Volodymyr Zelensky exortou a comunidade internacional a uma “reação dura” contra a Rússia, na sequência de um ataque com dois mísseis balísticos na cidade ucraniana de Sumy, no nordeste do país, que provocou mais de 30 mortes e 80 feridos, de acordo com as autoridades. Vídeos e fotografias partilhados pela Ucrânia mostram o grau de destruição e o pânico das pessoas numa das artérias da cidade, no meio de cadáveres, autocarros e carros em chamas, árvores caídas e prédios danificados. “Só canalhas podem agir assim, tirando a vida a pessoas comuns”, escreveu o presidente ucraniano nas redes sociais, reafirmando que a Rússia tem de ser tratada “como terrorista”.
Perante as evidências, os Estados Unidos da América, que têm evitado criticar a Rússia desde que Donald Trump regressou à Casa Branca, foram dos primeiros a apontar o dedo a Moscovo. “O ataque de hoje, Domingo de Ramos, a alvos civis em Sumy, levado a cabo pelas forças russas, ultrapassa todos os limites da decência”, escreveu na rede social X Keith Kellogg, o enviado especial de Trump à Ucrânia e à Rússia. “Como antigo líder militar, percebo de alvos e isto é errado. É por isto que o Presidente Trump está a trabalhar muito para acabar esta guerra”, acrescentou o general na reserva.
Today's Palm Sunday attack by Russian forces on civilian targets in Sumy crosses any line of decency. There are scores of civilian dead and wounded. As a former military leader, I understand targeting and this is wrong. It is why President Trump is working hard to end this war.
O ataque surge menos de 48 horas depois do encontro em São Petersburgo entre Vladimir Putin e Steve Witkoff, representante de Donald Trump, que dera conta da frustração do presidente americano em virtude do impasse nas negociações de um cessar-fogo, que já o levara a ameaçar publicamente a Rússia com novas sanções.
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“A Rússia quer exatamente este tipo de terror e está a arrastar a guerra”, reiterou Zelensky, após a violenta manhã deste domingo em Sumy, à hora da missa. “Sem pressão sobre o agressor, a paz é impossível. Conversações nunca pararam os mísseis balísticos nem os bombardeamentos aéreos”, lamentou o líder ucraniano, que há muito insiste que só a lei da força pode travar Putin.
Pelo menos 34 pessoas morreram no ataque de hoje a Sumy, duas crianças. Entre os mais de 100 feridos, há outras 15 atingidas. “Toda a gente sabe: esta guerra foi iniciada apenas pela Rússia. E, hoje, é evidente que apenas a Rússia escolhe continuá-la – em flagrante desrespeito por vidas humanas, pelo direito internacional e os esforços diplomáticos do Presidente Trump”, escreveu o francês Emmanuel Macron no X, sublinhando que “são necessárias medidas fortes para impor um cessar-fogo à Rússia”.
This morning, two Russian missiles struck the heart of the city of Sumy in Ukraine, causing numerous civilian casualties, including children once again.
Everyone knows: this war was initiated by Russia alone. And today, it is clear that Russia alone chooses to continue it…
Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, confessou-se “horrorizado” com os acontecimentos desta manhã e exigiu a Putin nada menos do que um “total e imediato cessar-fogo sem condições”, uma vez que Zelenski já deu provas de aceitar esse compromisso.
I'm appalled at Russia’s horrific attacks on civilians in Sumy and my thoughts are with the victims and their loved ones at this tragic time.
President Zelenskyy has shown his commitment to peace.
Putin must now agree to a full and immediate ceasefire without conditions.
Também Portugal já deixou clara a sua posição, numa publicação partilhada pelo gabinete de Paulo Rangel, ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, na qual “insta a Federação Russa a abster-se de todas as hostilidades e a aceitar o cessar-fogo já aceite pela Ucrânia”.
O Governo português condena o terrível ataque russo a Sumy, que fez dezenas de vítimas. Apresenta pêsames às famílias e ao povo ucraniano. Insta a Federação Russa a abster-se de todas as hostilidades e a aceitar o cessar-fogo já aceite pela Ucrânia. @ZelenskyyUa@andrii_sybiha
— Negócios Estrangeiros PT (@nestrangeiro_pt) April 13, 2025
Num dia de maio de 1971 perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40 °C, nas imediações dos morros de Cabora Bassa, em Tete, Moçambique. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Preparara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio? A causa ou causas que me conduziram àquele inóspito ponto da crosta terrestre eram conciliáveis com a minha liberdade? Se o acaso é uma mera justificação para a ignorância sobre a forma como os eventos se relacionam e surgem, como podia relacionar a minha presença nas montanhas de Tete com a minha liberdade?
Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os comandos, com o nome totémico de «Escorpiões». Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO, o movimento que lutava pela independência de Moçambique, haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos. Confiavam em mim e eu neles. Observei-os: todos tinham os olhos fundos de olheiras, os ossos dos rostos salientes, todos estávamos magros e de cabelos quase rapados. Havíamos decidido rapar o cabelo antes deste período de operações. Decisões sem explicação. Reforçava o espírito de corpo, ficávamos todos parecidos. Lembraram-me prisioneiros dos campos de concentração.
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Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha entregado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sobre os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado
Afastados umas dezenas de metros, duas equipas de pisteiros rodesianos, os selous scouts, de calções caqui e chapéus de abas, bebiam chá. Haviam sido desembarcados de madrugada de um helicóptero Alouette, um ALIII, para procurar vestígios da presença de guerrilheiros da FRELIMO ou da ZANU, os seus correspondentes para a independência da antiga colónia da Rodésia do Sul, que haviam ultrapassado o rio Zambeze, o que o general comandante-chefe queria impedir a todo o custo. Por isso, determinara a vinda de uma unidade de comandos para, pela primeira vez, realizar operações conjuntas em Tete, o meu terceiro teatro de operações, depois do Niassa e de Cabo Delgado. Pela velocidade a que perdíamos o controlo do território admitia que ainda terminaria no Sul, em Gaza, como Mouzinho de Albuquerque, o patrono da minha arma de origem, a cavalaria, que prendeu Gungunhana, o rei dos Vátuas, e se viu promovido a trágico herói pelos políticos de Lisboa que o traíram. Os políticos mandaram-no combater enquanto negociavam com a Inglaterra a cedência do controlo do território que designariam por «Delagoa Bay», o atual porto de Lourenço Marques, por onde exportavam os produtos dos estados do Transval e do Natal e, através dos ingleses e dos boers, estabeleciam acordos com os chefes dos povos da região nas costas dos seus militares. Uma atitude que antecipou o tipo de relação entre os governos de Salazar e Marcelo Caetano durante a Guerra Colonial. Mouzinho não conseguiu, ou não quis encabeçar a revolta dos jovens oficiais que o seguiam. Suicidou-se física e politicamente sem proveito para Portugal e para os portugueses, tomando uma opção que os capitães rejeitaram em 25 de abril de 1974.
Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha entregado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sobre os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção. O negro confundia-se com a paisagem, a tempos regulares afastava as pequenas moscas com um gesto mecânico. Para ele, eu e os meus homens não existíamos. Éramos um acidente. Uma armadilha onde caíra, uma praga, uma maldição.
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro. Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que me entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, do lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado, na Rodésia que tinham escolhido para ser a sua terra e que por isso haviam declarado unilateralmente independente.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando? Que causa justificava a presença de cada um de nós naquele palco, a representar os nossos papéis? Mandei avançar a minha tropa, com o negro, de quem nunca soube mais do que ser um homem negro capturado, à frente.
Assistira ao interrogatório deste negro, efetuado por um major, oficial de informações, e pelo agente da PIDE que estabelecia a ligação com as Forças Armadas. No briefing da véspera da operação,
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro. Aquela não era a terra a que eu pertencia
o subinspetor da PIDE declarara ao coronel Videira, comandante das Forças de Intervenção, o COFI (existe uma norma não escrita, mas funcional, de encontrar siglas para abreviar os textos), que o insucesso das operações realizadas para impedir o avanço dos guerrilheiros para sul do rio Zambeze se devia ao pouco empenho dos militares do Exército, que não aproveitavam os guias que a PIDE fornecia, devidamente maltratados. A cobardia é a mãe da crueldade. (Julgo ser uma frase de Montaigne. Confirmei-a em várias ocasiões.) A guerra é reveladora de caracteres. O major R., o oficial de informações, depois de agredir o capturado, libertou-lhe as mãos para ele desenhar a base de guerrilheiros no chão da tenda. Além de cobarde, o major R. era estúpido. Em vez de fazer um desenho, o prisioneiro agrediu o major, que ganhara a alcunha de «cretino esférico», sem ponta por onde se lhe pegar. Seria o intérprete da PIDE, também negro, quem vingou o major, batendo no prisioneiro com um pau até conseguir que ele fornecesse as informações necessárias para o assalto à base dos guerrilheiros vindos através da fronteira com a Zâmbia. Possuía a experiência dos maus resultados obtidos através destes interrogatórios e comuniquei as minhas dúvidas ao coronel Videira, que conhecia das operações no planalto dos Macondes, no Norte. Ele fora o primeiro comandante dos paraquedistas portugueses, um transmontano sensato e conhecedor, um comandante como os militares gostam de ter tanto nos bons como nos maus momentos. Olhou-me e sorriu quando me ouviu pedir-lhe autorização para o agente da PIDE me acompanhar e provar a eficácia dos seus métodos e a acusação que fizera, de a tropa não se esforçar em seguir os guias fornecidos pela polícia política.
O subinspetor da PIDE apresentou-se de madrugada junto aos helicópteros. Lembrou-me um manequim na montra de um pronto a vestir para caçadores: camuflado novo, botas de lona, um cantil, uma pistola e de óculos escuros. Um turista. Os meus soldados olharam-me à espera de um comentário. Levavam consigo, além do cantil pendurado no cinturão, mais um outro de 2 litros de água, a tiracolo, um poncho e uma camisola de lã no saco de lona às costas. Em Tete, as temperaturas de dia ultrapassam os 40 °C e de noite podem ser negativas. O homem devia conhecer a meteorologia, mas trabalhava num escritório com ar condicionado e nunca sentira os efeitos de viver como os lagartos nas rochas, que se tornam brasas durante o dia, nem o gelo do cacimbo à noite. Nos comandos treinávamos para sofrer situações extremas, na PIDE treinavam para os outros as sofrerem. Uma diferença que o devia ter aconselhado prudência antes de lançar suspeitas.
Depois do desembarque dos helicópteros, logo após o nascer do Sol, num ponto a alguma distância do local onde o homem da PIDE informara situar-se a base da FRELIMO, seguimos o «capturado» por trilhos entre rochas: descemos, subimos, voltámos a descer encostas de abismos com as pedras a rolarem debaixo das botas. Ao meio-dia o PIDE, que suava, já bebera toda a água, e eram os meus soldados que não o deixavam morrer à sede. Foram eles também que à noite lhe estenderam as suas mantas para ele não morrer de frio. Em vez de um fiscal que verificava como cumpríamos as missões ganháramos um empecilho!
De manhã os helicópteros trouxeram duas parelhas de selous scouts para renderem as que se encontravam junto a nós e reenviei à procedência o subinspetor da PIDE. Antes de embarcar, perguntou-me: «E o prisioneiro?» «Fico com ele, é-me mais útil do que o senhor!» «Ele foi entregue à PIDE…» «Eu sou o comandante. Embarque antes que os rodesianos se vão embora e eu não o levo às costas!»
A minha má relação com a PIDE começara no final do ano de 1970 e devia estar registada nos arquivos da organização.
A minha má relação com a PIDE
A companhia que comandava, os «Escorpiões», passara o Natal de 1970 em operações no planalto dos Macondes. Na noite de 24 para 25 de dezembro esperámos a madrugada para assaltar a base Angola, da FRELIMO, na região do lago Nguri, uma operação em que substituímos um destacamento de fuzileiros, declarado inoperacional por razões sanitárias que haviam reduzido o seu efetivo.
Vivida a consoada de Natal de 1970 com tiros, regressámos a Mocímboa da Praia para ali embarcarmos com destino a Porto Amélia, de onde iríamos continuar a fazer operações, agora às ordens do batalhão local. Como uma companhia de circo, servíamos vários empresários, mas foi após esta temporada de operações que começou a minha má relação com a PIDE.
