Portugal, um dos primeiros signatários do Acordo de Paris, assumiu o compromisso de atingir a neutralidade carbónica até 2050. Apesar de avanços significativos no desempenho ambiental do nosso país (o 15º melhor entre 29 países, de acordo com o “Índice de Transição Verde” realizado pela Oliver Wyman), e das melhorias registadas na produção de eletricidade renovável, que já representa mais de 60% do total gerado a nível nacional, a nossa trajetória ainda está longe de garantir o cumprimento pleno dessas metas.

Do lado do investimento, apoios como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) têm sido fundamentais, mas a execução desses fundos nem sempre é célere ou eficaz, enfrentando muitas vezes entraves administrativos, lacunas de planeamento ou mesmo escassez de mão de obra especializada para setores-chave da economia verde.

No plano internacional, o cenário permanece igualmente desafiante: a decisão de Donald Trump de retirar os EUA — o segundo maior emissor de gases com efeito de estufa — do Acordo de Paris pela segunda vez, aumentou a pressão sobre os esforços climáticos globais.

Neste contexto, cabe muitas vezes às instituições, públicas e privadas, tomar a iniciativa e demonstrar, na prática, que esta transformação é mais tangível do que se possa pensar – hoje. No SEA LIFE Porto, por exemplo, alcançámos recentemente a meta de assegurar a operacionalização de todo o aquário 100% a partir de energias verdes certificadas. Sendo uma infraestrutura com exigências energéticas contínuas e críticas ao bem-estar animal, este passo, mais do que logístico, assume um caráter simbólico, provando que é possível evoluir para um modelo sustentável mesmo em contextos complexos.

Mas mais do que vontade e investimento, este processo exige confiança. A esse nível, destaca-se também a importância vital das entidades reguladoras independentes e dos sistemas de certificação, enquanto promotores de uma transição energética justa, viável e sustentável. Ao assegurarem o cumprimento de padrões rigorosos, a transparência nos mercados energéticos e a proteção do interesse público, estas entidades assumem-se como ferramentas de confiança que combatem o greenwashing, promovem verdadeiramente a sustentabilidade ambiental e escolhas informadas e conscientes.

Quando falamos de transição energética, é preciso considerar que nem todas as soluções são isentas de risco. A expansão das renováveis exige uma visão clara e integrada, de longo prazo. A sua implementação deve ser feita com responsabilidade, avaliando os impactos sobre a biodiversidade, os ecossistemas e as comunidades locais, promovendo um modelo justo, participativo e equilibrado. Do lado das organizações, importa investir ativamente em conhecimento para adotar, de forma sustentada e inovadora, medidas integradas que assegurem a sustentabilidade ambiental, a par da eficiência operacional, no longo prazo.

A oportunidade reside em criar uma economia verde e resiliente, onde inovação, sustentabilidade e coesão social caminhem lado a lado. Para isso, é necessário investir ativamente na literacia climática, na educação ambiental, no reforço das competências verdes e na criação de condições para que empresas, autarquias e cidadãos possam continuar a ser agentes ativos na transformação que todos desejamos.

Palavras-chave:

Pensemos em duas simples cadeiras, brancas e de plástico, lado a lado. Nem são exatamente iguais. Na maior parte dos casos, pertencem a cafés ou restaurantes populares, pelo menos no contexto português e no sul e centro-americano. Mas, quando colocadas estrategicamente à frente de um grande estádio de futebol que também pode ser usado para os maiores concertos, as cadeiras ganham outro significado: vem aí um concerto de Bad Bunny.

O porto-riquenho Benito Antonio Martinez Ocasio, conhecido como Bad Bunny, deixou os fãs em alvoroço no início desta semana, em vários países da Europa, depois de duas cadeiras terem sido colocadas à porta de vários estádios, como uma espécie de teaser, numa clara alusão ao seu mais recente álbum “Debí Tirar Más Fotos”. Depois de muita especulação entre os fãs e de várias notícias nos meios de comunicação social sobre a simbologia das cadeiras, Bad Bunny acabou por confirmar a sua nova digressão mundial nas redes sociais.

