Se o último neurótico de Nova Iorque aterrasse na capital do turismo permanente, talvez descobrisse que Lisboa é a única cidade europeia onde as suas neuroses ficariam em segundo plano. Preparem as selfies, as drogarias centenárias, as lojas com história e os pastéis de nata a €7.

Woody Allen fez 90 anos a 1 de dezembro — precisamente no feriado da Restauração — e, em vez de pedir descanso, pede outra cidade para continuar a filmar. Aos 90 anos, qualquer um de nós estaria a ver a Euronews com o som baixo, de manta nos joelhos e a repetir “o País está impossível”, “não vejo telejornais nacionais e muito menos a CMTV”. Mas ele não. Ele quer filmar. Quer uma nova crise neurótica. Quer horizonte. Quer cafés com charme decadente, ruas estreitas e mulheres elegantes a citarem Kierkegaard por engano. Ou seja: ele está mesmo é a pedir para filmar em Lisboa, e melhor ainda se o convidarem como fez Madrid.

E é aqui que a brincadeira começa a ser séria. Porque, meus amigos, se há cidade que podia acolher um filme tardio de Woody Allen — um Midnight in Alfama, um Whatever Works in Belém, um Match Point na Bica — essa cidade é, sem dúvida, a Lisboa de Carlos Moedas e não a Madrid de Isabel Díaz Ayuso. Lisboa é que vive num estado constante de pré-rodagem: drones, tuk-tuks, influencers pendurados nos miradouros, turistas em coma fotográfico, carteiristas no 28 e, claro, lisboetas em extinção.

Sendo honesto, Moedas nem precisava de lhe pagar um grande incentivo monetário: bastava prometer ao Woody Allen três coisas essenciais — um café bonito que ainda não tenha sido comprado por uma cadeia dinamarquesa; silêncio suficiente para filmar sem ouvir um monte de “bifas” bêbedas numa despedida de solteira irlandesa; e eletricidade estável, sem risco de um novo apagão — que parece que agora estamos todos sujeitos, e é melhor ter também um kit de sobrevivência em casa — para ele poder escrever o argumento na sua máquina Olympia de 1960. Só isso já seria ficção científica.

Imaginemos a primeira cena do cineasta em Lisboa antes mesmo de começar a rodar: Woody chega ao Terreiro do Paço e diz: — “I want Lisbon as Lisbon.” E imediatamente surgem 14 tuk-tuks, 5 scooters a entregar ramen ou pizza e um grupo de 70 suecos em visita guiada a seguir uma guia com guarda-chuva amarelo. Allen tenta caminhar até ao Chiado, de braço dado com a sua Soon-Yi, para sentir a vibe. Ao fim de 30 metros, descobre que a vibe é uma fila de 60 metros para comprar pastéis de nata gourmet no Largo do Camões. Moedas, entusiasmado, explica-lhe no seu perfeito inglês, diga-se: — “It’s our Broadway”, — esquecendo-se completamente do Coliseu dos Covões e do Politeama do La Feria na Rua das Portas de Santo Antão — o que não deixa de ser verdade, porque há mais gente agora no Chiado e no Camões às 10h da manhã do que na Times Square ao meio-dia.

Mas Allen, romântico tardio, quer antes uma Lisboa com alma, nada de jantaradas no JNcQUOI ou no Solar dos Presuntos. Quer aquela luz mourisca, quer casas de fado castiças, quer aquele elétrico que parece prestes a chorar, quer aquela lisboeta fatalista que diz “não vale a pena” com a mesma convicção com que se diz “amo-te”. Quer viver na pele “esta estranha forma de vida”. E quer, sobretudo, filmar num sítio onde não o cancelem ao pequeno-almoço. Nesse capítulo, Portugal é um spa emocional: toleramos tudo com a mesma calma com que esperamos o metro quando está atrasado vinte minutos. “É a vida”, dizemos, encolhendo os ombros. “São as linhas de metro paradas ou a greve do pessoal do metro”, acrescentamos.

E assim nasce o filme. Na nossa imaginação, mas nasce carregado de um certo realismo.

Tentemos agora adivinhar o enredo do filme de Woody Allen. Vamos a isto. Em Lisboa, Woody Allen filmaria o seu filme mais pessimista e mais luminoso ao mesmo tempo. Seria a história de um americano idoso, perdido num Airbnb de Alfama, que tenta encontrar sentido na vida enquanto uma guitarra portuguesa toca à distância e o vizinho de cima faz alojamento local para 12 alemães que querem aprender a dizer “obrigado”, metade deles nómadas digitais, que vivem ali porque fica perto — e dá quase para ir a pé ou de bicicleta Gira até à Unicorn Factory Lisbon no Beato.

O protagonista, inevitavelmente, apaixona-se por uma lisboeta de 32 anos, professora de filosofia aplicada, interpretada pela Alba Baptista, — a Beatriz Batarda já é um pouco velha para o papel — que vive com três colegas porque a renda são 1600 paus (euros) por um T0 com vista para uma parede com azulejos de um lado e um saguão húmido do outro. Ela explica-lhe Kierkegaard, Pessoa, Agustina e a diferença entre “bica”, “café”, “italiana” e “garoto”. Ele, confuso, tenta perceber porque é que a cidade parece tão bonita e tão cansada ao mesmo tempo.

No terceiro ato, claro, aparece Carlos Moedas em cameo. Não a falar — isso seria realismo mágico — mas a acenar com entusiasmo, a anunciar mais um projeto para a cidade: transformar Alfama num grande plateau de filmagens permanentes para produções internacionais com a Meg Ryan, o Joaquim de Almeida e por que não “resgatar” do seu limbo a Alexandra Lencastre. Com direito a vouchers de hotel, passes ilimitados de funicular e um glossário para turistas aprenderem quando “já não dá” ou então “pois”, para acabar com a conversa.

Na verdade, Woody até poderia gostar disto tudo. Lisboa seria a primeira cidade do mundo onde não se notaria a sua neurose natural, porque aqui todos andamos mais neuróticos do que ele. A diferença é que nós chamamos “qualidade de vida” a tudo o que nos acontece. Nova Iorque é um stress.

E depois há aquela luz de Lisboa: aquela luz que, mesmo a filmar uma discussão sobre divórcio, faz parecer que estamos num postal ilustrado. Em Nova Iorque, os neuróticos têm sombra. Em Lisboa, os neuróticos têm sol. É muito difícil ficar deprimido ao pé do Tejo, mas ao Woody Allen pode até acontecer a graça divina de tentar.

