturais se conseguem alcançar em prol do que deve importar. Aliás, a gravidade do assunto é de tal ordem que exige de todos os intervenientes no sistema que essa reflexão se faça em conjunto, porque, em 2025, tal como em 2019, há vários aspetos que podem, devem e têm ser melhorados.
Começando pela magnitude do fenómeno, não há como negar o quão impactantes são os números envolvidos e que, em pleno século XXI, não podem deixar de ser uma fonte de preocupação que exige envolvimento coletivo. Só tendo por referência os dados de 2024, disponibilizados pela CIG (Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género), constatamos que foram efetuadas às autoridades policiais um total de 30086 ocorrências. No mesmo período foram aplicadas 7378 suspensões provisórias do processo, 1345 arguidos foram colocados em prisão preventiva e 4057 arguidos foram condenados em penas de prisão efetiva. Por sua vez, 3637 arguidos ficaram sujeitos a medidas coativas acompanhadas de vigilância eletrónica, sendo que 10696 condenados frequentam programas para agressores em meio prisional ou na comunidade. No que se reporta ao apoio à vítima, há a salientar que 21608 pessoas foram abrangidas pelo sistema de teleassistência, sendo este o número mais alto desde 2018.
Perante estes dados, não podemos deixar de assumir que estamos perante um flagelo que deve ser olhado de frente e devidamente combatido de forma conjugada, multidisciplinar e em colaboração alargada. Esta é uma exigência e um desafio que todos os que têm um papel no sistema devem colocar em cima da mesa, relembrando a mais dramática estatística de todas: só em 2024 faleceram 22 pessoas vítimas de homicídio conjugal. Com efeito, pese embora o GREVIO destaque avanços positivos demonstrados por Portugal na conformação das suas medidas com as exigências da Convenção de Istambul, importa que não se ignore o “copo meio vazio” que ali também se enfatiza.
Começando pela magnitude do fenómeno, não há como negar o quão impactantes são os números envolvidos e que, em pleno século XXI, não podem deixar de ser uma fonte de preocupação que exige envolvimento coletivo
E comecemos, desde já, pelo aspeto que mais pungente do relatório do GREVIO no que respeita às atitudes dos tribunais portugueses. Ali se conclui que, em 2025, ainda se verificam “atitudes patriarcais persistentes entre alguns membros da magistratura, o que tem consequências negativas para as mulheres vítimas de violência doméstica, tanto nos processos penais como nos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais”. Ora, pese embora o relatório aponte esse dedo a uma franja diminuta da magistratura, assinalando até que os tribunais portugueses têm demonstrado uma compreensão progressista e positiva, a verdade é que não podemos deixar de olhar de frente para o “elefante” que este relatório coloca na “sala” do sistema judicial. Refletir sobre a questão não diminui o sistema, antes o reforça em legitimidade, objetividade e independência, sendo que essas diretrizes se impõem, de forma absolutamente transversal, aos tribunais de todas as instâncias e aos juízes de todos os géneros e idades. Faz sentido por isso que a iniciativa da mudança, das melhorias e do progresso passe também pelos órgãos de governação do poder judicial, salvaguardando a sua independência, mas não podendo deixar de contribuir para o seu prestígio.
No que se reporta à apontada necessidade de formação obrigatória e contínua do setor judicial sobre todas as formas de violência contra as mulheres, é de salientar que os juízes têm sempre reclamado por mais, melhor e mais frequente formação nas diversas áreas do saber e nesta muito em particular. A atualização de conhecimentos é fundamental à evolução da justiça, ao seu aprimoramento e adequação às novas realidades. A sociedade está em contínua mutação, assim como as leis que a organizam. A criminalidade ganha, cada vez mais, novas facetas, e a forma de a encarar não pode prescindir da criação de condições, designadamente ao nível da organização do serviço, para que os magistrados possam atualizar continuamente os seus conhecimentos. E pese embora a formação dos magistrados na matéria seja já uma realidade e com manifestos avanços nas últimas décadas, deve sempre aproveitar-se todas as oportunidades para se ir mais longe na compreensão do fenómeno, na forma de abordar vítimas, crianças e arguidos, na forma de avaliar as situações de risco, na promoção da redução das situações de revitimização nos sucessivos contactos com o sistema e na ponderação de uma atuação mais eficaz e célere. Estas são aliás reflexões que estão na ordem do dia para os magistrados, salientando-se que, na mesma semana em que é conhecido o relatório do GREVIO, foi também publicada uma nova edição da Revista Julgar (nº55), promovida pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, direcionada para o tema dos dez anos da Convenção de Istambul, e que juntou, num volume dedicado, análises profundas apresentadas por Juizes, Procuradores, Membros da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Psicólogos, Psiquiatras, Membros do GREVIO, Professores Universitários, Técnicos de Apoio à Vítima e Investigadores.