No regresso a Montepuez, à base dos Comandos de Moçambique, li o correio acumulado. Da metrópole alguém me lembrava que tínhamos uma viagem a França combinada quando eu regressasse, no verão! «Passaporte!» Faltava o passaporte. Entregara há uns dois meses nos serviços da circunscrição de Montepuez, que correspondia mais ou menos a uma câmara municipal e a um governo civil, os papéis para obter o documento. Dirigi-me ao edifício, tipo colonial, e ao gabinete do administrador, que conhecia dos encontros sociais. Quando lhe perguntei pelo passaporte, o autarca colonial começou a esfregar as mãos de atrapalhação. Não fora emitido. «Falta algum documento?» Até tirara fotografias à civil. «O melhor seria o senhor capitão falar com o agente Casimiro (não me recordo do nome, podia ser Jacinto) da PIDE…» Perguntei ingenuamente: «Que tem a PIDE a ver com o meu passaporte?» «Também passa por eles…»
Regressei ao quartel e mandei o meu condutor ir com dois dos membros da minha equipa avisar o chefe da delegação da polícia política que precisava de lhe falar. Um quarto de hora depois entrou o jipe a grande velocidade, travou à minha frente e os meus dois soldados despejaram diante de mim um homem de pequena estatura, de calções e camisa caqui. Fitou-me, hesitante entre mostrar-se ofendido ou aceitar com resignação o que lhe pudesse acontecer no lugar mal-afamado que é um quartel de comandos, onde reina uma ordem particular e um capitão é o Deus todo-poderoso em exercício. Por sorte dele, a nossa má fama não correspondia à realidade das salas de interrogatório da PIDE.
Convidei o agente a sentar-se e a beber uma cerveja, antes de o informar que pretendia saber do meu passaporte. Tal como o administrador da circunscrição de Montepuez, também o agente começou a gaguejar e a torcer os dedos. A conversa decorreu entre o absurdo e o surreal. Um diálogo de manicómio. Ele recebera a indicação para me interrogar e responder a perguntas vindas da PIDE de Lourenço Marques: «O senhor capitão quer o passaporte para que finalidade?» «Para me deslocar ao estrangeiro!» «Sim, claro… E a que países do estrangeiro?» «Àqueles que constarem do passaporte, aqueles com quem Portugal mantém relações diplomáticas e onde eu tenha dinheiro para viver!» «E o senhor capitão… pensa lá ficar, ou volta?» «Boa questão. Se pensar ficar no estrangeiro não lhe vou dizer, não é verdade?» «Sim, claro, mas sabe o que se passou com aqueles seus colegas da Academia Militar que desertaram para a Suécia e para a Bélgica…»
O problema era esse!
Um grupo de dez alunos que frequentavam o último ano dos cursos de engenharia da Academia Militar no Instituto Superior Técnico havia desertado em agosto de 1970 por se opor à Guerra Colonial. O contacto com o movimento estudantil fizera-os críticos do regime. Haviam entrado na Academia Militar no ano anterior ao meu, e com alguns deles mantivera uma estreita relação de camaradagem, inclusive na prática de desporto, nas equipas de atletismo. A notícia da deserção fora publicada em vários jornais europeus e aproveitada pelos movimentos independentistas como propaganda contra a política do governo de Marcelo Caetano. Percebia a preocupação da PIDE e a intenção de não correr riscos comigo: a deserção de um capitão dos comandos em pleno teatro de operações teria efeitos devastadores. No final da curta entrevista disse-lhe: «Senhor agente…» «Sou chefe de brigada…» «Senhor chefe de brigada, a questão é simples: informe os que o mandaram interrogar-me que ou eu daqui a quinze dias, quando regressar de operações, tenho o passaporte passado e assinado, ou no dia seguinte vou a Nampula entregar o comando da companhia ao general comandante-chefe, que me manda realizar operações onde entende, mesmo nos países vizinhos, sem passaporte e sem receio que eu por lá fique, a não ser morto!»
Quinze dias depois, no regresso das operações, tinha em cima da minha secretária em Montepuez o passaporte, com as capas azuis em uso ao tempo, com os selos fiscais, a lista de países e um pormenor que me fez dar uma gargalhada. Na linha de identificação correspondente à profissão estava escrito «estudante»! – naquela época, os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas apenas dispunham de bilhete de identidade militar. Mas eu era, para efeitos de apresentação num país estrangeiro, em 1970, um estudante que residia em Montepuez!
Adeus
Os selous scouts rodesianos haviam-nos apontado o trilho onde detetaram rastos de passagem de guerrilheiros. O assalto ficava por nossa conta.
Seguimos devagar, confundidos com as rochas, em silêncio, afastados. Cada um sabia o que fazer, para onde vigiar, onde colocar os pés, o guia um pouco à minha frente. Fizemos um pequeno alto junto a uma poça de água esverdeada, rodeada de árvores raquíticas. Mandei o homem que levava o guia preso à cintura sentá-lo perto de mim, fiz um gesto para colocar as mãos em concha e enchia-as de água. E ele elevou as mãos num gesto de agradecimento. Dei-lhe um cigarro dos meus e fumámos em silêncio. Perguntei: «Maconde?» Acenou que sim. Reparara nas cicatrizes de tatuagem nas fontes. «Base?» Apontou a direção com o queixo. Mandei os meus homens seguirem-no.
DR
De repente encontrámo-nos na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale. Vi restos de cinza, ramos secos a servir de teto a uma palhota já desfeita. Ali estava a base de guerrilheiros que constituía o meu objetivo! «Base?» O guia acenou afirmativamente. «Foi por isto que aqui viemos, meu capitão?», perguntou o alferes que comandava o grupo de assalto. «Parece que sim.» «Andam a gozar connosco!
Estava ali com excelentes jovens soldados, treinados para resistirem às piores condições de vida, armados e equipados, num desfiladeiro rochoso, desabitado, a 40 ou 50 quilómetros da mais avançada tecnologia, monstruosas, que construíam a gigantesca barragem de Cabora Bassa para produzir energia elétrica que iria iluminar as cidades dos brancos da África do Sul, produzir brisa fresca através dos seus ares condicionados, fazer mover os elevadores das minas do Rand, girar as brocas de furar as terras de diamantes, acender e apagar os néones dos centros comerciais da Cidade do Cabo e de Joanesburgo, que conhecia da passagem de Angola para Moçambique.
Mandei o soldado soltar o preso, dei-lhe o resto das minhas latas da ração de combate, que já não comia, enjoado, e apontei uma direção: «Zâmbia, gosse, gosse!» Já sabia algumas palavras dos idiomas locais, como «depressa». Um dos soldados perguntou: «Mata-se?» Neguei com a cabeça. O capturado afastou-se a andar de lado, olhando para nós, incrédulo e à espera de ser morto; vi-o afastar-se, primeiro lentamente, depois a correr, e desaparecer.
Eu viajava sozinho. Devia dar essa oportunidade e respeitar esse direito aos que se cruzavam comigo.
Restava procurar uma zona para os helicópteros aterrarem e me levarem de regresso. Seria a última operação que fiz em Moçambique. Quarenta anos mais tarde, em 2010, saberia em que estratégia estivera eu envolvido. Descobri uma aliança surpreendente.
Exercício Alcora
No dia 14 de outubro de 1970, delegações militares de Portugal, da África do Sul e da Rodésia assinaram em Pretória um acordo a que foi dado o nome de código «Exercício Alcora» e cujo objetivo consistia em «investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, África do Sul e Rodésia, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral»
O acordo dos três países implicava um elevado grau de integração das suas Forças Armadas e destinava-se a estabelecer uma verdadeira aliança para a criação de um «bloco branco».
O meu 25 de Abril de 1974 começou em Tete, Moçambique, em maio ou junho de 1971, a perguntar-me o que andava a fazer em África. Combatia e conduzia os soldados a quem o Estado português, através do seu governo, impunha o dever do serviço militar obrigatório. Precisava de ter certezas quanto à razão ou razões pelas quais me encontrava em Tete, Moçambique, numa guerra que começara há dez anos, para lhes poder dar uma resposta, como era meu dever. Os militares que comandava tinham o direito de exigir que eu soubesse. Na guerra de guerrilha, realizada por pequenos
grupos isolados, a hierarquia assenta mais na confiança pessoal do que na graduação formal dos postos das Forças Armadas e por isso nestas unidades os seus elementos fazem poucas perguntas. Confiam.
Em Tete, em 1971, deixei de ter uma resposta que satisfizesse a minha consciência para a transmitir aos que comandava, mesmo que eles não me perguntassem porque estávamos ali. Se o negro capturado que me conduzira à sua antiga base, ao primitivo acampamento que os seus construíram no avanço para sul, me perguntasse a razão da minha presença ali também não lha saberia explicar, a não ser invocando o direito resultante da força. O capturado não necessitava de procurar justificações, nem invocar o direito natural da pertença ao espaço onde nasceu, onde se encontram os seus. Eu viera de longe. Ele era dali.
O meu 25 de Abril pode ter começado quando, na tarde de um dia de maio ou de junho de 1971, os helicópteros me vieram recolher e decidi deixar em terra, na sua terra, o capturado, enquanto levantava voo para o meu acampamento de tendas de lona, modelo sul-africano, para enviar a mensagem com o resultado da operação: «Base abandonada.»
Geração D: Da ditadura à democracia (Porto editora, 340 págs., €18,85) estará nas livrarias na próxima quinta-feira, dia 21
Se existe realmente um mentiroso debaixo de cada pedra, pode ser útil saber quem são os melhores a encontrá-los. Antes de começar a escrever este livro, tinha as minhas suspeitas sobre que tipo de pessoa estava mais bem posicionada para ver através de um comportamento fraudulento, mas não tinha a certeza. Assim, vejamos mais atentamente como reconhecer uma mentira e reconhecer um mentiroso. A minha apresentação destas ideias será um pouco diferente da abordagem que um psicólogo escolheria. Não estou a dizer que essa abordagem seria errada, apenas que vou mostrar-lhe a forma como olho para este assunto.
Ocorpo também fala? Um detetor de mentiras competente não se apoia demasiado na linguagem corporal. Aldert Vrij, professor de Psicologia, diz que ela raramente é inteiramente previsível
Quem é o melhor a mentir?
Detetar vários tipos de fraude é uma tarefa complexa, e a capacidade das pessoas para detetar a fraude varia bastante. No entanto, alguns grupos têm tendência para ser melhores a detetar mentiras devido à sua formação, experiência ou capacidades naturais. Por isso, pesquisei no Google.
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E, com efeito, existem investigações em andamento sobre a que tipos de pessoas não devemos mentir. Claro que a lista não é completa e as sugestões variam ligeiramente dependendo de a quem pergunta. Mas aqui estão cinco categorias de pessoas que se acredita serem melhores a detetar mentiras:
Agentes da polícia. Não é propriamente uma surpresa. Profissionais como os agentes da polícia e os detetives são muitas vezes treinados para prestarem atenção aos sinais verbais e não verbais. Porém, o grau de precisão pode variar muito e não são significativamente melhores do que a generalidade da população.
Juízes e Advogados. Bem, este grupo assemelha-se aos polícias. É natural que ao lidar com patifes o dia todo estas pessoas sejam melhores a reconhecer um embusteiro. Os juízes e outros profissionais legais desenvolvem frequentemente uma capacidade para detetar a fraude através da sua formação e experiência – como é natural, devem ser bons a avaliar a credibilidade, por exemplo, das testemunhas. Também têm de avaliar muitos tipos diferentes de provas. Com o tempo, presumo que estas categorias de profissionais saibam o que devem procurar.
Interrogadores profissionais. Estas pessoas também trabalham com a Lei e são muitas vezes uma espécie de agentes da polícia. Os que trabalham nas agências governamentais recebem muitas vezes formação em técnicas avançadas para detetarem mentiras e saberem confrontá-las. Em breve descreverei este processo. As pessoas comuns, como eu e o leitor, podem aprender muito com eles.
Investigadores de mentira. Bem, porque não? Claro que os investigadores que se especializam na mentira e na deteção da mentira devem ter uma sensibilidade mais apurada para as pistas que se associam à fraude. Afinal, é o seu trabalho, certo? Mas será saber como se faz determinada tarefa a mesma coisa do que saber fazê-la de facto? É uma pergunta interessante. Eu sei como se deve colocar um telhado novo na minha casa, mas isso não significa que possa realmente fazê-lo, pois não? Não é nada óbvio. Sobretudo se perguntar à minha mulher. No entanto, é aqui que as coisas se tornam interessantes.
Os psicólogos clínicos estão na lista das pessoas mais bem capacitadas para detetarem mentiras. À primeira vista, isto pode parecer quase lógico. São especialistas na psique humana!
Não deviam estar no topo da lista? Afinal, são profissionais treinados para observar e interpretar os sinais subtis do comportamento humano e é óbvio que isso os equipa melhor para detetarem a mentira. Porque não vemos o que têm os próprios a dizer sobre o assunto?
