Quando, em 1957, Giuseppe Tomasi di Lampedusa escreveu o postumamente publicado Il Gattopardo (O Leopardo), certamente estaria longe de imaginar que uma frase atribuída ao personagem Tancredi Falconeri, mais tarde imortalizada no cinema pelo célebre Alain Delon, teria aplicação em tantos campos distintos. Numa conversa entre Tancredi e o seu tio, o Príncipe de Salina, face ao conservadorismo e passividade deste perante a iminência do Risorgimento italiano, o jovem, pragmaticamente, dispara a imortal frase: “É preciso que tudo mude, para que tudo fique na mesma”. Esta cena histórica e eterna da literatura e da sétima arte deu origem ao curioso conceito de “gatopardismo”, definível como uma estratégia para promover ou encetar mudanças aparentes tendo em vista manter um determinado status quo.
Por estes dias, em que a campanha eleitoral arrancou a todo o vapor, tardou até que a Justiça finalmente entrasse nos discursos dos principais candidatos às próximas eleições legislativas. Pelo andamento das coisas, seríamos todos levados a pensar que esta não constitui uma prioridade do Estado. Tardou, mas chegou. Não para afirmar boa parte das necessidades há muito sinalizadas, mas, infelizmente, para repetir as mesmas ideias de sempre e sempre numa base de superficialidade. Duas ou três pinceladas em torno dos temas habituais e está tratado o assunto da justiça. Críticas à celeridade e aos megaprocessos, umas referências à jurisdição administrativa e fiscal, reflexões sobre a estrutura e papel do Ministério Público, sobre o valor das custas judiciais ou sobre as manobras dilatórias e está tudo dito.
Mas a questão do que “reformar” na justiça não se pode ficar pelas generalidades de circunstância. O país político, mesmo após meio século democracia e plena integração ao nível das instituições democráticas europeias e mundiais, e no âmbito de um quadro constitucional estabilizado, persiste numa retórica de necessidade de “reforma da justiça” essencialmente centrada em torno de casos pontuais ou mediáticos, sem que os mesmos espelhem, minimamente, a realidade da generalidade dos milhares de casos tratados nos tribunais portugueses numa base diária. Na verdade, e ao invés de se pensar de forma a que as leis perdurem, a jurisprudência se estabilize e a segurança jurídica se estabeleça na nossa organização societária comum, assistimos há décadas a uma voracidade legislativa digna de registo. A título de exemplo, o Código de Processo Penal data de 1987 e vai na sua 49ª versão. O Código Penal data de 1995 e já vai na sua 64ª versão. O “Novo” Código de Processo Civil, por sua vez, data de 2013 e já alcançou em 2024 a sua 15ª versão. Estes são apenas alguns, embora estruturais, exemplos de como o setor da justiça, ao contrário do que muitos pretendem fazer crer, está constantemente a ser “intervencionado”, sob a égide de sucessivos parlamentos e de sucessivos governos.
Ainda assim, oportunidades para se ir mais longe nas “reformas” implementadas não têm faltado. Sem ser necessário recuar muitos anos, entre 2016 e 2017, foram lançadas as bases de um “Pacto para a Justiça”, promovendo-se o diálogo entre vários atores do setor, convocando-se juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e solicitadores, para, em conjunto, definirem linhas de uma reforma estruturante. Contudo, convém lembrar que, no final do dia, não cabe aos tribunais nem a qualquer daqueles atores a competência para legislar, sendo certo que a mobilização para o “pacto”, e apesar das reflexões promovidas, não se afigurou suficiente para que se alcançasse um consenso entre partidos. Posteriormente, assistiram-se a outras iniciativas de fundo, designadamente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, com o lançamento, em 2023, da “Agenda da Reforma da Justiça”, lançada em plena Assembleia da República, e que reuniu contributos de diversas personalidades que investigaram, refletiram e efetuaram propostas estratégicas para a melhoria do sistema judicial.
Apesar dessas sucessivas tentativas para o aprofundamento dos temas estruturais da justiça e da constatação de que em Portugal se legisla sobre a mesma a uma velocidade vertiginosa sem que a tão clamada “reforma” alguma vez se alcance, outra não pode ser a conclusão de que a “reforma da justiça” não é senão uma bandeira que muitos agitam, mas em que ninguém tem efetiva vontade mergulhar com seriedade e efeitos práticos.