No fundo, seria uma bela ironia da vida: Woody Allen, aos 90, filmar um dos seus últimos filmes numa cidade onde toda a gente tenta parecer feliz para a fotografia, enquanto por dentro faz contas à renda, ao IRS e ao preço agora de um cappuccino ou de uma bica na Baixa.

E talvez fosse um bom filme. Talvez o seu melhor da década. Talvez a última grande comédia sobre o absurdo de existir numa cidade tão bonita que nos dói, tão habitada que nos esgota, tão filmável que dá vontade de fugir — mas nunca fugimos; ou, quando fugimos, temos sempre vontade de voltar.

Se Moedas quiser fazer história, é simples: não precisa de vender Lisboa como destino turístico. Basta vendê-la a Woody Allen como destino existencial. E quem sabe — pela primeira vez — Lisboa não seria apenas cenário. Seria uma personagem.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Segundo o procurador-geral adjunto da comuna francesa de Bourg-en-Bresse, Antoine Celle, em declarações à agência France-Presse, os jovens, dois casais de namorados que “tinham nacionalidade portuguesa e residência na Suíça”, estavam em viagem rumo a Paris.

As vítimas são dois rapazes, um com 16 anos e outro com 18 anos, e duas raparigas, ambas com 18 anos, e despistaram-se em Collonges, município situado na zona da fronteira de França com a Suíça.

Os primeiros elementos recolhidos “não levam a crer que tenham consumido drogas ou álcool”, acrescentou o procurador-geral adjunto, referindo ter sido ordenada autópsia aos corpos.

O acidente aconteceu pelas 22h30 locais (21h30 em Lisboa) de sexta-feira.

Após o despiste o veículo foi contra alguma coisa, que não é especificada pela AFP, e incendiou-se.

“Apesar da intervenção dos bombeiros após uma chamada para o 112, todos os ocupantes foram declarados mortos”, de acordo com fonte das autoridades locais em declarações à AFP.

Contactado pela Lusa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros confirmou “as identidades portuguesas das quatro vítimas mortais do acidente de viação ocorrido em França na sexta-feira à noite”, lamentando a morte dos quatro jovens.

Há 35 anos, fazia capa, no jornal Los Angeles Times, a notícia It’s True: Milli Vanilli Didn’t Sing (É verdade: Os Milli Vanilli não cantam). Seguiram-se processos judiciais a reclamar a devolução do valor pago pelos CD e bilhetes de concertos. O Grammy para Melhor Novo Artista de 1990 foi revogado. A editora Arista Records eliminou do seu catálogo os álbuns. Para quem já não se recorda ou ainda não ouvia música, o dueto alemão acumulou sucessos como Girl You Know it’s True, mas num concerto, um problema no sistema de som repetiu vezes sem conta o mesmo verso, desmontando a trapaça. Tinham estilo, eram peritos na sincronização labial, mas não cantavam… ou não cantavam suficientemente bem para a sua voz ser um hit. Foi um escândalo. A imitação, o logro, criou um momento Milli Vanilli. A autenticidade é um bem valioso… Ou era. 

Este verão, os Velvet Sundown foram um êxito nos serviços de streaming, com mais de 900 000 ouvintes mensais no Spotify. Surgiram em junho, e em julho já a revista Rolling Stone publicava um artigo a confirmar que se tratava de músicas geradas por Inteligência Artificial. Mas ao contrário do que aconteceu há três décadas com os Milli Vanilli, as músicas continuam disponíveis nos serviços de streaming. Na bio, disponível no Spotify, passou a constar que é um “projeto de música sintética, guiada por criatividade humana”…

Na verdade, é um projeto muito lucrativo dos novos parasitas da música. Não são artistas, mas, com algoritmos e sem autorização dos artistas, utilizam o esforço criativo alheio para criar réplicas do que já foi inventado. O fenómeno está incontrolável.

De acordo com os serviços de streaming, mais de 30 000 novas “músicas” criadas usando a IA são todos os dias ali partilhadas. Os parasitas mais sofisticados criam bots para ouvir estas “músicas” e, assim, receberem royalties. Recorde-se que o streaming partilha entre todos os artistas as receitas, conforme o número de audições. Audições falsas ou mesmo verdadeiras de músicas criadas por IA canibalizam as receitas dos artistas. Spotify e outros serviços de streaming estão a utilizar ferramentas para detetar e retirar estas faixas (embora aparentemente não todas, dado que Velvet Sundown continua disponível). Mas nada impede que músicas geradas pela IA continuem a aparecer no seu feed, sem estarem identificadas.

Duas empresas (Udio e Suno) que desenvolveram os algoritmos mais utilizados para gerar novas músicas foram, no ano passado, processadas pela associação de editoras discográficas americana (RIAA). Mais uma vez, está em causa o uso não autorizado, e não pago, do trabalho dos artistas para treinar o algoritmo. Terão chegado a acordo há poucas semanas.

Os algoritmos passarão a estar disponíveis num serviço de subscrição e usando o trabalho dos artistas que o autorizem (recebendo por isso uma compensação financeira).

Os detalhes não são claros. Os algoritmos já estão treinados. Como se vai compensar o trabalho de todos os artistas que foi utilizado? Não parece que o algoritmo vá ser eliminado e novamente treinado, apenas com o trabalho de quem autorize e seja por isso compensado. Que individualmente, atraídos pela familiaridade, sejamos impelidos a ouvir música artificial é uma coisa, mas como sociedade aceitar que meia dúzia de informáticos (e os seus investidores, que sabem financiar um empreendimento ilegal) se tornem multibilionários, parasitando o trabalho criativo é, no mínimo, condenável. É urgente regular a utilização do algoritmo ou corremos o risco de uma infestação por músicas parasitas, que asfixiam a criatividade humana.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.


Os serviços mínimos na saúde para a greve geral de 11 de dezembro incluem situações de urgência, quimioterapia, cuidados paliativos e pensos, segundo a decisão do Tribunal Arbitral do Conselho Económico e Social (CES).

Entre os serviços que têm de ser assegurados no dia da greve geral estão “situações de urgência, assim como todas aquelas situações das quais possa resultar dano irreparável/irreversível ou de difícil reparação, medicamente fundamentadas”.

São cobertos pelos serviços mínimos os blocos operatórios dos serviços de urgência, os serviços de internamento que funcionam em permanência e as hospitalizações domiciliárias, assim como cuidados paliativos, cuidados intensivos, hemodiálise e tratamentos oncológicos em função da prioridade.