Como Se Faz
Em 2009, o governo dos Estados Unidos formou um grupo denominado High-Value Detainee Interrogation Group, ou HIG, e encarregou-o com o desenvolvimento de uma nova metodologia para identificar as mentiras e enganos gerais dos detidos. Gastaram-se mais de 15 milhões de dólares em mais de cem projetos de investigação que foram liderados por psicólogos de topo. Muito do trabalho que têm feito é extremamente fascinante.
Polícia bom, polícia mau?
O que fazem as pessoas que são altamente capacitadas para apanhar mentirosos? Por uma questão de simplicidade, adaptei os resultados HIG e coloquei-os por palavras que se entendem.
Um bom truque é pensar em si como um jornalista amistoso, sugerem estes psicólogos. O que faz um jornalista amistoso? Se for bom faz o seu trabalho de casa antes de escrever uma única palavra. Quanto mais informação conseguir trazer para a conversa, mais bem calibrado estará o seu detetor de mentiras interior.
Depois temos a parte do “amistoso”. O relatório HIG descobriu que a abordagem polícia mau não é nada eficaz, mas que a do polícia bom é. Toda a gente quer ser tratada com respeito, até um mentiroso inveterado. E quando as pessoas se sentem respeitadas e que estão a ser tratadas com consideração têm uma probabilidade maior de falarem abertamente e serem honestas.
Basicamente, deve ser simpático e bondoso. Não necessariamente um colosso de simpatia e bondade, mas amistoso. Tem de fazer com que o mentiroso goste de si. Que se abra consigo. Que fale muito. E, mais importante, que deixe escapar qualquer coisa que exponha a sua mentira.
A linguagem corporal de um mentiroso inveterado pode não denunciar nada
Um detetor de mentiras humano competente não se apoia demasiado na interpretação da linguagem corporal. Aldert Vrij, professor de Psicologia e especialista em mentiras, afirma que a linguagem corporal raramente é inteiramente previsível. E eu concordo com ele. Há uma secção sobre linguagem corporal numa parte diferente deste livro e apesar de existirem padrões que podem ajudar-nos a encontrar o banal nas pessoas, que podem não ser mentirosas veteranas, concordo que a importância dos gestos e maneirismos físicos não deve ser sobrestimada no caso dos criminosos inveterados. Um mentiroso competente provavelmente já aprendeu a não dar nenhuma informação que não queira dar.
Num capítulo anterior mencionei um mito comum: os mentirosos não olham nos olhos das pessoas. Mas não, este também não é um método de confiança. Existem muitas pessoas que, por um motivo ou outro, não conseguem olhá-lo nos olhos. Algumas são simplesmente tímidas. O relatório HIG demonstra que o contacto ocular não é um indicador de confiança.
E se isto não bastasse para destruir o mito, também li um estudo sobre comportamento interpessoal em psicopatas encarcerados. E adivinhe? Eles olham mais vezes nos olhos das pessoas do que os não psicopatas. E esta?
Mentir no divã Barry Farber, professor de Psicologia Clínica na Universidade de Columbia, afirma que as pessoas que fazem terapia de casal mentem constantemente
Faça perguntas inesperadas.
As pessoas que são boas a detetar mentiras fazem perguntas inesperadas, que talvez até nem sejam relevantes para a conversa.
Por exemplo, pergunte a idade a alguém que não tem obviamente idade para beber nem para estar naquele bar e verá que lhe responde com confiança: Sou maior de idade.
Mas se perguntar: Em que ano nasceste?
É uma pergunta incrivelmente fácil de responder para quem está a dizer a verdade, mas um mentiroso precisará provavelmente de parar uns segundos para fazer contas. E pronto, já o apanhou.
Por isso, a ideia é começar com perguntas de que todos estariam à espera. Não são perguntas ameaçadoras e, apesar de poderem fornecer-lhe muitas informações, o seu propósito mais importante é proporcionar ao mentiroso aquilo que o interrogador chama de linha de base. A seguir faça uma pergunta que alguém que estivesse a dizer a verdade não teria problemas em responder, mas que para um mentiroso talvez não seja assim tão fácil.
Avalie a sua reação. Respondeu calma e rapidamente, ou fez uma pausa súbita e invulgarmente longa antes de responder.
Deve também perguntar por detalhes que pode verificar. Então, se ligar à sua chefe, ela pode confirmar que esteve presente na reunião de ontem? Quem estiver a dizer a verdade irá responder sem problemas. Os mentirosos, por sua vez, ficarão mais relutantes.
Eis outro exemplo: O que tinha o Peter vestido na reunião de ontem? Mais uma vez, será algo fácil de responder a quem for honesto, mas um verdadeiro pesadelo para um mentiroso. A resposta que derem pode ser verificada – e sabem disso.
O relatório também revela que os interrogadores usam frequentemente provas estratégicas. Fez o seu trabalho de casa antecipadamente, certo? Exatamente. Construa um diálogo. Faça a outra pessoa falar. Consiga que lhe ofereça alguma coisa que contrarie a informação que descobriu.
Peça esclarecimentos, para que se comprometa com a sua palavra. E a seguir: Desculpe, mas agora estou confuso. Disse-me que passou o dia de ontem com a Lena, mas ela tem estado a semana toda em casa, doente. Faça a si mesmo estas perguntas mágicas: Parece estar a pensar demasiado? As respostas dadas à pressa contradizem alguma coisa dita anteriormente, está a cavar um buraco ou também consegue explicar o que esteve a fazer em casa de uma pessoa doente?
O feedback ajuda o mentiroso
Li algures um estudo elaborado por psicólogos que demonstrava que, em média, os agentes da polícia sueca conseguiam detetar cerca de metade das mentiras que ouviam. No entanto, os agentes que tinham tido treino numa área chamada Uso estratégico de provas detetavam mais de 85 por cento das mentiras que lhes contavam. É uma diferença impressionante.
Um bom método para alcançar este resultado é revelar as provas uma por uma. É um processo que também uso para evitar que a pessoa se sinta demasiado desafiada no início das nossas conversas. Muitas pessoas são mais cautelosas se decidir atacar de imediato a jugular e revelar que não confia nelas. Se as abordar com uma atitude tão abrasiva, há então o enorme perigo de que não me digam absolutamente nada. É muito melhor ser gentil.
Se começar a questionar de imediato tudo o que a pessoa diz, ou se a acusar imediatamente de estar a mentir, ela pode recolher-se. Ou então pode começar a mudar a sua história.
Por que razão haveria de a querer ajudar a mentir melhor? Pelo contrário, o seu objetivo devia ser fazer com que revelasse tudo sozinha, para se encurralar a si mesma. Só depois pode atacar. Por isso, descontraia, deixe-a falar.
Este é o problema em lidar com pessoas esquivas: elas obtêm feedback da nossa parte e nós não obtemos nada da parte delas. Se mentir e não for apanhado, aprendo que estratégia funciona. Se mentir e for imediatamente apanhado, aprendo o que não funciona.
Não ajude um mentiroso a mentir melhor.
Psicólogos e Mentirosos
Já que estamos a falar de estudos sobre como apanhar um mentiroso: como já mencionei, aquele estudo em particular foi elaborado por psicólogos. Isto devia significar que os psicólogos são o grupo de profissionais a quem menos devia querer mentir, certo?
Como já é habitual, nada é tão simples quanto parece. Muitas das dicas que partilhei parecem, deveras, muito boas e passei cerca de seis meses a conduzir as minhas próprias experiências para as avaliar antes de finalizar este livro – além de que existem algumas partes excelentes em todo este material.
Mas depois temos o mundo real. Os psicólogos experientes acreditam normalmente que os seus consultórios são lugares onde os seus pacientes se sentem confortáveis para partilhar os seus pensamentos e sentimentos mais profundos e íntimos sem risco de serem julgados. Lugares onde podem trabalhar com os pacientes para os aproximarem da cura. E, no entanto, uma percentagem surpreendentemente elevada de pacientes – na verdade, quase todos – relatou ter mentido ou não ter sido inteiramente honesto com os seus terapeutas. O que parece ser mesmo estranho. Os pacientes consultam o terapeuta em busca de ajuda. De que vale ir a um psicólogo para falar dos seus problemas e depois não ser inteiramente honesto sobre o que se está a passar?
Barry Farber, PhD, professor do curso de Psicologia Clínica da Teachers College da Universidade Columbia, afirmou que isto não só é comum como acontece constantemente. Por exemplo, aparentemente, as pessoas que fazem terapia de casal mentem imenso.
Por vezes, toda a gente esconde as suas verdades e parece que as sessões de terapia não são exceção.
Também parece ser inteiramente verdade: numa sondagem, 93 por cento dos pacientes de psicoterapia disseram ter mentido conscientemente ao seu terapeuta pelo menos uma vez (Counselling Psychology Quarterly, Vol. 29, n.º 1, 2016). Noutra sondagem, 84 por cento dos pacientes disseram que esta desonestidade ocorre regularmente.
E embora os terapeutas devam pelo menos suspeitar de que os seus pacientes podem não ser inteiramente verdadeiros, os estudos sugerem que não é, de todo, este o caso. Num estudo, 73 por cento dos participantes responderam que as suas mentiras nunca foram descobertas durante as sessões de terapia. Apenas 3,5 por cento dos pacientes confessaram as suas mentiras de livre e espontânea vontade e noutros 9 por cento dos casos, estas foram descobertas pelos terapeutas. Assim, os terapeutas podem não ser os melhores detetores de mentiras.
Polígrafo Em 1920, o psicólogo William Moulton Marston, o homem que desenvolveu a teoria DISC, criou o primeiro detetor de mentiras
O que fica por dizer
Os pacientes têm tendência para mentir ou não ser completamente transparentes com os seus terapeutas em vários assuntos, mas os investigadores ficaram surpreendidos ao identificar algumas das áreas mais comuns onde a mentira era usada. Os assuntos mais comuns são bastante subtis. Mais de metade dos participantes de um estudo afirmou que a sua perturbação psicológica não se reduziu realmente depois das sessões de terapia e que fingiram sentir-se mais felizes e saudáveis do que sentiam na verdade. A segunda mentira mais comum é fingir que os seus problemas não são tão sérios como mentem que são. A terceira era a omissão de ideação suicida (relatada por um terço dos participantes).
Os psicólogos estão sujeitos ao dever do sigilo profissional. Não podem contar a ninguém o que é dito durante a consulta de um paciente, como acontece com os médicos. Então, de que vale contar mentiras quando devia estar a receber ajuda para lidar com os seus problemas de saúde mental? Tem de concordar comigo que é uma ideia rebuscada.
As pessoas gastam tempo e dinheiro a fazer terapia, por isso, para quê esconder a verdade? Para os pacientes que ocultam os pensamentos suicidas, a principal razão será provavelmente o medo das consequências se a verdade for revelada. É claro que se a condição for considerada séria, a pessoa pode acabar por ser hospitalizada, mas acima de tudo pode ser muito difícil lidar sozinho com estes problemas. Pode parecer pouco lógico, mas por vezes, para estas pessoas, a solução pode ser mais assustadora do que o problema com que se debatem.
É aquela história de mais vale o diabo que conhecemos do que o que desconhecemos.
Pode aplicar-se o mesmo princípio às adições – os pacientes podem temer ser forçados a entrar em reabilitação. Contar a um terapeuta que fuma erva pode não ser muito grave, mas talvez não lhe queira contar sobre a cocaína e os opioides que consome. A vergonha também é um fator a ter em conta, sobretudo em questões relacionadas com o sexo. Muitos pacientes receiam que os seus terapeutas não os entendam – e por isso mentem.
Estudos de tipos de personalidade
Como é natural, trabalhar como agente da polícia e interrogar criminosos inveterados vai melhorar a capacidade para reconhecer mentiras. Se isso fará da pessoa o melhor detetor de mentiras do mundo não sei, mas não vejo porque não. Por outro lado, que pessoas têm maior aptidão natural para encontrar e desmascarar mentirosos?
Já houve quem tenha tentado responder a esta pergunta. Num pequeno estudo conduzido pela Universidade Lindenwood nos Estados Unidos, percebeu-se que os introvertidos têm uma certa vantagem. Têm uma capacidade natural para se deixarem ficar recolhidos durante uma conversa e permitir que as outras pessoas ocupem mais espaço. O que lhes dá mais material para analisar.
Um extrovertido tem tendência para falar mais e dominar mais frequentemente o diálogo. De acordo com o estudo, isto pode fazer com que um mentiroso fique indetetável durante mais tempo. Um extrovertido não presta simplesmente muita atenção aos detalhes.
A minha própria teoria, para a qual não tenho dados factuais, é que as pessoas com traços de personalidade azuis – que são introvertidas e orientadas para as tarefas – devem ter uma vantagem inquestionável na identificação de mentiras. São pessoas que prestam atenção aos detalhes, os seus cérebros são extremamente organizados e a memória geralmente muito boa, além de que fazem muitas perguntas.