Por sua vez, o GREVIO também assinala um favorecimento, em geral, da suspensão provisória do processo e das penas de prisão suspensas na sua execução, apontando para alguma brandura das penas aplicadas. Não pondo em causa que cada um desses milhares de casos possa ter tido a reação penal adequada às respetivas circunstâncias, esta visão panorâmica sobre o sistema importa que se revisite o quadro legal. Sem nos enredarmos excessivamente nas questões técnicas, convém salientar que o crime de violência doméstica apresenta uma moldura penal que, no seu limite máximo, se fica pelos 5 anos de prisão. Essa moldura penal legitima a ponderação da suspensão provisória do processo, pois que este instituto está previsto precisamente para crimes puníveis até 5 anos de prisão. Por outro lado, a lei determina expressamente que em processos por crime de violência doméstica, a suspensão seja determinada mediante requerimento apresentado pela própria vítima, o que nos remete para um aspeto legal que mitiga, em parte, o efeito de crime público próprio do crime de violência doméstica. Mas, não menos importante, a lei prevê que o tribunal deve suspender a pena não superior a 5 anos de prisão se, em face da prova recolhida no caso concreto, puder fazer uma ponderação favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido. Ora, todas estas opções legais podem, como é evidente, ser objeto de reponderação e de alguma afinação, porém, e como ensinava Beccaria, sempre com as cautelas, há muito estudadas, de que “um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade”.
Este aspeto remete-nos, de imediato, para um outro que não é de somenos importância e que se reporta aos meios disponíveis para que o sistema seja mais efetivo e, tanto quanto possível, infalível. Urge capacitar o Ministério Público e os tribunais de magistrados e de funcionários que permitam, com o auxílio de assessorias, não apenas jurídicas mas multidisciplinares, acelerar os tempos de resposta, bem como o acompanhamento mais próximo das pessoas envolvidas nos processos, com a monitorização da evolução da situação ao longo do processo desde que este entra no sistema até que finda. Este alargamento de meios deve também abranger polícias e entidades de apoio às vítimas, gerando um trabalho sustentado e em rede. Para o efeito, como também assinala o GREVIO, é fundamental que sejam alocados mais recursos financeiros quer às autoridades públicas quer às organizações não governamentais que trabalham com este fenómeno, sendo que, apesar de ligeiras e pontuais melhorias, “os mecanismos de financiamento em Portugal para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres mantêm-se, em grande medida, inalterados”. É fundamental que este financiamento abarque também a proteção das vítimas, designadamente com a criação de linhas de atendimento e apoio e expansão de serviços de acolhimento.
Do mesmo modo, e porque a questão não pode ser apenas ponderada no ponto de vista da reação, a prevenção, designadamente por via da educação, afigura-se providencial. Sem prejuízo da intensificação das campanhas de sensibilização que vêm sendo feitas desde há vários anos, concordamos com o GREVIO quando assinala a necessidade de uma educação para a igualdade e para a prevenção da violência, designadamente ao nível dos currículos escolares, fomentando-se, desde cedo, a criação de novas mentalidades, baseadas na empatia e na tolerância.
Reconhecendo que estamos perante um problema que toca diretamente na forma como queremos que os direitos humanos sejam tratados no nosso país, que as suas características estão estudadas e que o diagnóstico está feito, importa continuar a fazer um caminho da mudança que Istambul exige de todos nós em pleno século XXI.
O desafio é agora.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.