Será isso um sinal de que o sistema respira saúde e não precisa de alterações? Não. Há sem dúvida um conjunto de setores da área da justiça em que a celeridade de procedimentos ou a reponderação de aspetos organizativos carece de intervenção e uma reforma merece ser ponderada. Contudo, haverá verdadeira necessidade de se produzir uma reforma que atinja as fundações constitucionais? Cremos que também não. O sistema constitucional português está fundado em bases sólidas e progressistas, que o colocam ao lado das democracias modernas, assentes no Estado de Direito e na defesa dos Direitos Humanos, com um robusto cardápio de Direitos Fundamentais, com a consagração do princípio da separação de poderes e estruturado, além do mais, na vontade popular expressa em eleições livres e universais e no estabelecimento de tribunais independentes.
Todavia, e ainda assim, o discurso de crise na justiça portuguesa ou de necessidade de reformas estruturais não deixa de fazer o seu caminho, a maior parte das vezes sem estar assente num real conhecimento do sistema e dos seus reais e pontuais problemas.
Como tópicos para uma discussão séria sobre a problemática da justiça em Portugal, importa encarar de frente a questão do combate à corrupção, designadamente na vertente preventiva e investigatória. Importa gerar legislação tendo em vista a simplificação e agilização processuais, sem prejuízo dos direitos dos intervenientes. Importa também não continuar a escamotear a gritante falta de meios e condições dos tribunais, a falta de material e recursos informáticos adequados, a falta de assessorias quer na jurisdição comum, quer na jurisdição administrativa e fiscal. Cumpre enfrentar o problema da falta de magistrados e funcionários, ponto em que qualquer solução que se empreenda nunca produz efeitos no curto prazo, podendo o sistema colapsar se a intervenção não for rápida e suficiente. Importa que se apresentem medidas concretas, e não apenas genéricas, quanto ao modo como se pretende promover o acesso ao direito e em que termos se pretende baixar as custas processuais, relembrando que o Regulamento das Custas Processuais remonta a 2008 e já sofreu 22 alterações sem que o legislador tenha ido nesse sentido. Do mesmo modo, face aos avanços avassaladores do extremismo na Europa e no Mundo, teria sido interessante ouvir os responsáveis políticos a apresentarem ideias concretas tendo em vista o reforço da independência judicial, de resto, em linha com países como a Suécia, onde, na semana que passou, o Ministro da Justiça, Gunnar Strömmer, explicou como o exemplo de outros países, em que líderes políticos tentaram influenciar os tribunais, o levou a apresentar propostas de lei para reforço da democracia e da independência do judiciário.
No entanto, sem prejuízo dos sound bites habituais, constatou-se que os principais partidos, designadamente os do “arco da governação”, voltaram a afirmar uma “disponibilidade para consensos que permitam reformar a justiça”. Essa disponibilidade não corresponde necessariamente a uma concreta e imediata vontade política, assente num plano já pensado e traçado. Contudo, convém lembrar, uma vez mais, que as “reformas” da justiça não são assunto que se possa tratar à porta fechada, sem os inputs de quem tem experiência, de quem estuda e de quem trabalha no sistema numa base diária. A questão é de Estado e não se coaduna com uma “reforma de bastidores” que, de resto, nos aproximaria irremediavelmente do mau exemplo Húngaro, onde esse procedimento foi seguido, levando o povo à rua no passado dia 22 de fevereiro em defesa da independência dos seus tribunais.
Entretanto, o que os dados demonstram é que, mesmo mudando a lei em catadupa, tudo permanece na mesma. A tão reclamada “reforma da justiça” continua sem uma definição concreta e percetível. Transformou-se ora numa expressão vazia de conteúdo, ora numa arma de arremesso. Os esforços de quem tenta contribuir para essa definição continuam a ser ignorados, ao mesmo tempo que a discussão pública se mantém na superficialidade e na inércia da conversa do costume. Que a nova legislatura constitua uma renovada oportunidade para que se mude alguma coisa, sem que tudo fique na mesma.
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