Quando este comportamento entra em ação, não é invulgar que os companheiros dos azuis sintam que estão a ser interrogados. Faz parte da sua natureza desencantar detalhes. Para impedir que seja apanhado em falso, um mentiroso tem mesmo de saber o que está a fazer.
Contudo, como já mencionei, não tenho dados científicos que apoiem esta ideia. Ela baseia-se simplesmente na minha experiência pessoal enquanto coach e especialista comportamental aliada a um bom entendimento sobre como as pessoas funcionam. Também já fiz mentoria e coaching a milhares de pessoas e creio que já vi de tudo um pouco. Também tenho uma barra azul bastante pronunciada no meu próprio perfil profissional. O que acabei de fazer nos últimos parágrafos foi mais ou menos uma descrição de mim mesmo. A minha mulher costuma dizer que até se consegue ver no meu rosto quando percebo que alguém está a fazer um uso amplo da verdade. Também me diz que se sente relutante em pregar-me uma mentirinha inocente que seja, porque quase de certeza que a vou detetar.
Pessoalmente, fico muito satisfeito com isto. A não ser, claro, quando lhe pergunto o que ela acha do meu casaco novo e ela me responde – honestamente e sem a menor hesitação – se guardei o talão. Bolas.
A Possível Utilidade de Detetores de Mentiras
As pessoas sempre procuraram formas inteligentes para detetar mentirosos. Em 1920, o psicólogo William Moulton Marston, o homem que desenvolveu a teoria DISC, criou também o primeiro detetor de mentiras.
Muitas pessoas questionam se os aparelhos tecnológicos como este funcionam realmente, e apesar de ser bastante discutível, a verdade é que continuam a ser um fenómeno muito interessante. De vez em quando, deparamo-nos com uma história qualquer sobre polígrafos, sobretudo em investigações policiais americanas, em que pessoas são submetidas a um teste de polígrafo – ou seja, um detetor de mentiras – antes de conseguirem empregos no FBI ou na CIA. A precisão destes testes já foi amplamente questionada e a metodologia rejeitada em muitas partes do mundo. Mas já que estamos a discutir como detetar uma mentira, pode ser interessante observar rapidamente como funcionam estas máquinas míticas.
Como funciona um polígrafo?
O propósito de um polígrafo é determinar se a pessoa está a dizer a verdade ou a mentir quando responde a determinadas perguntas.
Quando alguém faz um teste de polígrafo, quatro a seis sensores são colocados em várias partes do seu corpo. O polígrafo é uma máquina em que os múltiplos sinais vindos destes sensores são gravados numa tira de papel. Os sensores registam habitualmente quatro tipos de dados:
• Ritmo respiratório
• Ritmo cardíaco
• Pressão arterial
• Nível de transpiração
Por vezes, o polígrafo também pode registar outros dados, como o movimento dos braços ou das pernas. Quando o teste começa, o entrevistador faz três ou quatro perguntas simples para determinar os níveis normais da pessoa e assim calibrar os sinais recebidos pelos sensores. Observa simplesmente como os quatro parâmetros se comportam quando a pessoa está a dizer a verdade. Assim, tem uma base de comparação.
Depois desta fase, começa o verdadeiro teste. Os sinais transmitidos pelos sensores são registados numa folha de papel contínua ao longo de toda a entrevista. O entrevistador pode observar os gráficos durante ou depois do teste para ver se os sinais vitais sofreram alterações significativas em relação às respostas dadas para as outras perguntas. Geralmente, uma mudança significativa (como o ritmo cardíaco acelerado, a pressão arterial mais alta ou um nível de transpiração maior) indica que a pessoa está a mentir.
Um examinador experiente que use o polígrafo conseguirá determinar uma mentira com grande facilidade. No entanto, uma vez que a interpretação do examinador é subjetiva, e como diferentes pessoas têm reações diferentes quando mentem, os testes de polígrafo não são perfeitos e podem produzir resultados enganadores.
Quão precisos são os resultados dos testes de polígrafo?
Como a maior parte das pessoas, também me questiono: Será que o detetor de mentiras funciona mesmo? De acordo com dados do FBI, a precisão do teste de polígrafo é de cerca de 87 por cento. Parece-me um valor bastante elevado, e se é realmente assim, por que razão não devem estes instrumentos ser usados com maior frequência? Porém, também tenho noção de que vários investigadores afirmam que os detetores de mentiras não são nem um pouco fiáveis. Por outras palavras, afirmam que a sua exatidão é de zero por cento.
Para ser franco, considero este valor duvidoso. Digamos que, em muitos casos, o teste pode contribuir com indicadores importantes que podem ajudar as investigações policiais, por exemplo. Talvez os resultados indiquem simplesmente que os suspeitos estão a mentir em relação a alguma coisa, sem conseguirem concluir exatamente a quê.
E, claro, algumas pessoas vão conseguir derrotar os polígrafos. Por exemplo, não seria um grande desafio para um psicopata, porque os seus cérebros não funcionam da mesma maneira que o meu ou o do leitor.
Uma pessoa inocente pode falhar no teste do polígrafo? Alguém que diz a verdade pode ser falsamente interpretada pela máquina e acusada de mentir quando não é esse o caso?
A resposta a ambas as perguntas é sim, e existem vários exemplos em que isto aconteceu. As pessoas inocentes podem ter um resultado negativo apenas porque estão nervosas, e é por este motivo que os tribunais não costumam considerar estes testes válidos. A margem para erro é demasiado grande.
A Verdade Vem Sempre ao Cimo
Será possível tornarmo-nos um detetor de mentiras? Talvez. Mas lembre-se de que pessoas diferentes têm talentos diferentes para detetar mentiras.
E os mentirosos também não são todos iguais. Não podemos generalizar ao ponto em que seja correto dizer que todos os mentirosos fazem esta ou aquela coisa em particular. É preciso procurar os padrões. Isto é algo que demora o seu tempo, mas se estiver relacionado com alguém que faça parte do seu círculo próximo, alguém com quem tem uma relação importante, talvez seja boa ideia prestar uma atenção extra, desde o início. É a minha opinião, pelo menos.
Não estou a sugerir que deve ser desconfiado em relação a toda a gente. Mas deve confiar sempre no seu instinto. Se lhe parecer errado, é provável que esteja errado. Ou talvez exista uma explicação absolutamente razoável para a sensação. O mais importante é não deixar que as coisas passem despercebidas durante demasiado tempo.
O livro
Rodeado de Mentirosos (Lua de Papel, 384 págs., €18,50) chega às livrarias esta semana, com tradução de Ana Mendes Lopes
Não tivesse a expressão má fama histórica e poderia dizer-se que houve um “pacto de não agressão” no debate que opôs Mariana Mortágua e Paulo Raimundo, este sábado, 12, a cinco semanas das eleições legislativas. É que de oposição, entre os líderes do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português, houve muito pouco, aqui e ali uma divergência, uma ou outra prioridade invertida para objetivos comuns. Será portanto caso para afirmar que quando um disse “mata”, o outro disse “esfola”, numa escalada de críticas que teve o seu momento mais ilustrativo – e caricato – quando se entrou no capítulo da defesa. “Ingenuidade é achar que os russos nos vão invadir pelo Porto de Leixões”, chegou a afirmar Mariana Mortágua, enquanto criticava a corrida ao armamento que vê hoje pela Europa, quando ela, na verdade, na sua opinião, tem material suficiente para fazer face às ameaças que possa vir a enfrentar. Provavelmente apanhado de surpresa com imagem tão inesperada, Paulo Raimundo não deixou os créditos por mãos alheias e, em resposta, abriu a geografia: “Os mesmos que se preocupam com os russos a entrar pelo Porto de Leixões, deviam estar também preocupados com a entrada dos americanos pelos Açores.”
Batalha naval à parte, o debate seguiu em velocidade cruzeiro. Talvez Paulo Raimundo tenha tido a capacidade de lançar para cima da mesa amigável, pelo menos neste ringue, frases mais sonoras, ainda que mais propícias a qualquer tempo de antena. “O que propomos são soluções para o país”, logo no início, para mais à frente reforçar com um: “O que importa é a vida das pessoas”. Menos ouvida até agora foi esta: “Quando falamos de uma casa, falamos de uma vida”, o que não deixa de ser uma forma nova e engenhosa de entrar no tema da habitação. Aí, diga-se, Mariana Mortágua foi muito mais incisiva, sobretudo com uma frase, também ela sonora, a propósito de uma bandeira do seu programa eleitoral que, sem surpresa, o PCP/CDU também defende: “Definir um teto máximo para as rendas não resolve o problema da habitação, mas permite baixar as rendas já, agora.”
Como se costuma dizer, muitos eleitores votam com a carteira, não porque nela guardem o cartão de cidadão (já que o de eleitor foi arrumado no armário da História), mas porque a sua prosperidade económica é fundamental. Neste campo Mariana Mortágua e Paulo Raimundo ensaiaram um dueto bem articulado, com muitos milhões que podiam ser retirados a quem deles não precisa para ajudar a quem deles muita falta sente. A líder do Bloco de Esquerda detalhou, numa sequência vertiginosa de números, com alguma casas decimais, todas as virtudes da taxação das grandes fortunas. No que poderá ter sido a única gafe do debate, rapidamente corrigida, Paulo Raimundo disse “eu não ia tão longe”, quando efetivamente quis dizer, como a seguir logo disse, que ia primeiro por outro caminho. Recorrendo a outra frase boa para qualquer tempo de antena, argumentou que a “política é feita de opções” e que há algumas que não compreende, como os benefícios dados aos não-residentes ou o muito que se gasta com as parcerias público-privadas.
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Tudo isto que aqui se relata, com a síntese possível, foi dito sem interrupções, com a cordialidade que se esperava. Apesar de diferendos e disputas do passado, Mariana Mortágua e Paulo Raimundo perceberam que estão hoje a jogar um jogo mais difícil, para não dizer perigoso. Enfrentam o apelo ao voto útil de Pedro Nuno Santos e do PS, disputam o mesmo eleitorado e lidam com um outro rival, o Livre, que tem crescido nos últimos atos eleitorais. É um puzzle complexo de identidades e convergências, cuja gestão deverá ser jogada noutros palcos, nomeadamente em outros debates (Paulo Raimundo tem a vantagem de ter debatido com Luís Montenegro, o que não acontecerá com Mariana Mortágua) e na rua, na longa campanha que teremos pela frente.
As principais armas foram, por isso, apontadas ao Governo, mas não tanto como se poderia supor. É verdade que este debate se centrou nas propostas dos dois partidos, mas não seria difícil antecipar que a lógica “um diz mata, outro diz esfola” pudesse ter funcionado bem aqui. Apenas no tema da emigração essa dinâmica sobressaiu com força, mesmo sabendo que o PCP foi contra a extinção do SEF e o BE a favor da criação da AIMA, embora critique o seu funcionamento. “A emigração foi usada como tanque de batalha ideológica pela direita radical e, com isso, levou todos os partidos da direita. E o PS foi por arrasto”, afirmou Mariana Mortágua, para quem a guinada à direita do PS nestas eleições “é o elefante na sala que afinal não é elefante nenhum”. Já Paulo Raimundo valorizou a presença dos emigrantes, sublinhando como são indispensáveis para o funcionamento do país.
Assim sendo, em que ficamos? Pois, não se sabe. É conversa para depois das eleições, até porque, como garantiu Mariana Mortágua, “nestas alturas fala-se sempre muito de matemática”. Até à lavagem dos cestos é vindima e os votos estão muito longe de serem votados, quanto mais contados. O Bloco de Esquerda está disponível para entendimentos, mas estes, acentuou Mariana Mortágua, “dependem das políticas”, frase que poderia ter sido dita pelo líder do PCP. Mas Paulo Raimundo preferiu acrescentar: “O país precisa de tudo menos da continuidade da política que tem vindo a ser seguida e não só por este governo. Estamos disponíveis para um caminho que rompa com o caminho atual.”
Talvez os caminhos de Mariana Mortágua e de Paulo Raimundo, do BE e do PCP/CDU, se separem depois deste debate. Mas durante uma simpática meia hora estiveram sempre do mesmo lado da barricada. Sem agressões.
As frases
“O que está em causa nestas eleições não é só a ética do Primeiro-Ministro, mas também as consequências deste governo, o que fez e ambiciona fazer”, Paulo Raimundo
“Temos um rei louco nos Estado Unidos da América que quer banir a palavra mulher. Mais do que nunca precisamos do feminismo na política”, Mariana Mortágua
A 16 de outubro último, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman foi calorosamente recebido em Bruxelas por Ursula von der Leyen e pelos chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, para a primeira cimeira UE-Golfo. Mas, naquele mesmo dia, um “tribunal especial” controlado pela monarquia absolutista de Riade condenou o cartoonista saudita Mohammed al-Ghamdi a 29 anos de prisão, numa sentença irrecorrível. Nada que perturbasse o bom andamento dos trabalhos de tal cimeira.
