Se o último neurótico de Nova Iorque aterrasse na capital do turismo permanente, talvez descobrisse que Lisboa é a única cidade europeia onde as suas neuroses ficariam em segundo plano. Preparem as selfies, as drogarias centenárias, as lojas com história e os pastéis de nata a €7.
Woody Allen fez 90 anos a 1 de dezembro — precisamente no feriado da Restauração — e, em vez de pedir descanso, pede outra cidade para continuar a filmar. Aos 90 anos, qualquer um de nós estaria a ver a Euronews com o som baixo, de manta nos joelhos e a repetir “o País está impossível”, “não vejo telejornais nacionais e muito menos a CMTV”. Mas ele não. Ele quer filmar. Quer uma nova crise neurótica. Quer horizonte. Quer cafés com charme decadente, ruas estreitas e mulheres elegantes a citarem Kierkegaard por engano. Ou seja: ele está mesmo é a pedir para filmar em Lisboa, e melhor ainda se o convidarem como fez Madrid.
E é aqui que a brincadeira começa a ser séria. Porque, meus amigos, se há cidade que podia acolher um filme tardio de Woody Allen — um Midnight in Alfama, um Whatever Works in Belém, um Match Point na Bica — essa cidade é, sem dúvida, a Lisboa de Carlos Moedas e não a Madrid de Isabel Díaz Ayuso. Lisboa é que vive num estado constante de pré-rodagem: drones, tuk-tuks, influencers pendurados nos miradouros, turistas em coma fotográfico, carteiristas no 28 e, claro, lisboetas em extinção.
Sendo honesto, Moedas nem precisava de lhe pagar um grande incentivo monetário: bastava prometer ao Woody Allen três coisas essenciais — um café bonito que ainda não tenha sido comprado por uma cadeia dinamarquesa; silêncio suficiente para filmar sem ouvir um monte de “bifas” bêbedas numa despedida de solteira irlandesa; e eletricidade estável, sem risco de um novo apagão — que parece que agora estamos todos sujeitos, e é melhor ter também um kit de sobrevivência em casa — para ele poder escrever o argumento na sua máquina Olympia de 1960. Só isso já seria ficção científica.
Imaginemos a primeira cena do cineasta em Lisboa antes mesmo de começar a rodar: Woody chega ao Terreiro do Paço e diz: — “I want Lisbon as Lisbon.” E imediatamente surgem 14 tuk-tuks, 5 scooters a entregar ramen ou pizza e um grupo de 70 suecos em visita guiada a seguir uma guia com guarda-chuva amarelo. Allen tenta caminhar até ao Chiado, de braço dado com a sua Soon-Yi, para sentir a vibe. Ao fim de 30 metros, descobre que a vibe é uma fila de 60 metros para comprar pastéis de nata gourmet no Largo do Camões. Moedas, entusiasmado, explica-lhe no seu perfeito inglês, diga-se: — “It’s our Broadway”, — esquecendo-se completamente do Coliseu dos Covões e do Politeama do La Feria na Rua das Portas de Santo Antão — o que não deixa de ser verdade, porque há mais gente agora no Chiado e no Camões às 10h da manhã do que na Times Square ao meio-dia.
Mas Allen, romântico tardio, quer antes uma Lisboa com alma, nada de jantaradas no JNcQUOI ou no Solar dos Presuntos. Quer aquela luz mourisca, quer casas de fado castiças, quer aquele elétrico que parece prestes a chorar, quer aquela lisboeta fatalista que diz “não vale a pena” com a mesma convicção com que se diz “amo-te”. Quer viver na pele “esta estranha forma de vida”. E quer, sobretudo, filmar num sítio onde não o cancelem ao pequeno-almoço. Nesse capítulo, Portugal é um spa emocional: toleramos tudo com a mesma calma com que esperamos o metro quando está atrasado vinte minutos. “É a vida”, dizemos, encolhendo os ombros. “São as linhas de metro paradas ou a greve do pessoal do metro”, acrescentamos.
E assim nasce o filme. Na nossa imaginação, mas nasce carregado de um certo realismo.
Tentemos agora adivinhar o enredo do filme de Woody Allen. Vamos a isto. Em Lisboa, Woody Allen filmaria o seu filme mais pessimista e mais luminoso ao mesmo tempo. Seria a história de um americano idoso, perdido num Airbnb de Alfama, que tenta encontrar sentido na vida enquanto uma guitarra portuguesa toca à distância e o vizinho de cima faz alojamento local para 12 alemães que querem aprender a dizer “obrigado”, metade deles nómadas digitais, que vivem ali porque fica perto — e dá quase para ir a pé ou de bicicleta Gira até à Unicorn Factory Lisbon no Beato.
O protagonista, inevitavelmente, apaixona-se por uma lisboeta de 32 anos, professora de filosofia aplicada, interpretada pela Alba Baptista, — a Beatriz Batarda já é um pouco velha para o papel — que vive com três colegas porque a renda são 1600 paus (euros) por um T0 com vista para uma parede com azulejos de um lado e um saguão húmido do outro. Ela explica-lhe Kierkegaard, Pessoa, Agustina e a diferença entre “bica”, “café”, “italiana” e “garoto”. Ele, confuso, tenta perceber porque é que a cidade parece tão bonita e tão cansada ao mesmo tempo.
No terceiro ato, claro, aparece Carlos Moedas em cameo. Não a falar — isso seria realismo mágico — mas a acenar com entusiasmo, a anunciar mais um projeto para a cidade: transformar Alfama num grande plateau de filmagens permanentes para produções internacionais com a Meg Ryan, o Joaquim de Almeida e por que não “resgatar” do seu limbo a Alexandra Lencastre. Com direito a vouchers de hotel, passes ilimitados de funicular e um glossário para turistas aprenderem quando “já não dá” ou então “pois”, para acabar com a conversa.
Na verdade, Woody até poderia gostar disto tudo. Lisboa seria a primeira cidade do mundo onde não se notaria a sua neurose natural, porque aqui todos andamos mais neuróticos do que ele. A diferença é que nós chamamos “qualidade de vida” a tudo o que nos acontece. Nova Iorque é um stress.
E depois há aquela luz de Lisboa: aquela luz que, mesmo a filmar uma discussão sobre divórcio, faz parecer que estamos num postal ilustrado. Em Nova Iorque, os neuróticos têm sombra. Em Lisboa, os neuróticos têm sol. É muito difícil ficar deprimido ao pé do Tejo, mas ao Woody Allen pode até acontecer a graça divina de tentar.
No fundo, seria uma bela ironia da vida: Woody Allen, aos 90, filmar um dos seus últimos filmes numa cidade onde toda a gente tenta parecer feliz para a fotografia, enquanto por dentro faz contas à renda, ao IRS e ao preço agora de um cappuccino ou de uma bica na Baixa.
E talvez fosse um bom filme. Talvez o seu melhor da década. Talvez a última grande comédia sobre o absurdo de existir numa cidade tão bonita que nos dói, tão habitada que nos esgota, tão filmável que dá vontade de fugir — mas nunca fugimos; ou, quando fugimos, temos sempre vontade de voltar.
Se Moedas quiser fazer história, é simples: não precisa de vender Lisboa como destino turístico. Basta vendê-la a Woody Allen como destino existencial. E quem sabe — pela primeira vez — Lisboa não seria apenas cenário. Seria uma personagem.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