Estão ainda cobertos procedimentos para interrupção voluntária de gravidez essenciais para cumprimento do prazo legal de interrupção, assim como recolha de órgãos e transplantes e procedimentos de procriação medicamente assistida, caso a não realização implique prejuízo para o procedimento.

Radiologia de intervenção em regime de prevenção, tratamento de doentes crónicos com recurso à administração de produtos biológicos, a administração de fármacos a doentes crónicos e/ou em regime de ambulatório, serviços inadiáveis de nutrição parentérica e serviços de imunohemoterapia com ligação aos dadores de sangue integram também os serviços mínimos.

Ainda sob serviços mínimos estará o prosseguimento de tratamentos como programas de quimioterapia, de radioterapia ou de medicina nuclear, assim como os serviços complementares que sejam indispensáveis à realização desses serviços (medicamentos, exames de diagnóstico, colheitas, esterilização), “na estrita medida da sua necessidade”.

Tratamentos com prescrição diária em regime ambulatório (como pensos) e tratamento de feridas complexas também serão de serviços mínimos, assim como serviços destinados ao aleitamento.

Que trabalhadores?


Quanto aos trabalhadores para cumprir os serviços mínimos em cada unidade de saúde, ficou definido que terão de ser os equivalentes aos escalados ao domingo e feriado em cada turno (manhã, tarde, noite).

O tribunal arbitral refere ainda que, para os serviços mínimos, as unidades de saúde só podem recorrer a trabalhadores que adiram à greve caso não sejam suficientes os trabalhadores não aderentes.

Nesta decisão, o árbitro do lado dos trabalhadores, o advogado Filipe Lamelas, teve voto vencido – ou seja, não concordou a decisão -, por considerar que os serviços mínimos são demasiado abrangentes.

Um dos argumentos da sua declaração de voto é que já existindo definição de serviços mínimos na contratação coletiva dos médicos a definição de serviços mínimos acima daqueles para outros profissionais – sobretudo enfermeiros e técnicos – faz com que não sejam praticáveis em muitos casos.

“Em última análise, no presente acórdão, decretam-se serviços mínimos para atividades e/ou serviços que não irão funcionar porquanto não existe a mesma obrigação de prestação de serviços mínimos para os médicos nessas atividades e/ou serviços”, lê-se no documento disponível no CES.

Sobre os trabalhadores definidos para assegurar os serviços mínimos, Filipe Lamelas também discordou e alegou que há um Acordo de Serviços Mínimos, estabelecido inclusivamente com a Secretaria Geral do Ministério da Saúde, que prevê que em greve geral os trabalhadores são equivalentes apenas aos escalados “ao domingo, no turno da noite, durante a época normal de férias”.

“Nesse sentido, mesmo que o tribunal entendesse ser sua obrigação pronunciar-se sobre os meios necessários para garantir a prestação dos serviços mínimos na greve geral em apreço – o que se afigura discutível – nunca deveria fazê-lo em termos distintos daí constantes”, afirmou o árbitro da parte trabalhadora.


A greve geral para 11 de dezembro foi convocada pelas centrais sindicais CGTP e UGT, como protesto contra anteprojeto de lei da reforma da legislação laboral, apresentado pelo Governo.

Esta será a primeira paralisação a juntar as duas centrais sindicais desde junho de 2013, altura em que Portugal estava sob intervenção da troika.

Na sua edição de 13 de novembro, a VISÃO trouxe-nos um dossier com algumas estatísticas dos crimes praticados em Portugal, as quais traduzem um fiel retrato do contexto criminológico e de violência do País. Em resumo, podemos concluir que, no total, os números se têm mantido mais ou menos inalterados (apesar do aumento da população), não obstante certos tipos específicos de crime terem aumentado.

Na verdade, os últimos RASI (Relatórios Anuais de Segurança Interna) têm mostrado esta mesma tendência de manutenção dos números globais, registando, porém, um aumento nos crimes praticados por jovens (seja dentro ou fora da escola), na violência doméstica e na violação. Mas também a cibercriminalidade e os crimes de ódio têm aumentado. Apesar de continuarmos a ser um dos dez países mais seguros do mundo, com uma estatística estável ao longo dos anos, estes focos devem exigir de todos nós um especial cuidado e atenção.

Desconstruindo algumas perceções erradas sobre a criminalidade, o dossier dá exemplos concretos da evolução (positiva ou negativa) de alguns dos crimes com maior impacto na sociedade. Ora, no campo dos que registaram recente aumento, temos crimes praticados em contexto familiar (como a violência doméstica e o abuso sexual de criança) ou na maioria por pessoas conhecidas ou próximas (violação). Tanto a violência doméstica como a violação (sobretudo esta) são crimes praticados na sua larga maioria contra mulheres, o que os qualifica como crimes de género. Por outro lado, os crimes de ódio visam determinados grupos de cidadãos, como, por exemplo, migrantes.

Vivemos numa época de influencers, youtubers e podcasters em que se fala sobre tudo. As redes sociais passaram a dominar grande parte da nossa vida – sem que nos tenhamos apercebido – e os algoritmos e a Inteligência Artificial vieram modificar ainda mais o nosso modo de vida. Mas, perguntará o(a) leitor(a), o que tem uma coisa a ver com a outra?

Os jovens (mas também os adultos) vivem cada vez mais agarrados aos telemóveis e tablets, o que os leva a consumir jogos e vídeos em doses diárias. O problema é que cada vez mais encontramos vídeos onde se promove a intolerância, o ódio e a discriminação. E, claro, a violência verbal e até física. Mas não só. A misoginia é “vendida” como algo de bom, natural, levando jovens a olhar para as mulheres como seres inferiores, controláveis, nas quais até se pode bater ou maltratar. Os movimentos de incels têm crescido. A violência de jovens contra outros jovens escalou do bullying para a violência gratuita com origem na raiva, no ódio. Tudo isto afetando muitos jovens, que crescem e desenvolvem a sua personalidade no meio da violência e a ler, a ver e a ouvir tais conteúdos.

Acresce que, no caso específico da violência doméstica, a exposição das crianças e dos jovens a essa violência potencia que se tornem, eles próprios, agressores. Porque crescem no meio da violência verbal e física, num ambiente altamente tóxico.