As cadeiras brancas, até aqui símbolo de uma certa simplicidade, são agora símbolo da sua nova tour – uma assinatura visual que traduz a capacidade do artista em transformar algo banal num ícone e de anunciar algo há muito esperado pelos seus fãs mais fiéis, sem necessitar de fazer nada muito exuberante. Duas cadeiras brancas de plástico e o mundo está pronto para o ver.

No universo de Bad Bunny, estas cadeiras significam popularidade, simplicidade e diversão com amigos e família, mas também a diversidade, que se reflete na sua própria música, que mistura sonoridades tradicionais do seu país-natal e o reggaeton moderno. É também uma ode à nostalgia, às memórias criadas pelo tempo passado em família, à perda das ligações afetivas para quem sai da sua terra. Através das cadeiras brancas como símbolo, Bad Bunny procura reconectar-se consigo próprio e, ao fazê-lo, liga todos os seus fãs.

Num mercado onde os consumidores de música, outro entretenimento e de outros bens, são bombardeados diariamente com milhares de mensagens é importante que algumas marcas, se não todas, se esforcem para se distinguirem, nomeadamente através do uso de simbologia. Os símbolos, na forma de logotipos, cores, formas, sons ou referências conhecidas aplicadas a um determinado contexto (como as cadeiras), são um atalho mental. Quando vistos, levam imediatamente os consumidores a pensar numa determinada marca, sentindo com aquela uma proximidade e até familiaridade.

Todos conhecemos o swoosh da Nike, mesmo que a marca já não apareça escrita e sabemos que transmite energia e movimento, ou a maçã mordida da Apple, que transmite a ideia de tecnologia de ponta associada a um design moderno.

A simbologia não é decorativa nem secundária. Pode muito bem ser uma peça determinante na construção de marcas fortes e duradouras. É assim que as empresas comunicam com os seus públicos, criando laços fortes e um reconhecimento imediato. Agora, com licença, tenho que esperar sentada (numa cadeira de plástico, branca, que alegadamente foi desenhada por um mestre do design nos anos 1940) e esperar pela minha vez de comprar bilhetes para o concerto do próximo ano.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Já há Papa. Habemus. Rosto, idade, proveniência — sabe-se tudo de D. Prevost. Mas ainda não se sabe nada de Leão XIV, a não ser o belo nome e a bela veste. É um mistério, branco como o fumo que o revelou.

E ainda há qualquer coisa inocente naquela chaminé. Como se o mundo com os seus sete mil milhões de almas e dívidas e pecados e dívidas outra vez, continuasse imóvel, à espera de a ver fumegar. Como se da chaminé pudesse ter saído não apenas um nome, mas uma coisa de outra dimensão. Como se uma coluna de fumo dissesse mais do que todos os discursos e todas as eleições e todos os diagnósticos que os jornais fazem todas as manhãs.

Nesse instante parado, o mundo tornou-se um menino. Calções esfolados, joelhos encardidos. Diante de algo que não entende — sem respirar. Como se tivesse regressado a si mesmo. A um tempo de telhados, nuvens, salas de espera. O mundo é uma sala de espera. E nesse meneio de pálpebra, pairaríamos todos — um pouco acima do chão, nem tanto. O suficiente para que a realidade se desligasse e se visse a chaminé como ela é: um dedo de Deus a desenhar coisas no céu.

Quem sabe de chaminés são as crianças. É coisa muito sua de ver. Nos prédios, nas vivendas, nas fábricas — sobretudo estas. Cilindros cor de tangerina seca, impassíveis, solenes. Expelindo espirais de vapor. Poluindo o céu como se fosse um incenso sujo, cansado, operário. Como se aquilo fosse para durar muito. Talvez sempre.