E que crimes, afinal, cometeu Al-Ghamdi, que se assina Al Hazza nas suas ilustrações, para tão brutal punição? “Ofensas” ao rei Salman e ao príncipe herdeiro Bin Salman, acrescidas de “mensagens hostis” ao regime ditatorial saudita, sentenciou o referido “tribunal especial”.
Este talvez seja o caso mais grave que a Cartooning for Peace (CFP), uma ONG que monitoriza pelo mundo fora e denuncia os ataques à liberdade criativa e de expressão dos cartoonistas, tem agora em mãos. O trabalho de vigilância, porém, é crescente, como o ilustram os oito casos que a VISÃO aqui apresenta, incluindo o de Al-Ghamdi – desde um rapto intimidatório, no Quénia, prisões preventivas sem prazo, no Egito, e sentenças de cadeia por “propaganda contra o Estado”, no Irão, a julgamentos intermináveis, na Turquia, e ao impune bloqueio de um site de uma newsmagazine, na Índia.
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Recentemente, a CFP celebrou um acordo com o Global Media Defense Fund, dependente da UNESCO, para a produção, até agosto de 2026, de um relatório que destacará e documentará, a nível global, casos de ameaças, ataques e de punições judiciais sobre cartoonistas e a sua liberdade de expressão. Nunca como hoje, dir-se-ia, os regimes ditatoriais, ou tendencialmente autocratas, tiveram as garras tão afiadas contra os cartoonistas e as suas incómodas sátiras.
EUA
A coragem de satirizar o próprio “patrão”
A cartoonista Ann Telnaes, que trabalhava há 17 anos para o The Washington Post, desenhou, para publicação, Jeff Bezos, dono do jornal, ajoelhado, com um saco de dólares, diante de uma estátua de Trump. Cartoon censurado e relação acabada
Ann Telnaes tem no currículo um Pulitzer, arrecadado na categoria da caricatura editorial. Mas nem a conquista desse prestigiado prémio impediu que a ligação da cartoonista norte-americana ao The Washington Post terminasse a 4 de janeiro último, ao fim de 17 anos.
É certo que Ann Telnaes testou ao máximo a liberdade de expressão agora ali em vigor. Naquele dia, submeteu para publicação no jornal um cartoon em que Jeff Bezos, o dono do The Washington Post, está ajoelhado, com um saco de dólares, diante de uma estátua de Donald Trump.
Sabia-se que Bezos tinha doado um milhão de dólares para financiar a tomada de posse, a 20 de janeiro, do Presidente eleito, Trump. No cartoon, em conjunto com Bezos, e também a oferecer, de joelhos, sacos de dinheiro ao novo líder da Casa Branca, aparecem outros financiadores da cerimónia de posse – Mark Zuckerberg (Meta) e Sam Altman (OpenAI), além de Patrick Soon-Shiong (proprietário do Los Angeles Times) e até do rato Mickey, que na caricatura representa a Walt Disney Company, dona da cadeia de TV ABC News.
A mensagem do cartoon era clara: um grupo de bajuladores bilionários procurava comprar benesses ao então Presidente eleito. E, pela primeira e última vez, Ann Telnaes viu o The Washington Post recusar-lhe a publicação de um trabalho.
Aviso A cartoonista Ann Telnaes diz ter sido alvo, no The Washington Post, de uma “censura sintomática de um declínio cada vez mais acentuado na liberdade e independência da imprensa nos EUA” Ann Telnaes(EUA), Cartooning for Peace
Nos anos anteriores, conta a cartoonista, “esboços foram ocasionalmente rejeitados ou revisões solicitadas, mas isso nunca se relacionava com a mensagem que o cartoon pretendia passar”. Na última caricatura que desenhou para aquele jornal, Ann Telnaes diz ter sido alvo de uma “censura sem precedentes e sintomática de um declínio cada vez mais acentuado na liberdade e independência da imprensa nos EUA, o que deve alertar para o que isso pressagia em termos de respeito pelas regras do jogo democrático”.
A quem lhe pergunte se não foi deselegante, no mínimo, satirizar o próprio “patrão”, responde: “Estamos a falar de órgãos de comunicação social que têm deveres públicos e que são obrigados a nutrir uma imprensa livre numa democracia. E os donos dessas organizações são responsáveis por salvaguardar essa imprensa livre.”
Na altura, quando questionado sobre o caso, o The Washington Post negou qualquer censura e alegou que a abordagem do assunto – a aproximação de bilionários da tecnologia e dos média a Trump – se estava a tornar “repetitiva” nas páginas do jornal. Já a Cartooning for Peace saudou a “determinação” de Ann Telnaes (que por iniciativa própria logo se desvinculou do The Washington Post) e secundou-a na preocupação com um caso de censura que “muda a situação e representa um perigo para a liberdade de imprensa”. Mas a cartoonista garante que vai continuar o seu trabalho de “responsabilização dos poderosos”. Porque “a democracia morre na escuridão”.
TURQUIA
Ter graça e arriscar três anos de cadeia
No confinamento causado pela Covid-19, a cartoonista Zehra Ömerogˇlu fez uma ilustração, a que chamou de “sexo e pandemia”, para divertir e pôr a rir quem a visse. Resultado: um inferno judicial que dura até hoje
Estamos em 2020, em pleno confinamento provocado pela pandemia de Covid-19, e a cartoonista turca Zehra Ömeroğlu precisava de se descontrair. Nada melhor para isso do que fazer uma ilustração humorística. Além do mais, naqueles dias incertos e assustadores, iria propiciar um momento de divertimento e riso aos apreciadores dos seus cartoons. “Sexo e pandemia” foi o título que deu à caricatura publicada em novembro daquele ano na revista satírica semanal turca LeMan. No desenho, vê-se um homem com o rosto encostado às nádegas de uma mulher e a dizer: “Ufa! Pelo menos não perdi o paladar e o olfato!”
À conta deste cartoon, que apenas pretendia oferecer a quem o visse uma pausa de boa disposição nos depressivos tempos da pandemia, Zehra Ömeroğlu viu-se envolvida num interminável inferno judicial, que dura há mais de quatro anos. Tudo, para ela, ficou no fio da navalha: a carreira, a sua segurança e, no fim, o risco de ser condenada a três anos de prisão.
A cartoonista foi logo processada pelo Ministério Público de Istambul, que só em outubro de 2022, quase dois anos após a publicação da caricatura, deduziu uma acusação contra a artista, pelo crime de “obscenidade”. Nas contra-alegações ao libelo acusatório, o seu advogado, além de insistir no óbvio objetivo lúdico do desenho de Zehra Ömeroğlu, sublinhou que, “de acordo com decisões do Tribunal Constitucional, a presença de elementos eróticos” em obras artísticas “não é um crime”.
“Ousadia” Os cartoons de Zehra Ömeroğlu são publicados em numerosos jornais e revistas, dentro e fora da Turquia, e já deram lugar a três livros. Ela aborda a sexualidade feminina e os tabus sexuais, para gáudio dos seus fãs e fúria do regime de Erdogan
O trabalho da cartoonista turca é conhecido por se centrar na sexualidade feminina, nos tabus sexuais e na complexidade da psicologia humana, sempre com mensagens que também pretendem divertir. Os seus cartoons são publicados em numerosos jornais e revistas, dentro e fora da Turquia, e já deram lugar à edição de três livros.
De volta ao caso em concreto, a caricatura que levou Zehra Ömeroğlu a ser processada e acusada pelo Ministério Público de Istambul foi publicada numa revista satírica obviamente para adultos. E, no entanto, o procurador responsável por sustentar a tese da acusação em julgamento pediu ao juiz, e conseguiu, que fosse solicitado um parecer ao Conselho para a Proteção de Menores de Publicações Obscenas, dependente do Ministério turco da Família. Tal parecer foi divulgado numa audiência do julgamento em março de 2024 e, claro, não ajudou em nada a cartoonista: invocando um artigo de uma lei do país, aquele conselho considerou que a caricatura em causa “ofende a decência e a modéstia públicas, é contrário à moralidade geral”, e que “desperta e explora desejos sexuais”. Tudo “efeitos nocivos” de que as crianças devem ser protegidas, quando a ilustração de Zehra Ömeroğlu, como é evidente, não se lhes dirigia.
Depois, o juiz, numa audiência em setembro passado, determinou que um painel independente de especialistas em Belas-Artes e Literatura produzisse um segundo relatório, este de análise artística à caricatura, em contraponto ao primeiro, que a considerou “obscena”. Mas, em fevereiro último, quando a cartoonista e o seu advogado esperavam conhecer, em mais uma sessão do julgamento, o teor daquele parecer “artístico”, o juiz informou-os de que o documento não fora enviado ao tribunal, agendando nova audiência para junho próximo.
O julgamento arrasta-se e ainda está na 1.ª instância – com crescentes danos pessoais e profissionais para Zehra Ömeroğlu. Comenta a Cartooning for Peace: “Estes adiamentos constantes, que condenamos, são uma prática regular das autoridades turcas para restringir a liberdade de expressão.”
EGITO
Prisão preventiva infinita
Fez cartoons sobre a elevada dívida externa do país e os frequentes apagões elétricos. Demasiado para a ditadura militar do general Al-Sisi, que aplicou a Ashraf Omar o corretivo da prisão contínua sem julgamento
Em janeiro último, agentes da Procuradoria egípcia de Segurança do Estado entraram na casa de Nada Mougheeth e detiveram-na. Um mês antes, Nada, que é mulher do cartoonista Ashraf Omar, que está em prisão preventiva desde julho de 2024, tinha dado uma entrevista ao jornalista Ahmed Siraj, do site de notícias ZatMasr, na qual denunciou que, na altura da detenção do marido, também na residência do casal, haviam sido apreendidos objetos pessoais e quantias em dinheiro, sem que isso fosse registado no relatório da ação policial.
Na ditadura militar, liderada pelo general Al-Sisi, que hoje governa o Egito, não se admitem tais acusações, apesar de a corrupção generalizada ser apontada por diversas entidades internacionais. Nada Mougheeth seria libertada sob caução e acusações pesadas da Procuradoria de Segurança do Estado: “ligação a um grupo terrorista” e “disseminação de notícias falsas”. Já Ahmed Siraj, o jornalista que a entrevistou, ficou em prisão preventiva, acusado dos mesmos delitos.
Agora, Nada Mougheeth está altamente condicionada nas suas movimentações para lutar pela libertação do marido. Ashraf Omar fazia os seus cartoons para o site de notícias Al-Manassa. Antes de ser preso, as suas ilustrações humorísticas visaram a elevada dívida externa do Egito e os frequentes apagões elétricos no país.
Para a ditadura do general Al-Sisi, foi longe demais. Após ser preso, a mulher, a família e o seu advogado não souberam do paradeiro de Ashraf Omar durante dois dias. Há alegações de que, nesse período, o cartoonista foi espancado e ameaçado de tortura com eletrocussão por agentes da Procuradoria de Segurança do Estado. Num interrogatório de seis horas, ser-lhe-ia perguntado se, com os seus cartoons, tencionava incitar uma revolta popular.
Alarme Várias ONG assinaram uma petição que rejeita as “acusações criminais infundadas” contra Ashraf Omar e que pede a sua “libertação imediata”
Para o advogado Khaled Ali, não foram surpresa nenhuma as acusações atribuídas ao seu constituinte Ashraf Omar, sem apresentação de provas: lá estavam a “ligação a grupo terrorista”, e a “disseminação de rumores, notícias e informações falsos”, acrescidas de “abuso de utilização dos média e das redes sociais”. Mas o que agora preocupa o defensor do cartoonista são as sucessivas extensões por mais 45 dias da prisão preventiva de Ashraf Omar, depois de ultrapassado o limite legal para tal tipo de reclusão. E Nada Mougheeth apenas pode fazer breves visitas de meia hora, uma vez por mês, ao marido, na cadeia de Ramadan.
A Human Rights Watch denuncia as “exacerbadas práticas abusivas de prisão preventiva” pelas autoridades egípcias, que constituem “violações flagrantes do devido processo legal”. Já Sarah Leah Whitson, diretora executiva da DAWN, a ONG fundada por Jamal Khashoggi, jornalista saudita assassinado em outubro de 2018, afirma que “a prisão contínua de Ashraf Omar diz tudo o que é preciso saber sobre a liberdade de expressão no Egito”.