Não espanta, pois, que os números não desçam (ao contrário de outros) nestes tipos de crime. Os psicólogos já estabeleceram a ligação entre redes sociais (e telemóveis) e a agressividade e até a violência, mas também a redução das capacidades cognitivas e de raciocínio. A pergunta que todos devemos fazer é se estamos a criar e a educar agressores e jovens sem tolerância, respeito e controlo emocional.

Mas não são apenas os vídeos e jogos que os jovens consomem. São também alguns discursos políticos, que ouvem em casa, que promovem o ódio e a intolerância. Quando vemos e ouvimos, por exemplo, responsáveis políticos a fazer gestos e a tecer comentários de cariz misógino, começamos a tomar por normal este comportamento. Quando políticos e influencers dizem, entre outras barbaridades, que as mulheres não são tão inteligentes como os homens, quem ouve repetidamente estes discursos começa a aceitá-los como verdade. E a personalidade em desenvolvimento dos jovens é, assim, moldada neste contexto social e cultural. Crescem a aprender a odiar, a desprezar as mulheres, os migrantes e/ou outros grupos populacionais. Como tal, nunca foi tão crucial apostarmos na educação, na cidadania (veja-se o exemplo dinamarquês, que criou aulas de empatia nas crianças) e na prevenção. Temos de travar esta onda que está a influenciar negativamente as crianças e jovens de hoje, que são o futuro da sociedade.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Se a Golden Age de Hollywood tinha “bigger than life”, o que temos agora é “bigger than streaming”. A Netflix — esse “monstrinho simpático” que começou a entregar DVDs pelo correio como quem vende Tupperware — decidiu que já é altura de fechar o círculo evolutivo: vai, ao que parece, devorar a Warner Bros., vai engolir a HBO Max, ou seja, prepara-se mesmo para mastigar o que resta da velha ordem cinematográfica de Hollywood. A compra ainda vai passar pelos reguladores, mas a verdade é simples: mesmo que não avance, o mundo já mudou. O cinema já estava meio adoentado; agora recebeu uma espécie de atestado de óbito provisório. Hollywood viveu mais de um século a fabricar realidades paralelas, mas a maior ficção dos últimos tempos é achar que esta aquisição não vai abalar tudo: da distribuição aos festivais, do negócio das salas ao modo como o espectador comum — aquele que já troca as salas de cinema pelo sofá com um estalar de dedos — decide ver filmes. E, claro, há a pergunta eterna, repetida como um refrão deprimido: “É o fim das salas de cinema?” Calma. FIM é uma palavra talvez demasiado forte. Chamemos-lhe antes: mudança irreversível e potencialmente fatal. É mais elegante.

Uma das grandes lições dos últimos anos é simples: subestimar a Netflix é como subestimar o Thanos (o Titã Louco, o supervilão icónico da Marvel Comics). Em 2013, House of Cards já virou de certo modo a televisão e indústria audiovisual do avesso. De repente, as pessoas perceberam que podiam ver uma série inteira no mesmo dia e a TV clássica nunca mais recuperou o fôlego. Agora imagine essa lógica aplicada à Warner Bros., a casa-mãe de CasablancaO Mundo a Seus Pés (Citizen Kane)Harry PotterGuerra dos Tronos (Game of Thrones)SupermanBatmanDune e mais um milhão de IPs que rendem biliões de dólares até quando piscam o olho. A Netflix compra conteúdo porque o conteúdo é petróleo. E, numa economia do streaming, quem controla o petróleo manda no planeta. Mas a narrativa oficial, apresentada com aquele sorriso corporativo que só executivos bem pagos como Ted Sarandos conseguem fazer, tenta tranquilizar o público: “Vamos manter os lançamentos em sala.” Claro, Ted. É a mesma coisa que dizer eu amanhã acordo com os abdominais do Henry Cavill sem ter ido ao ginásio. Porque “manter” significa exatamente o quê? Três semanas de exclusividade? Quatro? Sete dias para cumprir regras dos Oscars e acabou? A janela tradicional de 90 dias já foi ao ar desde a pandemia e agora arrisca cair para 17 dias, o padrão Netflix. Dir-se-ia, o suficiente para levar um filme diretamente da passadeira vermelha para a almofada do sofá.

Do ponto de vista empresarial, a operação é impecável: poupa-se dinheiro — sobretudo nas subscrições ou assinaturas das plataformas de streaming, que associadas às de desporto já são uma renda mensal razoável — eliminam-se duplicações, unificam-se equipas, vende-se a narrativa da “eficiência”. Mas aqui entre nós: eficiência é uma palavra linda até chegar ao cinema. Depois torna-se sinónimo de mais filmes medianos, menos risco artístico, menos diversidade criativa, menos espaço para os filmes autorais que não sejam algoritmicamente rentáveis, menos salas e mais encerramentos discretos, tipo funerais de quinta-feira, a lembrarem a extraordinária série “Sete Palmos de Terra” da HBO, exibida em 2001 na RTP2. A Netflix e a Warner juntas formam, de facto, um mamute, bonito de ver à distância, mas assustador quando calca tudo à volta. Os sindicatos e as associações profissionais de Hollywood e realizadores de todo o mundo — não sei se estará neste manifesto algum português — já gritaram basta. Os realizadores estão em pânico, os argumentistas sentem o chão a fugir, e claro os distribuidores e exibidores tradicionais falam em “ameaça sem precedentes”. E não, não é histeria. Se um estúdio centenário passa a responder à lógica do “streaming-first”, então toda a cadeia do negócio muda completamente: filmes produzidos para sala passam a ser exceção; estreias em sala passam a gesto simbólico; festivais passam a negociar com um algoritmo que decide quando e onde um filme deve existir.

E, no meio disto tudo, entra o espectador ou sai ele para sempre e deixa de ter poder de decisão e escolha. Na verdade, o maior inimigo das salas não é a Netflix. É, talvez, a preguiça do espectador. As pessoas — nós, vocês, eu às vezes, confesso — já não querem levantar-se do sofá. O preço do bilhete subiu, o estacionamento custa a anuidade do ginásio que não usamos e o balde de pipocas e os refrigerantes começam a ameaçar as nossas finanças públicas. Depois há a televisão 4K, o som barulhento dos soundbars ou do subwoofer, a manta confortável, os pijamas, o chazinho ou a cerveja, o telemóvel que vibra com notificações que nos distraem da atenção do filme. É uma luta desigual em relação às salas. A Netflix percebeu isso muito antes de Hollywood. Jogou o jogo melhor do que todos os outros. E agora, com a Warner praticamente no bolso, pode finalmente fazer o que sempre quis: mandar no pipeline inteiro. Do guião ou do argumento ao sofá. Do plano de rodagem ao autoplay. E o espectador é o último obstáculo. Ou começamos a ir ao cinema como quem cumpre um dever cívico — tipo votar — ou as salas vão fechar tão silenciosamente sem que ninguém dê por isso.