É um estado de crença. A crença de que o fumo diz qualquer coisa. De que no silêncio mora uma palavra escondida. De que, na clausura, se fica mais disponível. E de que o Espírito Santo — seja ave, seja brisa, seja susto — ainda anda por aí. Invisível. Batendo as asas por dentro das nossas dúvidas.

No metro, duas flores da nossa mocidade — lindos, lindos e completamente perdidos — discutiam eleições com a paixão que só se dá aos ingénuos e aos canalhas. Ele: o voto branco conta. Ela: não. Ele insiste, bate com a mão no joelho: se todos votássemos em branco, tudo mudava, o sistema abanava, caía, ou pelo menos tremia. E ela, prática: não serve para nada. Pior — dizia —, algum bandido ainda lhe mete a mão e faz batota. Melhor votar no menos mau e ter esperança. Uma esperança morna, fugidia. Mas esperança, anda assim — de quem aguarda por alguma coisa.

Como aqueles homens vestidos de vermelho, lá dentro da grande Capela, em Roma. Cento e trinta e três velhos sentados. No esplendor da lentidão.

Dirigindo-se. Um. De. Cada. Vez. Até. À. Urna. Colocando. O. Papelinho. E. Depois. Regressando.

Ao. Lugar. Dando. Então. A. Vez. A. Outro. Como personagens de Oliveira: O Espelho Mágico ou então uma cerimónia que é o contrário do nosso tempo — O contrário desta cidade. Da internet e sua violência.

Fazem o quê? Pensam em quê? “Se todos votassem em branco, o sistema pelo menos tremia.” — anunciara o rapaz do metro. Se cada papel fosse um nada, seria um presente. Para que, na sua legitimidade divina, o Espírito confirmasse os receios de aldrabice que preocupavam a rapariga, fazendo batota sagrada. E se não fosse isso — se não houvesse batota sagrada — que fosse então, pelo menos, o limite secreto entre a graça e a vergonha, que evita o desastre; a batota é sempre nossa.

E os de cá de fora, ainda a ver aquele cano de ferro. Um tubo de oração. Um telescópio virado ao contrário. Uma coisa vertical e comovida lançando vapor para os céus.

A espera é o último dos ritos sagrados de um tempo esgotado. Um tempo descrente e abjecto, mas que ainda é capaz de parar diante de uma chaminé. Ou numa fila do posto dos Correios. Esperando com os olhos, como círios sem pressa. Numa tristeza barroca.

O mais espantoso e mais caótico é que mesmo os que já não crêem, façam tudo como se acreditassem. `E eis que a propósito de uma conduta em Roma, os comentadores põem-se a discutir gaivotas em telhados, como se fossem mães-de-santo a ler sinais. É como se voltássemos a ser filhos. Pequenos, disparatados. Olhando para cima à espera de que o céu diga qualquer coisa. Ou então o Papa.

O mundo continua a rezar. Só já não sabe que o está a fazer. A pós-modernidade não matou o sagrado — apenas o mascarou de opinião. E de fila dos Correios.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

A carne tem de se desfazer na boca. O molho de natas, guloso mas não enjoativo, tem que ter a consistência certa para cobrir o bife e agarrar-se às batatas fritas cortadas à mão. Reproduzir todos os dias, sem erros, a receita original de 1982, inspirada no bife à Marrare, é ponto assente no novo Café de São Bento em Cascais.

Quem conhece este clássico lisboeta, em frente à Assembleia da República, vai sentir-se em casa no restaurante no centro histórico de Cascais. Ainda à porta, o cerimonial (sem cerimónias) mantém-se: tocando à campainha, recebe-nos um dos elementos da equipa de sala, vestido com camisa branca, colete de xadrez e laço preto.

A receita original de 1982 mantém-se inalterada. Foto: Afonso Morais Pires

Também a decoração e os materiais replicam o original: madeira de mogno (e foram muitos metros) nas paredes e tetos, latão nos apliques dos candeeiros, veludo nos sofás, cabedal nas cadeiras, mármore Verde Guatemala nas mesas.