A Cartooning for Peace diz-se “alarmada com a extensão da prisão preventiva” do cartoonista egípcio e a “ausência de qualquer garantia de um julgamento justo”, e assinou com outras organizações uma petição que rejeita as “acusações criminais infundadas” que o visam e que pede a sua “libertação imediata”. Mas aposta-se que o general Al-Sisi fez questão de ignorar tais críticas e apelos.
ÍNDIA
Bloquear um site? É fácil
Uma caricatura mordaz que Hasif Khan fez do primeiro-ministro, Narendra Modi, levou à censura do site da revista Vikatan, um título quase centenário da imprensa do país
Na noite de 15 de fevereiro passado, os editores e jornalistas que estavam na redação da revista Vikatan, um título quase centenário da imprensa indiana (foi fundado em 1928) e sediado em Chennai, a capital do estado de Tamil Nadu, foram tomados pela ansiedade. O tráfego do seu site caíra a pique, de forma abrupta.
Os técnicos informáticos da revista tentaram encontrar respostas para a situação, mas não as obtiveram. A explicação apenas surgiria no dia seguinte, e era uma estreia para a Vikatan, alvo de numerosos processos judiciais, em resultado da sua conduta editorial de afiada crítica política e social. O site tinha sido bloqueado, em grande parte da Índia, pelo Ministério da Informação e Radiodifusão do governo central, de Nova Deli, sem qualquer notificação prévia.
Quando chegou, a notificação oficial remetia para a ilustração de capa da edição de 10 de fevereiro da extensão de marca digital Vikatan Plus, em que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, aparece algemado de mãos e pés, sentado ao lado do Presidente Donald Trump. Aquele cartoon, desenhado por Hasif Khan, chefe da secção de cartoonistas da Vikatan, apenas refletia a indignação da sociedade, quando se soube que centenas de indianos, homens, mulheres e crianças, deportados dos EUA, tinham feito a viagem, a 5 de fevereiro, acorrentados num avião militar norte-americano, o que não suscitou qualquer comentário do governo de Modi.
Estreia Pela sua linha editorial de afiada crítica política e social, a newsmagazine Vikatan é alvo frequente de processos judiciais, mas a censura do seu site, pelo governo de Modi, apanhou todos de surpresa
Para fundamentar a censura ao site da revista, na sequência da publicação do cartoon de Hasif Khan, o governo de Nova Deli deitou mão a uma lei dirigida a sites noticiosos e redes sociais que, alegou, lhe permite “bloquear o acesso à informação para proteger a segurança nacional e as relações exteriores amistosas”. A Vikatan contestou, junto do Tribunal Superior estadual de Tamil Nadu, a ordem do Ministério da Informação e Radiodifusão de bloqueio do seu site, argumentando o advogado da revista que a ilustração de Hasif Khan constituía “uma forma de expressão artística protegida pela liberdade de expressão e jornalística”, e que a medida governamental, na sua desproporção, também feria os direitos económico-financeiros da newsmagazine.
A 6 de março passado, aquele Tribunal Superior emitiu uma ordem provisória e salomónica, determinando que o Ministério da Informação e Radiodifusão desbloqueasse o site da revista, sob a condição de a Vikatan remover a ilustração de Hasif Khan, o que a newsmagazine fez.
Mas os juízes daquela instância ainda têm de decidir quem tem ganho de causa: se a liberdade de expressão e jornalística, consignada na Constituição do país, argumentada pela Vikatan e pelo seu cartoonista, o que implica a republicação da ilustração de Hasif Khan, se o Ministério da Informação e Radiodifusão, com a lei que invoca. De qualquer forma, a Repórteres Sem Fronteiras aponta que, sob a governação de Modi (que a 17 de março anunciou ter aberto uma conta na Truth Social, a rede social fundada pelo seu “amigo” Trump, como lhe chama), foram concretizadas uma série de leis que dão ao executivo “um poder excessivo para regular os média, censurar informações e silenciar vozes oposicionistas”.
MALÁSIA
Cartoonista impenitente
Fahmi Reza é um velho conhecido da polícia e dos tribunais do estado de Sabá. O último processo que o visa, por ter satirizado um alto dirigente político, e pelo qual arrisca uma pena de prisão, agita o país
Por pouco, o cartoonista malaio Fahmi Reza não entrou em 2025 enclausurado numa cela de uma esquadra de polícia. O artista foi detido a 30 de dezembro, por ordem de um tribunal do estado de Sabá, e libertado sob caução no dia seguinte.
Fahmi Reza é um velho conhecido da polícia e dos tribunais de Sabá. Só desde março de 2021, à conta das suas caricaturas mordazes, a Cartooning for Peace contabiliza que o cartoonista malaio foi notificado por nove vezes para prestar declarações em esquadras da polícia, detido por três vezes, preso por quatro vezes e acusado por duas vezes. Em 2022, por exemplo, não teve pejo em desenhar um macaco ornamentado com vestes reais, numa sátira ao então rei, Abdullah de Pahang (a Malásia é uma monarquia constitucional). Todas as queixas que visam o cartoonista têm como base uma chamada Lei de Sedição, de… 1948.
Mas o cartoon pelo qual Fahmi Reza está agora a ser processado é, talvez, ainda mais afiado do que o do macaco com indumentária de rei. O cartoonista desenhou o novo governador do estado de Sabá, Musa Aman, com uma nota de 100 ringgits (a moeda malaia) presa entre os dentes. Fahmi Reza lembrava, assim, que Musa Aman, durante o seu mandato como ministro-chefe do governo estadual, de 2003 a 2018, fora acusado de corrupção, embora nunca tenha sido condenado.
Como? Todas as queixas que visam o cartoonista Fahmi Reza têm como base uma chamada Lei de Sedição, de 1948 – com 77 anos, portanto
O cartoon suscitou mais de 50 queixas por difamação de furiosos dirigentes do partido no poder no estado, a Coligação do Povo de Sabá. Alguns deles pugnam mesmo pela expulsão vitalícia de Fahmi Reza de Sabá.
Indiferente a tamanha indignação (e embora arrisque, em caso de condenação, uma pena até três anos de prisão), Fahmi Reza colocou o cartoon na sua conta no Instagram e, depois, foram feitos posters da ilustração satírica do governador Musa Aman, exibidos em várias cidades do estado, incluindo Kota Kinabalu, a capital. Por sinal, o cartoonista seria detido pela polícia, a 30 de dezembro, quando participava, em Kota Kinabalu, numa manifestação de centenas de estudantes e ativistas contra a nomeação para governador de Musa Aman e a corrupção em Sabá.
O caso ganhou dimensão nacional. Uma respeitada organização malaia de defesa dos direitos humanos, a Aliran, exigiu que sejam retiradas todas as acusações contra o cartoonista, porque os cidadãos, argumentou, têm “o direito constitucional de expressar pacificamente as suas preocupações sobre assuntos de interesse público, como Fahmi fez através da sua arte”. Também o primeiro-ministro, Anwar Ibrahim, do Partido da Justiça Popular, veio a público defender o cartoonista, dizendo que não deveria ser processado por causa do seu trabalho artístico, e que críticas ao governo e aos líderes políticos integram a liberdade de expressão. Mas organizações malaias de defesa dos direitos humanos aproveitaram a oportunidade para criticar o próprio chefe do governo, que ainda não cumpriu a promessa eleitoral que fez de revogar a legislação (como a Lei de Sedição, de 1948) que restringe a liberdade de expressão e sufoca o protesto.
A Cartooning for Peace acompanha as reivindicações e críticas daquelas organizações da sociedade civil malaia, sendo certo que Fahmi Reza, mesmo perante uma eventual condenação, não deixará nunca de desenhar as suas sátiras cortantes.
QUÉNIA
Dos cartoons ao rapto
O cartoonista Kibet Bull, também ativista nas redes sociais, e muito crítico do Presidente William Ruto, esteve 13 dias desaparecido – e os seus raptores continuam por identificar…
Suspirou-se de alívio, a 6 de janeiro último, na sede da Cartooning for Peace, em Paris. Naquele dia, chegou a notícia de que o cartoonista Kibet Bull, também ativista nas redes sociais, e muito crítico do Presidente queniano William Ruto, tinha sido solto pelos seus raptores, ainda hoje por identificar, embora haja fortes suspeitas de que fossem polícias dissimulados.
Kibet Bull estava desaparecido desde o dia 24 anterior, após encontrar-se na capital do país, Nairobi, com um senador da oposição, Okiya Omtatah. Ainda estudante, a 27 deveria viajar para Israel, para prosseguir a sua formação na universidade de Telavive, mas deixou de ser visto.
Nessa altura, num comunicado à imprensa, a East African Cartoonists Society (KATUNI) atribuiu o desaparecimento de Kibet Bull a um rapto, um de uma série que estava a visar oposicionistas do regime, sobretudo jovens que se destacavam nas redes sociais como ativistas. A KATUNI denunciava naquele comunicado um clima de intimidação sobre a liberdade de expressão e exigia que a polícia queniana fosse responsabilizada pelo desaparecimento do cartoonista e ativista político, enquanto as autoridades negavam qualquer envolvimento no caso. O certo, porém, é que, ainda antes de Kibet Bull desaparecer, a polícia fez uma investida à sua casa, em Nakuru, uma cidade a cerca de 150 km de Nairobi, numa tentativa frustrada de o prender.
Assustador “Mesmo durante os piores tempos da ditadura de Daniel Arap Moi, que devastou o Quénia de 1978 a 2002, os cartoonistas não eram alvos do Estado”, escreveu o jornalista Patrick Gathara sobre o caso de Kibet Bull
Na sequência dessa operação policial, Patrick Gathara, editor-chefe da The New Humanitarian, uma agência de notícias centrada em assuntos de direitos humanos, dedicou um editorial à perseguição de que Kibet Bull estava a ser vítima, escrevendo que “mesmo durante os piores tempos da ditadura de Daniel Arap Moi, que durou 24 anos e devastou o Quénia de 1978 a 2002, os cartoonistas não eram diretamente alvos do Estado”.
O número de raptos no país começou a crescer a partir do verão de 2024, quando milhares de jovens se manifestaram contra o aumento de impostos decretado pelo governo do Presidente William Ruto. A 26 de dezembro, dois dias depois do desaparecimento de Kibet Bull, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quénia (KNCHR) mostrou-se alarmada com o fenómeno dos raptos em várias regiões do país, levados a cabo por indivíduos armados e não identificados. Até àquele dia, e desde junho, a KNCHR registou 82 casos de pessoas desaparecidas. Já Irungu Houghton, diretor-executivo da Amnistia Internacional no Quénia, denunciava casos claros de abuso de poder e de prisões ilegais, incluindo relatos de tortura. Sob toda esta pressão sobre o regime, surgiria a libertação de Kibet Bull pelos seus raptores.
Também o Presidente William Ruto viu-se obrigado, pela primeira vez, a vir a público reconhecer a existência de “ações excessivas e extrajudiciais” levadas a cabo por forças de segurança, embora sem as especificar. Já a Cartooning for Peace exige que o rapto de Kibet Bull seja por completo esclarecido, e manifesta receio pela vida do traumatizado cartoonista.
ARÁBIA SAUDITA
Mas ele matou alguém?
Por supostas “ofensas” ao rei, ao príncipe herdeiro e ao regime, Al Hazza viu ser-lhe imposta uma pena de 29 anos de prisão. E ninguém questiona Riade sobre o caso
Em outubro passado, quando esperava ser libertado após cumprir uma pena de prisão de seis anos, condenação justificada por cartoons seus considerados “ofensivos” para o rei saudita, Salman, e o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, o cartoonista Mohammed al-Ghamdi, que assina os seus trabalhos como Al Hazza, recebeu uma notícia devastadora. Enquanto estava preso, o seu processo tinha sido reaberto e revisto por um “tribunal especial”, que o condenou, numa sentença irrecorrível e com data desconhecida para a sua defesa e família, a mais 23 anos de cadeia.
Aquele “tribunal especial”, que decidiu agora condenar o cartoonista saudita a 29 anos de prisão, foi criado para lidar com casos de terrorismo. E, para lhe aumentar exponencialmente a pena, a coberto de uma suposta lei “antiterrorismo”, não mudou os crimes que já tinham sido atribuídos a Al-Ghamdi. Às referidas “ofensas” das suas ilustrações humorísticas ao rei Salman e, sobretudo, ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o líder de facto da monarquia autocrática saudita, somaram-se as “mensagens hostis” ao regime, em caricaturas “favoráveis” para o vizinho emirado absolutista do Catar.