Entre as peças que podem cair, há também uma particularmente frágil, embora à partida não pareça: os festivais. Ninguém quer escrever este capítulo, mas alguém tem de o fazer. O impacto será gigantesco. Se a Netflix controla a Warner, controla o catálogo; se controla o catálogo, controla o acesso às estreias; e, se controla o acesso às estreias, começa a ditar quais filmes que vão aos festivais de Veneza, Cannes ou Berlim — se já não controla?— e em que condições. E sabemos bem: a Netflix nunca teve grande paciência para as regras de festivais, muito menos para a obsessão francesa —sobretudo do Festival de Cannes e dos players, que o apoiam — com janelas de exibição. Imagine-se Cannes a lidar com um Dune 3 que estreia dez dias em sala e depois mergulha diretamente no streaming. Imagine-se Veneza a negociar um Batman #qualquercoisa com estreia simultânea no sofá. Imagine-se Berlim a implorar por um Magic Mike 12 só para manter relevância e o seu ativismo político. O cinema de autor já vivia numa corda bamba; agora, com esta fusão, a corda tornou-se mais fina e o vento aumentou. Vamos ver no que vai dar, quando alguns realizadores diziam que o streaming seria uma forma dos filmes de autor, documentários, curtas-metragens, chegarem a mais espectadores.

Do lado dos reguladores, reina uma mistura de inocência e azelhice. A senadora democrata, Elizabeth Warren classificou o negócio como “pesadelo anti-monopólio”. Tem razão. Mas os reguladores norte-americanos dos últimos 20 anos têm sido um desastre: aprovaram a compra da Fox pela Disney, a fusão de cabos e fontes, a Amazon a comprar metade do planeta. Agora querem acordar? Mesmo que bloqueiem a fusão, a mensagem está dada: o futuro da indústria será decidido pelas plataformas de streaming. Ponto final.

E depois há as salas, essa espécie quase em vias de extinção, com cheiro a nostalgia e pipocas demasiado caras e nocivas para quem quer ver um filme sem escutar alguém a remexer no balde ou a comer. As salas já estavam frágeis; agora estão à beira de um colapso lógico. O mais trágico é que a própria Warner, que em 2025 teve alguns dos maiores sucessos de bilheteira do ano, pode ser empurrada para um modelo que não deseja. Porque o que a Netflix quer, a Netflix tem. E se a Netflix acha que 17 dias de exclusividade são suficientes, então serão. O caminho é simples: reduz-se o tempo de exibição, baixa-se a rentabilidade dos cinemas, as pessoas deixam de ir, as salas fecham, o streaming vence, toda a gente diz que foi inevitável. E talvez até tenha sido.

O futuro, portanto, parece uma “Guerra dos Tronos” sem dragões, mas com algoritmos. Esta fusão é mais do que um negócio: é um aviso à navegação. Os próximos anos serão decididos por três forças: reguladores (se acordarem a tempo), consumidores (se ainda quiserem cinemas), e a própria Netflix, que já percebeu que ganhou o jogo muito antes de entrar no tabuleiro. E a Warner? A Warner é o dragão capturado: aquele que, no final da temporada, muda de lado e deita fogo à própria casa.

Podemos ser otimistas, evidentemente. Podemos acreditar que a Netflix vai respeitar a arte, a cultura, os cinemas, os festivais, a cadência natural das estreias. Podemos acreditar em unicórnios. Podemos acreditar em super-heróis. Mas a verdade é mais nua e crua: o cinema não morre, transforma-se — como a Lei de Lavoisier — como já aconteceu antes em outras fases. Quem morre são as salas. Sete palmos abaixo da terra, com um projetor enferrujado e um bilhete por validar. E nós? Nós continuamos no sofá, a carregar em “Próximo Episódio”. O futuro chegou. E não pediu bilhete, basta ser assinante.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Há momentos na história em que o perigo não se anuncia com violência visível, mas através de ruturas subtis: votos que desestabilizam equilíbrios históricos, discursos que corroem instituições e uma normalização progressiva da intolerância.

A Europa vive hoje um desses momentos. A ascensão da extrema-direita — antes encarada como fenómeno periférico — tornou-se força estrutural, apta a moldar governos, reescrever agendas e alterar profundamente o imaginário democrático.

O que está em causa já não é apenas o crescimento eleitoral de partidos radicais, mas a metamorfose da própria ordem democrática em algo mais frágil, permeável a um autoritarismo larvar e à política do medo. A linguagem que estigmatiza minorias, desumaniza imigrantes, desacredita o jornalismo e procura subjugar magistrados tornou-se, em muitos países, parte do quotidiano político. O extremismo não avança com ruturas abruptas; infiltra-se gradualmente, como uma fissura que se propaga silenciosamente até comprometer toda a estrutura.

A origem desta crise não reside apenas no mal-estar social acumulado; encontra-se, sobretudo, no abandono prolongado de setores que se sentiram deixados para trás por modelos económicos desiguais, promessas governamentais incumpridas e dirigentes políticos que perderam contacto com a realidade concreta das populações. É nesse vazio que a extrema-direita floresce, oferecendo respostas aparentemente simples a problemas complexos e identificando inimigos convenientes para canalizar frustrações.

Mas há um fenómeno ainda mais grave: a erosão moral e política do centro democrático. Durante décadas, sucessivos governos evitaram enfrentar contradições estruturais das suas sociedades — a precariedade laboral, o declínio das periferias, o envelhecimento populacional, os custos da transição energética. Ao não enfrentarem estas tensões, deixaram desocupados espaços políticos cruciais, prontamente ocupados por actores que fazem do ressentimento uma arma e do conflito identitário uma estratégia eleitoral. A extrema-direita prospera porque ousou ocupar territórios que o centro desertou.

À medida que ganha terreno, esta nova direita radical opera segundo uma lógica implacável: primeiro, ataca a independência da comunicação social, acusando-a de parcialidade; depois, questiona a legitimidade do poder judicial; por fim, procura remodelar regras eleitorais, limitar direitos fundamentais e colonizar instituições de controlo democrático.

A democracia não sucumbe num único dia; degrada-se através de sucessivas alterações estratégicas, sempre apresentadas como medidas “necessárias”, “urgentes” ou “em nome do povo”. É assim que o autoritarismo se normaliza.

A Europa experimenta estes sinais em múltiplas frentes. Em vários países, observam-se tentativas subtis de influenciar a nomeação de juízes, de condicionar a actuação de órgãos de fiscalização, de pressionar meios de comunicação críticos ou de reescrever regras eleitorais sob o pretexto de “estabilidade governativa”. Ao mesmo tempo, as pressões migratórias, as desigualdades territoriais, a insegurança económica e os efeitos persistentes da guerra moldam contextos em que discursos radicais ganham terreno com facilidade.

A crise climática — com os seus custos avultados e impactos desiguais — alimenta perceções de injustiça. Em paralelo, a proliferação de desinformação digital e o aumento da polarização enfraquecem a capacidade coletiva para o compromisso, para o diálogo e para a moderação.

O maior perigo, contudo, não reside apenas no sucesso eleitoral da extrema-direita. O risco real emerge quando partidos democráticos adoptam parte da sua retórica — normalizando ideias antes inaceitáveis e deslocando todo o espectro político para posições mais duras. Quando o discurso do medo se torna critério de governação, até a política tradicional se contamina. O extremismo vence não apenas quando governa, mas quando redefine os limites do possível.

Portugal não vive isolado deste fenómeno. A instabilidade europeia condiciona o ambiente interno, molda expectativas sociais e pressiona instituições. A crise da habitação, a desigualdade económica, a fragmentação partidária e a crescente polarização tornam o País vulnerável às mesmas forças que já remodelam democracias no continente. Proteger a democracia exigirá, por isso, muito mais do que proclamações formais: impõe reformas profundas, vigilância cívica e capacidade de antecipação política.

A resposta necessária deve ser firme e estrutural. Requer o robustecimento das instituições públicas, o combate efectivo à corrupção, políticas sociais que reduzam desigualdades e um compromisso inequívoco com o pluralismo democrático. Implica também a revalorização do espaço público como lugar de debate racional e informado — algo impossível sem comunicação social forte, educação cívica exigente e transparência governativa.

A democracia não está perdida — mas encontra-se fragilizada. E é na fragilidade que os autoritarismos prosperam. Evitar uma reversão democrática exige reconstruir a confiança dos cidadãos, devolvendo-lhes segurança económica, expectativas tangíveis e a convicção de que o sistema democrático ainda é capaz de produzir justiça.

A ascensão da extrema-direita não é destino inevitável; é consequência política. E aquilo que é consequência pode ser transformado. A questão crucial não é “como chegámos aqui?”, mas “que escolhas faremos agora?”.

O futuro da democracia europeia não depende apenas das urnas, mas da determinação coletiva em proteger os seus alicerces — antes que o silêncio da resignação se torne o som definitivo de uma era que julgávamos ultrapassada.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Em qualquer negociação há sempre diferentes perspetivas e interesses em jogo. O segredo é colocar os objetivos no máximo para se chegar ao acordo possível. E foi isso que Portugal, a União Europeia e o restrito lote de outros países alinhados com as nossas posições fizeram em Belém do Pará, do primeiro ao último dia da COP30.

O contexto em que partimos para esta Conferência das Partes dificilmente poderia ser mais desfavorável. Os Estados Unidos da América, atualmente fora do Acordo de Paris, não enviaram representantes de alto nível à conferência. O bloco de países cujas economias dependem dos combustíveis fósseis assumiu forte oposição a qualquer calendário para o fim do petróleo, do gás e do carvão. E mesmo certas dinâmicas geopolíticas, como o reforço que tem tido o chamado grupo dos BRICS, pesaram negativamente na equação, levando a que até alguns dos países mais afetados pelas alterações climáticas, nomeadamente países em desenvolvimento, assumissem posições negociais pouco ambiciosas.

É importante entender-se este ponto de partida para se poder analisar de forma objetiva e justa o que se passou no Brasil. É verdade que ficámos aquém, não apenas do que eram as ambições de Portugal e da União Europeia, mas do que é necessário fazer face aos objetivos de travar e começar a reverter o aumento das temperaturas médias. Mas não é menos verdade que mantivemos vivo o Acordo de Paris. E se muitos notam que, apesar deste acordo, as emissões de gases causadores de efeito de estufa têm continuado a aumentar, nem todos têm a noção de que, sem o mesmo, o aumento das temperaturas médias chegaria aos 4,5°C no final do século XXI.

Em circunstâncias negociais difíceis, às quais não faltou sequer um incêndio no penúltimo dia de trabalhos, foram aprovados textos muito importantes pelas 195 delegações presentes, garantindo avanços concretos e preservando a ambição mínima necessária para manter viva a trajetória de controlo do aumento das temperaturas médias.

Desde logo, a Decisão do Mutirão, texto político central da COP30, que reafirma que a transição global para um desenvolvimento de baixas emissões é irreversível e que o Acordo de Paris “está a funcionar”, ainda que seja necessário avançar “mais longe e mais rápido”. Um documento que lança o Acelerador Global de Implementação e apela a uma mobilização internacional reforçada para acelerar as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) alinhadas com o limite de 1,5°C.

Mas também o Programa de Trabalho de Transição Justa, que representa a criação de um novo mecanismo formal para apoiar políticas de transição justa – com foco em cooperação técnica, empregos, inclusão e proteção social para trabalhadores afetados pela mudança energética.

A Decisão sobre o Balanço Global, através da qual a COP30 assegurou a continuidade do espaço de acompanhamento criado no Dubai, permitindo monitorizar a implementação das recomendações da primeira avaliação do Acordo de Paris.

E o reforço do compromisso internacional para alinhar fluxos financeiros com trajetórias de baixas emissões e resiliência climática, tema central do debate sobre a reforma do financiamento climático.

No capítulo da adaptação, as Medidas de Resposta, através da adoção de uma decisão sobre impactos socioeconómicos de políticas climáticas, ajudando países a gerir efeitos adversos de transições rápidas, como impactos no emprego e na competitividade.

Uma das mais importantes decisões desta COP foi triplicar o Fundo de Adaptação até 2035.

Portugal, recorde-se, anunciou uma contribuição de um milhão de euros para o Fundo de Adaptação, reforçando o seu compromisso com a ação climática e a solidariedade internacional.