Esta foi a armadilha que aprisionou Al-Ghamdi, aliás Al Hazza. Ele fazia os seus cartoons para o jornal diário catari Lusail, caricaturas que também colocava nas suas redes sociais, e seria preso pela polícia saudita em fevereiro de 2018, pouco tempo depois de o príncipe Mohammed bin Salman ordenar o corte completo de relações da Arábia Saudita com o Catar. Em causa estava o “inimigo” Irão, com o qual o emirado vizinho mantinha pontes políticas e económicas, além de tolerar a presença no seu território de dirigentes da Irmandade Muçulmana, movimento islâmico radical, considerado como “organização terrorista” pela monarquia de Riade.
O cenário político não podia ser mais desfavorável a Al-Ghamdi, que sempre denunciou estar a ser vítima de uma “fabricação de falsas acusações”. Mas só o facto de ter sido julgado por um “tribunal especial” criado para “casos de terrorismo” dizia tudo sobre a inevitabilidade da sua condenação.
Impunidade Al Hazza trabalhava para um diário do Catar e, por isso, cometeu um crime de “terrorismo”, sentenciou um “tribunal especial” saudita…
Durante meses, a família não soube do seu paradeiro e, quando por fim o localizou, na prisão de Dahban, em Jeddah, Al-Ghamdi disse-lhes que sofria maus-tratos frequentes e que não tinha acesso a cuidados médicos, apesar da degradação do seu estado de saúde, como depois divulgou a Sanad, organização saudita de defesa dos direitos humanos sediada em Londres. No entanto, não era infundada a esperança que o cartoonista alimentou de ser libertado em outubro último, após cumprir os seis anos de cadeia da única sentença que até ali ouvira. É que, em janeiro de 2021, o príncipe herdeiro saudita e o emir do Catar, Tamim Al-Thani, depois de três anos de zanga, selaram com um abraço, em Riade, a normalização de todas as relações, na sequência de uma bem-sucedida intermediação de Washington e do Kuwait, interessados no isolamento do Irão.
Mas o príncipe Mohammed bin Salman não é conhecido por ser dado a perdões – não se livra, por exemplo, da suspeita de ter sido o mandante do assassínio, em outubro de 2018, do jornalista saudita Jamal Khashoggi, opositor do regime. Quanto à devastadora pena extra de mais 23 anos de prisão imposta a Al-Ghamdi, a Sanad denunciou que o caso do cartoonista “ilustra um clima perturbador em que ninguém está seguro”, até alguém que se torna um “alvo” apenas pelo seu trabalho artístico.
A Sanad insiste em pedir uma “ação internacional urgente para proteger a liberdade artística e os direitos humanos na Arábia Saudita”, na qual se inclua a “libertação imediata e incondicional” de Al-Ghamdi. Secundando este apelo, a Cartooning for Peace lembra que a Arábia Saudita está classificada na 166.ª posição, em 180, no mais recente índice mundial de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras, e que, em 2024, o país tinha 24 jornalistas presos.
O certo, porém, é que a 16 de outubro último, o dia em que a Sanad e a Cartooning for Peace denunciaram a aplicação a Al-Ghamdi de mais 23 anos de prisão, o príncipe Mohammed bin Salman seria calorosamente recebido em Bruxelas por Ursula von der Leyen e pelos chefes de Estado e de governo dos países da União Europeia, para a primeira cimeira UE-Golfo. Não houve notícia de que o caso do cartoonista Al Hazza tenha sido ali sequer sussurrado.
IRÃO
Que “sorte”: só oito meses de prisão
Os tribunais do regime teocrático dos ayatollahs aproveitaram um cartoon de Atena Farghadani para punir todo o seu trabalho crítico com seis anos de cadeia. Mas um recurso, para surpresa geral, reduziu-lhe a pena
Veja-se a coragem da cartoonista Atena Farghadani: a 13 de abril de 2024 aproximou-se do palácio presidencial, em Teerão, e tentou exibir uma ilustração que tinha feito a criticar as desigualdades sociais na sociedade iraniana. Foi logo violentamente abordada por agentes à civil da chamada Guarda Revolucionária e presa.
Dali seguiu de imediato para a cadeia de Evin, na capital iraniana, famosa pelas suas degradantes condições prisionais. Os tribunais do regime teocrático dos ayatollahs foram rápidos a julgar Atena Farghadani – em junho seguinte seria condenada a seis anos de prisão, cinco dos quais por “insultar o sagrado” e um por “propaganda contra o Estado”. De forma clara, diz a Cartooning for Peace, a sentença puniu, por junto, os cartoons críticos feitos ao longo dos anos por Atena Farghadani.
“Pacote” Os seis anos de prisão a que, em 1.ª instância, um tribunal do regime teocrático iraniano condenou Farghadani punem todo o trabalho da cartoonista ao longo do tempo, considerou a Cartooning for Peace
Mas uma boa notícia, salvaguardando que se está no contexto da ditadura teocrática iraniana, chegou a 9 de dezembro último. Um recurso do advogado da cartoonista tinha sido parcialmente deferido. Conseguiu a absolvição de Atena Farghadani quanto à acusação de “insultar o sagrado”, com o tribunal de recurso a sentenciar a artista a oito meses de prisão, que então já tinha cumprido, por “propaganda contra o Estado”, devido ao cartoon sobre as desigualdades sociais que tentara exibir junto do palácio presidencial.
A Cartooning for Peace saudou, claro, a libertação de Atena Farghadani, mas alertou para a “necessidade de continuar a denunciar as injustiças desenfreadas” no Irão dos ayatollahs.
João Almeida fechou com autoridade a Volta ao País Basco e tornou-se o primeiro ciclista português a conquistar a camisola amarela nesta prestigiada corrida do calendário mundial, terminando de braços no ar, com a segunda vitória numa etapa.
No último dia da competição, a UAE-Emirates controlou sempre as operações, com o seu líder das Caldas da Rainha a assumir as despesas na cabeça do pelotão, na penúltima subida categorizada, perante as dificuldades sentidas pelos seus adversários mais próximos na classificação geral, Maximilian Schachmann (Soudal Quick-Step) e Florian Lipowitz (Red Bull-BORA-hansgrohe) – respetivamente, a 30 e 38 segundos de distância na partida.
Com a queda de Mattias Skjelmose (Lidl-Trek), a pouco mais de dez quilómetros da meta, numa estrada escorregadia, em virtude da chuva, abriu-se completamente a vitória na corrida, concluída com o triunfo da etapa, após bater ao sprint Eric Mas (Movistar).
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O corredor espanhol, o único que conseguiu acompanhar o português nos últimos quilómetros, ainda perguntou ao camisola amarela se o deixaria cortar a linha de meta na frente, ao que ouviu como resposta um rotundo “não”. Era a Mas quem competia puxar mais na fuga, uma vez que o tempo ganho lhe permitiria ascender ao segundo lugar da prova (o que acabaria por acontecer) e a Almeida já não escaparia o triunfo final. E assim foi. Na reta da meta, o homem da UAE-Emirates não perdoou, fechando em beleza uma semana em que dominou em toda a linha nas montanhas do País Basco, sem dar hipóteses à concorrência, numa espécie de réplica do grande líder da equipa, Tadej Pogacar.
As diferenças na classificação espelham essa superiodade do ciclista de 26 anos. Eric Mas terminou com quase dois minutos de atraso (1m52s), seguindo-se o alemão Maximilian Schachmann, a 1m59s. É a primeira vez que um português vence a Volta ao País Basco e, antes dele, só outro ilustre da modalidade, o campeão do mundo Rui Costa, havia levado a bandeira nacional ao lugar mais alto do pódio, nestas corridas de uma semana do World Tour, quando venceu a Volta à Suíça, em três edições consecutivas (2012, 2013 e 2014). Ainda ao serviço da Deceuninck-Quick-Step, em 2021, Almeida também já havia conquistado uma prova do World Tour com este formato, no caso a Volta à Polónia.
“Estou muito contente. A equipa fez um trabalho perfeito, estou muito agradecido por tudo o que fizeram por mim, e venha a próxima”, declarou o “Bota Lume”, como também é conhecido entre a legião de fãs portugueses, que agora vai estar uns dias afastado das corridas até iniciar a preparação para a Volta a França, onde estará, pelo segundo ano consecutivo, com a missão de ajudar Pogacar.
Muito vento, coisas a voar, pessoas a deitarem-se no chão. Do alto dos autocarros da JJ Express é como se os turistas e os birmaneses endinheirados estivessem num primeiro andar, com as vistas a contribuírem para a viagem feliz prometida pelos dois jotas de joyous journey. Júlia Silva tinha escolhido um lugar à janela e estava entretida a observar as lojinhas da beira da estrada quando viu o terramoto. É assim mesmo que ela conta: “Eu não senti o terramoto, eu vi o terramoto.”
A viajante portuguesa saíra de Mandalay um dia mais cedo do que planeara inicialmente, rumo a Nyaungshwe, a pequena cidade de entrada no Inle Lake, onde esperava encontrar menos calor do que na antiga capital imperial. A região do grande lago, famosa pelas suas aldeias flutuantes e pelos pescadores equilibristas que usam uma perna para remar, ia ser a última etapa de quase três semanas em Myanmar (antiga Birmânia).
Rituais Shinbyu é uma cerimónia que celebra a entradana vida monástica. As mulheresda família levam oferendas e os jovens vão vestidos de príncipes
“Tive uma daquelas bênçãos do céu, porque o epicentro foi apenas a dez quilómetros de Mandalay”, observa Júlia, ao telefone, desde a Tailândia, onde por estes dias está a fazer mergulho.
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Às 9h da manhã de sexta-feira, 28 de março, preparara-se para passar mais de oito horas enfiada num autocarro até Inle Lake. Desde o golpe de Estado de fevereiro de 2021, os estrangeiros só podem visitar quatro sítios no país – Yangon, Bagan, Mandalay e Inle Lake – por causa do conflito armado com vários grupos de rebeldes. Os comboios estão-lhes proibidos e só lhes é permitido andar nos autopullman da JJ Express, cujos motoristas se encarregam de ir mostrando os passaportes nos controlos na estrada.
A viagem climatizada corria como previsto: devagar, com várias paragens. Faltavam uns minutos para a 1h da tarde, estava quase na hora da pausa do almoço, quando um sismo de magnitude 7,7 atingiu a região central de Myanmar, devastando Mandalay, Naypyidaw (a capital) e outras cidades e povoações nas suas imediações, além de se fazer sentir nas vizinhas Tailândia e China. Hoje, a portuguesa sabe que provocou mais de 3 500 mortos, mais de cinco mil feridos e centenas de desaparecidos. No momento, pareceu-lhe coisa pouca.
“Primeiro, pensei: é a guerra”, recorda, “mas achei estranho porque não havia barulho, então concluí que era um tremor de terra. Ninguém disse nada, ficou tudo a ver as coisas pelo ar. O motorista manteve o autocarro parado uns cinco minutos, depois arrancou, fomos almoçar tranquilamente. Era a única turista e não se falou sobre o que tinha acontecido. Não liguei os dados do telemóvel, não me lembrei de ir à internet, não dei importância àquele tremorzinho de terra”.
Shwedagon Paya, em Yangon Este templo é um importante local de peregrinação para os birmaneses, pois guarda oito cabelos de Buda. A sua cúpula tem milhares de diamantes
Passadas umas três ou quatro horas, Júlia ligou-se finalmente à internet e o seu telefone começou a apitar com mensagens da família e dos amigos, a quererem saber se ela estava bem. Recebeu um WhatsApp do chefe de missão da embaixada portuguesa em Banguecoque, na Tailândia, que fora contactado pelo seu irmão, mas só teve noção da tragédia em Nyaungshwe, já de noite. As informações que chegavam de aldeias vizinhas e do centro do país eram assustadoras.
É a partir de Nyaungshwe que se visita a região do Inle Lake, um lago com cem quilómetros de comprimento e cinco de largura, passeando de barquinho entre as aldeias flutuantes, os ateliers de artesãos, as pequenas fábricas de charutos e o delicioso Mosteiro Nga Phe Kyaung, mais conhecido como “templo dos gatos saltadores”. Na manhã seguinte, a viajante portuguesa viu como os únicos quatro prédios altos da vila, todos de hotéis, dois deles fechados, tinham ganhado umas rachas preocupantes. Num café, contaram-lhe que o sismo derrubara centenas de casas de madeira e bambu construídas sobre palafitas no lago.
“Havia pelo menos cinco aldeias completamente destruídas, não quis fazer turismo, só queria ajudar alguém. Foi então que uma guia local me levou até à Bamboo Delight, onde estive a empacotar comida e água para distribuir de barco.”