E também o Objetivo Global de Adaptação (GGA), através da aprovação de um conjunto inédito de indicadores globais que permitirá medir, de forma padronizada, vulnerabilidades, progresso e ações de resiliência.

Refira-se ainda, num tema em que estive particularmente empenhada, enquanto negociadora da União Europeia, a aprovação do novo Technology Implementation Programme (TIP), alinhado com o Acordo de Paris e destinado a acelerar a transferência de tecnologia para apoiar a ambição de limitar o aquecimento global a 1,5°C. Um programa que contará com financiamento do GEF – Global Environment Facility e do GCF – Green Climate Fund e será operacionalizado até 2034.

No final, as principais exigências da União Europeia e de Portugal foram aceites. Na ambição de avançar na mitigação e na consequente redução de emissões de gases com efeito de estufa; na referência à decisão de “phasing out” dos combustíveis fósseis até 2030, aprovada na COP do Dubai; e no reconhecimento do multilateralismo como a única abordagem que permite à comunidade internacional manter firme o limite de 1,5°C para o aumento das temperaturas médias.

Como se vê, esta esteve muito longe de ser uma COP fracassada. Na realidade, e em muitos dossiers, avançou-se mais e de forma mais efetiva do que em muitas conferências anteriores. Muitos compromissos assumidos anteriormente começaram finalmente a ser passados à prática. Em especial, nos domínios da adaptação e do financiamento.

Para Portugal, em particular, esta foi uma COP30 muito bem-sucedida. Sabendo aproveitar as circunstâncias específicas deste evento, nomeadamente da sua realização no Brasil, contribuímos ativamente para que fossem aprovadas decisões essenciais – do Mutirão ao financiamento da adaptação –, ao mesmo tempo que construímos pontes importantes e estreitámos acordos bilaterais, nomeadamente – mas não só – no universo de países de língua portuguesa.

Este protagonismo começou a construir-se logo na Cúpula de Líderes, evento que antecedeu a COP30, e no qual Portugal, representado pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, foi o primeiro país da União Europeia a anunciar um contributo financeiro para o Fundo da Floresta Tropical, iniciativa criada pelo Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e prosseguiu ao longo do evento.

O Pavilhão de Portugal – um espaço de 150 m², desenhado pelo arquiteto Eduardo Souto de Moura e decorado com móveis concebidos pelo próprio e por Álvaro Siza – voltou a ser, tal como já acontecera em Baku, um ponto de encontro da lusofonia e um espaço para debater o clima mas também a ciência e a cultura.

O pavilhão foi inaugurado a 10 de novembro, com a atuação do cantor António Zambujo, num momento simbólico que reforçou a ligação entre cultura, identidade lusófona e ação climática. Durante toda a conferência, acolheu sete eventos diários, reunindo empresas, universidades, politécnicos, ONG, centros de investigação e projetos oriundos de vários países da CPLP. No penúltimo dia do evento tornou-se também um símbolo de cooperação, ao servir de base às autoridades brasileiras que acorreram ao incêndio ocorrido ali perto.

Num balanço final, diria que não saímos satisfeitos desta COP30, como não sairemos satisfeitos de nenhuma Conferência das Partes até que os enormes desafios que enfrentamos tenham sido definitivamente ultrapassados. Mas saímos cientes de termos cumprido o nosso papel, dentro das responsabilidades que assumimos enquanto nação e Estado-membro da União Europeia. E saímos com uma renovada convicção sobre a importância destes eventos. As COP, por mais frustrantes que os seus resultados sejam para muitos, têm sempre um impacto decisivo na luta contra as alterações climáticas. E esta não foi exceção.

Palavras-chave:

Há lugares que nos obrigam a parar e pensar. Não porque sejam frágeis, mas porque transportam uma força acumulada em séculos de relação entre substrato, pessoas e ecologia. São territórios que guardam uma memória longa, feita de práticas agrícolas, de mosaicos agroflorestais, de usos que foram moldando a paisagem e criando aquilo a que chamamos identidade, saberes, artes e cultura. A área onde se prevê instalar o megaprojeto fotovoltaico e a linha de muito alta tensão Sophia, estendendo-se pelos concelhos de Fundão, Penamacor e Idanha-a-Nova, é um desses lugares. E, perante a escala da intervenção, a pergunta torna-se inevitável: quanto estamos dispostos a perder em nome de uma transição energética que já não corresponde, na prática, à promessa de sustentabilidade que a legitimou? O Sophia implica uma alteração profunda num território cuja resiliência depende de equilíbrios delicados: solos férteis, sistemas agroecológicos diversificados, corredores ecológicos essenciais e um património cultural vivo que não existe separado da paisagem que o sustenta. A análise cruzada dos impactos revela um padrão consistente: perda de funções ecossistémicas, fragmentação de habitats, pressão acrescida sobre a água, aumento da erosão e uma intrusão visual capaz de reconfigurar toda a leitura e a mensagem da paisagem. Não estamos perante um ajustamento controlado, mas perante uma transformação estrutural radical com efeitos cumulativos difíceis de acomodar, integrar, compensar e reverter. Mas o impacto não é apenas ecológico, é também cultural e simbólico. As Aldeias Históricas e os territórios envolventes não são meros cenários: são infraestruturas identitárias, resultado de séculos de trabalho, abandono, retorno e reinvenção. Sobrepor-lhes milhares de hectares de infraestrutura técnica equivale a redesenhar a relação das comunidades com o seu lugar. E essa perda de relação tem consequências profundas. A perda não se compensa com medidas técnicas ou contrapartidas financeiras. Quando se perde, fragiliza a coesão, a confiança e a continuidade, três pilares que sustentam a vida no Interior.

Do ponto de vista ecológico, a ideia de reversibilidade é largamente ilusória. 40 anos de operação significam compactação prolongada, erosão acumulada, perda de fertilidade, diminuição da biodiversidade e empobrecimento dos solos, tudo o contrário do que a Avaliação de Impacto Ambiental afirma. A experiência internacional mostra que a restauração pós-megaprojeto é lenta, dispendiosa e raramente devolve as condições originais. A regeneração exige tempo ecológico, não apenas decisões administrativas. Num país já pressionado pela desertificação e pelo despovoamento, comprometer água, solo e biodiversidade é comprometer a base material da nossa sobrevivência futura.

Há ainda uma dimensão ética que não pode ser ignorada. Quando a transição energética se impõe aos territórios, e não é construída com eles, gera-se aquilo que vários autores designam de energy sprawl: expansão desordenada e acelerada de infraestruturas energéticas, indiferente ao contexto e às pessoas que nele vivem. Esta lógica contradiz a ideia de transição justa e reproduz as assimetrias que, supostamente, queríamos corrigir.

O mais inquietante, porém, é o desfasamento entre discurso e prática. De um lado, multiplicam-se declarações de compromisso com a sustentabilidade; do outro, avançam projetos que fragilizam precisamente os sistemas naturais e culturais que a tornam possível. A energia renovável não é um salvo-conduto moral. Precisa de limites, de contexto e de uma leitura fina do território. Sobretudo, precisa de reconhecer que há lugares onde o valor acumulado, ecológico, cultural, simbólico e comunitário é demasiado alto para ser colocado em risco. E assim regressamos à questão que realmente importa: que modelo de transição queremos construir? Um modelo que se impõe aos territórios ou um modelo que nasce deles, respeitando os seus tempos, a sua identidade e a sua capacidade de regeneração? É esta escolha que determinará a legitimidade ecológica e democrática do futuro energético do País.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

A criminalização da pobreza atingiu nos últimos dias o ponto mais alto, ou melhor o grau menos zero, da falta de empatia.

Não sei o que mais me entristeceu, se o desespero da mãe que, perante a decisão de a impedir de ficar com a filha por falta de condições económicas, optou por “raptar” o que já era seu, se a atitude de enorme amor que a levou a entregar a bebé às autoridades, numa resignação de quem sabe que os pobres não têm nem voz nem vontade neste país.

Ficar sem um filho é tão anti-natural que nem sequer existe palavra para o definir. Somos órfãos quando perdemos pais, mas somos invisíveis, deixamos de ter sequer um significante, quando perdemos um filho. E podemos perdê-lo de tantas formas…

Ao entregar a sua filhinha na esquadra, aquela mãe fez o que anos atrás, em tempos de “outra senhora”, se fazia com a roda: entregou-a à sua sorte, uma vez que o Estado considera que com ela, mãe, que não tem casa nem condições económicas, a menina não teria futuro. Melhor ficar numa casa de acolhimento com dezenas de outras crianças, na sua maioria enjeitadas pelos pais, sem um carinho nem um colo. Carinho e colo que aquela mãe, no seu desespero, tentou dar à sua pobre maneira.

Sempre fui muito critica das Comissões de Proteção das Crianças e Jovens. Não do conceito que está na sua génese, mas da forma como (não) se encontram organizadas.

Criadas em 1999, estas comissões assumiram uma estrutura não judiciária com competências de intervenção em situações de perigo. A ideia era que pudessem atuar numa proximidade comunitária e, como tal, o seu funcionamento assumiu um caráter territorial, autónomo e descentralizado, articulando-se com escolas, com unidades de saúde, forças de segurança, autarquias e organizações locais.

Se, à primeira vista, uma abordagem deste tipo pareceria lógica e eficaz, permitindo identificar riscos e intervir diretamente, privilegiando soluções consensuais envolvendo as próprias famílias, na prática, constata-se que estas comissões, por não terem uma tutela própria e efetiva, acabam por incorrer num desequilíbrio que começa logo na sua constituição. Com efeito, o facto de integrarem elementos dos municípios, da Segurança Social, das escolas, das unidades de saúde, das Forças de Segurança, de Associações Locais e outras “entidades da comunidade com relevância social” faz delas uma amálgama de pontos de vista, de sensibilidades, que acabam por ser mais entrópicas que efetivas.

O caso desta mãe, se bem que extraordinariamente chocante, não é o único em que as decisões das CPCJ tomam contornos de desumanidade. Muitas vezes, o Superior Interesse da Criança, constante da Lei, transforma-se na visão dum interesse próprio com os seus referenciais e as suas vivências. Não existe uma mesma medida, um procedimento idêntico estabelecido, nem tão pouco alguém que “fale” pelas crianças e pelas famílias.

Apesar de tudo, ninguém pode negar a importância das CPCJ. Mas não creio que haja alguém que não considere ser premente a necessidade de as tornar mais profissionais e, sobretudo mais homogéneas, no que se refere aos procedimentos, aos ritmos de intervenção, às assimetrias de recursos e às disparidades territoriais.

Não ignorando a existência duma Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), o facto incontestável é que esta não desempenha o papel de tutela plena e vinculativa necessária.

Foi perante o sistema atual, dependente de múltiplos atores locais e sem um órgão nacional fiscalizador, dotado de poderes de monitorização direta, bem como em face dum contexto de degradação socioeconómica, de crise sanitária prolongada e do aumento de menores não acompanhados, situações que exigem respostas coordenadas, rápidas e dotadas de autoridade técnica capaz de garantir uniformidade nacional, que propus a criação da figura do Provedor da Criança e Jovem como órgão unipessoal, independente e imparcial, destinado a preencher essa lacuna estrutural.

Não se trata de substituir as CPCJ — cuja intervenção próxima, comunitária e imediata é insubstituível — mas de criar uma entidade agregadora, supervisora e capaz de assegurar que o sistema funcione de forma harmonizada em todo o território nacional.

Este projeto, apresentado em 2022, propunha a existência dum Provedor com dupla função. Por um lado defender, monitorizar e promover os direitos das crianças, recebendo queixas, avaliando situações, emitindo pareceres e recomendações. Por outro assegurar a coerência, transparência e responsabilidade institucional, atuando como ponto de referência nacional (que falta às CPCJ), orientando práticas, colmatando falhas e garantindo que os direitos das crianças não são condicionados por desigualdades, sejam elas quais forem ( territoriais, étnicas, religiosas …)

O projeto previa expressamente a colaboração recíproca entre o Provedor e as CPCJ, estabelecendo que estas constituiriam o seu interlocutor privilegiado no plano local.

A ênfase na criação deste órgão decorre, igualmente, da consciência de que o tempo da criança não é o tempo da administração pública. Procedimentos lentos, processos fragmentados e burocracias excessivas têm consequências diretas e irreversíveis no desenvolvimento infantil. A ausência de um organismo superintendente que garanta celeridade e vigilância permanente tem sido um dos maiores obstáculos à eficácia global do sistema de proteção.

Num tempo em que os riscos sociais, económicos e migratórios são cada vez mais complexos, a articulação entre a intervenção local das CPCJ e a visão nacional duma figura como o Provedor da Criança e Menor, creio constituir a resposta moderna e necessária para um sistema verdadeiramente centrado na criança e na estrutura primária da família, que têm que ser protegidas.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.