A Bamboo Delight é a escola de culinária e restaurante de Ma Pu Sue, uma birmanesa que fundou a ONG Hand to Hand Charity, em 2013, para apoiar a comunidade e dar aulas a crianças no verão. Nesse primeiro dia, Júlia foi com os voluntários auxiliar os habitantes da aldeia Myaung Wa Gyi, onde tinham ficado danificadas 85 casas, logo no início do lago.
Sorrisos Toda a ajuda é pouca, mas será sempre bem recebida, sabe a birmanesa Ma Pu Sue, fundadora da ONG Hand to Hand Charity, aqui a distribuir água e comida com a voluntária francesa Corinne, numa das aldeias flutuantes de Inle Lake
“E foi muito bonito”, conta, “porque no meio da tristeza das aldeias naquele estado, as pessoas devolviam-nos um sorriso muito grande. Viajar é isto, é conhecer estas pessoas, gente que não tem nada, mas tem sempre um sorriso. Acabou por ser uma experiência bonita, apesar de tudo.”
No dia seguinte, voltaram ao lago, a mais aldeias, onde não havia comida nem água potável. A junta militar no poder em Myanmar já tinha pedido ajuda internacional, mas ainda nenhuma autoridade tinha ido à região ver o que se passava. Os habitantes começavam a adoecer, porque sempre usaram a água do lago para cozinhar e ela estava contaminada por tudo o que lá caiu.
“Só no dia 30 é que apareceu uma comitiva, eu estava ao pé dos barcos e vi um senhor que devia ser o governador da região, mais o seu fotógrafo, o seu cameraman, uns 20 amigos bem vestidos e uns 40 militares de cara tapada e metralhadora. O povo estava furioso, claro. Porque só lá foram ao terceiro dia e não levaram nada. Iam apenas fazer o levantamento das necessidades e tirar fotografias a si próprios.”
Enquanto esteve em Nyaungshwe, Júlia ocupou-se sobretudo com aquilo que mais faz: conhecer pessoas, conversar com elas, interessar-se por elas, tirar-lhes fotografias. “Costumo dizer que não viajo sozinha, viajo com a minha câmara – é o que me ajuda a ver melhor, porque me obriga a olhar com mais concentração, mais foco. E gosto muito de fotografar pessoas e de falar com elas. Uma das razões por que viajo sozinha é poder fazer isso. Pergunto se posso fotografá-las, sento-me e fico ali à conversa.”
Devastação Júlia Silva acredita que vai tudo ser reconstruído em um ou dois anos. “As pessoas são maravilhosas e merecem que os turistas voltem”, sublinha a viajante
Na quinta-feira, 3, despediu-se de Myanmar com vontade de regressar. “Normalmente, saio dos sítios contente e feliz e não a pensar que volto”, conta. Desta vez foi diferente: “Quero conhecer a sério Inle Lake, que deve ser de uma beleza estrondosa. Hei de regressar, não sei quando porque a reconstrução vai demorar e quero voltar quando houver democracia. É um país maravilhoso que precisa muito do turismo.”
A antiga Birmânia foi o nonagésimo nono país que a portuguesa visitou, assinalado nesta sua viagem que teve início no Qatar, em janeiro, e já a levou ao Sri Lanka, às Maldivas e ao Bangladesh. No ano passado, por esta altura, estava no arquipélago de Bijagós, na Guiné-Bissau, seguindo a sua máxima de alternar os continentes. Quando fizer 60 anos, em julho, vai ter 100 países no currículo – o centésimo será a Coreia do Sul – visitados devagar, ao ritmo dos transportes locais, sem luxos (sempre que possível, dorme em hostels) e com tempo para sentir a familiaridade dos sítios.
Depois, Júlia Silva, que foi, durante mais de duas décadas, gestora numa multinacional farmacêutica e viveu na Alemanha e em Porto Rico, terá como sempre o verão ocupado pelo seu projeto de Airbnb, em Cascais – Room for Women Solo Travellers – que nasceu da vontade de empoderar as mulheres para viajarem sozinhas “e não ficarem à espera da companhia de um namorado ou de uma amiga”.
Como mora sozinha e só tem uma casa de banho, pode albergar apenas mulheres. “Podemos tomar o pequeno-almoço juntas, beber um copo de vinho, ir à praia ou… nada. Tenho conhecido mulheres dos 25 aos 75 anos, quase todas pessoas fantásticas.” E vê também o mundo pelos olhos delas.
Júlia Silva
“Em 2014, estava a fazer uma meditaçãozinha e passou-me pela cabeça: porque não te despedes e vais viajar pelo mundo? Ia fazer 50 anos, não tenho filhos, tinha umas economiazinhas e o apartamento pago… podia.” Desde então, a ex-gestora viaja pelo menos três meses no inverno, como podemos ir vendo no seu Instagram (@juliasilvatraveler)
Continuamos sem saber qual será o futuro da lei morte medicamente assistida em Portugal. Desde que foi aprovada em maio de 2023, conheceu a falta de regulamentação que impede a sua aplicação, a queda do Governo de António Costa, um novo pedido de fiscalização no Tribunal Constitucional, e agora a dissolução do Governo de Luís Montenegro. Muitas dúvidas e incertezas continuam a marcar este processo em Portugal. Nos últimos meses, o Reino Unido debateu e votou na Câmara do Comuns uma proposta para legalizar a eutanásia em Inglaterra e no País de Gales pela primeira vez em quase uma década, estando em curso trabalhos para a elaboração de uma lei que reúna um amplo consenso. Contudo, o que nos aproxima e distancia desta nação com quem temos uma grande proximidade, não fosse esta a mais antiga aliança em vigor?
A recente investigação que o projeto Aversion2agony conduziu sobre as atitudes face à eutanásia em Portugal e no Reino Unido, com base em dados do projeto internacional European Values Study, oferece uma visão reveladora sobre os pontos de convergência e divergência entre as duas nações. Os resultados probabilísticos e representativos das populações adultas demonstram que os britânicos têm uma justificação média da eutanásia (6,55 pontos) superior à dos portugueses (4,86 pontos), situando-se 1,69 pontos acima nunca escala de 1 (nunca) a 10 (sempre). Por outras palavras, 42,1% dos portugueses são contra a justificação da eutanásia. Esse valor de rejeição baixa para 19,7% no caso dos britânicos. Por outro lado, são os britânicos que mais aceitam a prática da eutanásia (56,2%), sendo esse valor de 32,8% nos portugueses entrevistados. Os restantes consideram-na admissível para determinadas situações. O que está por trás desta diferença? E até que ponto somos tão diferentes?
A primeira grande distinção está relacionada com os valores culturais e religiosos. O Reino Unido, historicamente mais secularizado e com forte tradição protestante, revela uma maior permissividade em relação à autodeterminação na morte. Por outro lado, Portugal, com uma influência católica muito presente, tende a apresentar uma maior resistência à ideia de eutanásia. Esta distinção reflete-se nos dados: enquanto no Reino Unido a maioria dos protestantes justifica a prática com uma média de 6,18 pontos, em Portugal os católicos registam apenas 4,60 pontos.
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Outro fator relevante é o papel do sistema de saúde e dos cuidados paliativos. O Reino Unido foi pioneiro na implementação dos hospices, centros especializados que proporcionam cuidados paliativos de alta qualidade. Esse sistema bem estruturado permite um debate mais informado sobre o fim da vida e pode contribuir para uma maior abertura à eutanásia. Em contrapartida, Portugal ainda enfrenta desafios significativos na disponibilização de cuidados paliativos acessíveis, o que pode gerar receios de que a eutanásia seja vista como uma solução para a falta de apoio médico adequado.
A educação surge como um fator-chave na aceitação da eutanásia. Em ambas as nações, os indivíduos com maior nível de escolaridade tendem a justificar mais esta prática. Isto pode estar associado a uma visão mais informada e reflexiva sobre os direitos individuais e a autonomia na tomada de decisão sobre o próprio fim de vida
Como ainda nenhum estudo tinha avaliado a associação da orientação política nos níveis de justificação da eutanásia, e considerando que os padrões e valores morais tradicionais (tradicionalismo/conservadorismo) estão geralmente situados no espetro político da direita, procurámos perceber se os indivíduos de direita são efetivamente a fração do espetro político com menor justificação da eutanásia. Os resultados foram surpreendentes. Se em Portugal são os indivíduos de esquerda e centro que mais aceitam a prática da eutanásia, no Reino Unido são os indivíduos de esquerda e direita. Portanto, apenas em Portugal os indivíduos de direita são a fração do espetro político com menor justificação da eutanásia. Uma explicação pode ser o domínio do Partido Conservador e no Partido Trabalhista em sucessos governos britânicos.
No entanto, também existem aproximações entre as duas nações. Apesar de as mulheres apresentarem uma justificação média (5,97 pontos) ligeiramente superior à dos homens (5,81 pontos), ela não varia significativamente com o sexo dos indivíduos e é uma tendência em ambas as nações. A análise geracional indica que as faixas etárias mais jovens, tanto em Portugal como no Reino Unido, apresentam um maior nível de justificação da eutanásia. Este dado sugere uma tendência global de mudança de mentalidade, impulsionada por uma maior exposição ao debate sobre direitos individuais e qualidade de vida.
Além disso, a educação surge como um fator-chave na aceitação da eutanásia. Em ambas as nações, os indivíduos com maior nível de escolaridade tendem a justificar mais esta prática. Isto pode estar associado a uma visão mais informada e reflexiva sobre os direitos individuais e a autonomia na tomada de decisão sobre o próprio fim de vida.
De todo o modo, é interessante notar que o apoio à legalização da eutanásia é relativamente próximo nas duas nações: 72,5% em Portugal e 65% no Reino Unido, de acordo com outras sondagens recentes. Contudo, esses dados escondem nuances importantes. Em Portugal, o debate é mais polarizado, com valores extremos tanto a favor como contra a prática, como mostram os nossos dados. Já no Reino Unido, a discussão parece ocorrer de forma mais equilibrada. As perguntas feitas aos entrevistados nessas sondagens nem sempre são as mesmas, entre outros elementos, que impedem comparações diretas.
Desta forma, a nossa investigação demonstra que a eutanásia continua a ser um tema complexo e multifacetado, influenciado por fatores culturais, religiosos, políticos e estruturais. Se, por um lado, os britânicos revelam uma maior permissividade, fruto de um contexto mais secularizado e de um sistema de saúde mais preparado para lidar com o fim da vida, por outro, os portugueses demonstram um crescimento no apoio à legalização, embora ainda marcado por fortes divisões.
O futuro da eutanásia nas duas nações dependerá da capacidade de promover uma discussão informada, que respeite tanto os valores individuais como as necessidades da sociedade. Mais do que uma questão de legislação, trata-se de uma reflexão sobre a dignidade humana e a forma como encaramos o fim da vida.
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Os países da NATO que apoiam a Ucrânia comprometeram-se hoje com um novo pacote de ajuda de mais de 21 mil milhões de euros. “Estamos a viver um momento crítico nesta guerra, e o que queremos dizer à Ucrânia é que pode contar connosco, seja na luta, seja na paz”, disse John Healey, ministro da Defesa do Reino Unido, depois de uma reunião do Grupo de Contato de Defesa da Ucrânia (GCDU), em Bruxelas, que contou com mais de 50 países, incluindo Portugal.
Este apoio – num valor recorde de financiamento militar ao país, segundo o governante britânico – integra um pacote de ajuda do Reino Unido de 5,2 mil milhões de euros, que inclui “minas antitanque” e “milhares de ‘drones'”.
Já Portugal deverá enviar viaturas blindadas M113, “lanchas rápidas” e helicópteros, de tipo “ainda não definido”, segundo Álvaro Castelo Branco, secretário de Estado da Defesa Nacional, num valor total de 221 milhões de euros, como já havia sido anunciado.
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Rustem Umero, ministro da Defesa da Ucrânia, já agradeceu o apoio. “Estamos gratos pelas capacidades de coligação que foram apresentadas às nações líderes, às nações contribuidoras, e é uma das maiores ajudas que estamos a receber”, referiu.
O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu esta sexta-feira manter as penas de dez e seis anos e três meses de prisão para Manuel Pinho e Ricardo Salgado, no âmbito do caso EDP.
De acordo com o acórdão, citado pela agência Lusa, ficou provado um pacto corruptivo entre o antigo ministro da Economia e o ex-banqueiro. O ex-ministro recebia mesadas de cerca de 15 mil euros, enquanto exercia funções no Governo de José Sócrates, para beneficiar o Grupo Espírito Santo.
Os juízes desembargadores mantiveram ainda a suspensão da pena de quatro anos e oito meses aplicada a Alexandra Pinho, mulher de Manuel Pinho.
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Ricardo Salgado continua, assim, condenado a uma pena de seis anos e três meses de prisão e Manuel Pinho a 10 anos de prisão.