Miguel Garcia, o empresário à frente do Grupo São Bento, espera-nos na primeira sala e está visivelmente satisfeito com o resultado. Aponta para a cozinha aberta e o balcão de quatro lugares, uma diferença em relação a Lisboa. Aqui, diz, seria uma pena não aproveitar a luz natural que entra pelas janelas, iluminando a segunda sala. Em vez de pesados cortinados de veludo, optou-se por cortinas transparentes e a varanda foi transformada numa pequena esplanada, com 16 dos 50 lugares sentados.

Na ementa, “exatamente igual” à de Lisboa (preços incluídos), garante Miguel Garcia, os bifes estão em destaque. Antes, há outras coisas que vale a pena experimentar. Por exemplo, nas entradas, o steak tartare, feito com a mesma carne e servido com tostas (€15), ou “os tradicionais camarões al ajillo” (€14,50), com malagueta e alho, podem (e devem) ser partilhados.

O bife à Café de São Bento pode ser do lombo (200g/€30) ou da vazia (200g/€27) – em alternativa, servem também à portuguesa, com alho, louro e presunto, ou grelhado. Quem não quiser comer carne, tem bacalhau gratinado (€23) ou tarte mediterrânica (€20).

Uma antiga loja de instrumentos musicais deu lugar a um restaurante com luz natural e uma varanda com 16 lugares. Foto: Afonso Moreira Pires

Nas sobremesas destaca-se a tarte tatin, um clássico das brasseries parisienses, servida quente e acompanhada por um gelado de baunilha (€9), enquanto o abacaxi cortado finíssimo e com raspas de lima (€8) é ideal para ajudar à digestão da carne.

Para assinalar esta abertura em Cascais, e os 43 anos do Café de São Bento em Lisboa (será em junho), foi criado um vinho tinto em exclusivo para o restaurante, resultado de uma parceria com a Herdade Papa Leite. Deste reserva de 2021, feito com as castas Alicante Bouchet e Merlot, foram produzidas 600 garrafas.

Miguel Garcia trabalhou 22 anos na hotelaria (na parte de comidas e bebidas) antes de se dedicar à restauração. Em 2022, adquiriu o Café de São Bento e não mais parou. Em Cascais, onde há cada vez mais estrangeiros a morar, abriu o Bougain (em 2023), com um bonito jardim na Pérgula House, e o Corleone Ristorante Al Mare (2024), no hotel Villa Cascais, virado para a baía.

Ainda o ano de 2024 não tinha terminado, reabria o bar Snob, outro clássico lisboeta também conhecido pelo seu bife.

Muito em breve, estará a inaugurar um Bougain em Lisboa, na Avenida da Liberdade. Quanto ao Café de São Bento, haverá outro este ano, mas o proprietário prefere não revelar ainda a localização.

Café de São Bento Cascais > R. Alexandre Herculano, 71, Cascais > T. 96 487 1833 > seg-sex 12h-15h, 19h-23h, sáb-dom 12h30-24h > seg-sex ao almoço menu executivo (entrada e prato ou prato e sobremesa, e café, €27)

Abraço os meus filhos, com força. Aperto-os e beijo-os muitas vezes. Fingem que fogem. Riem-se enquanto lhes faço cócegas, pedem-me que os tape com os lençóis e que fique mais um pouco antes de ir dormir. Fico. Não me sai da cabeça a imagem de uma menina palestiniana que vi umas horas antes na internet. Os olhos encovados, os ossos espetando-se nos ombros. “Só queria que tudo voltasse a ser como antes”. Foi tudo o que tive coragem de a ouvir dizer. Ela terá mais ou menos a idade dos meus filhos e suporta horrores que eu nem consigo imaginar. Fome, sede, medo. Mas foi a mim que me falharam as forças para a ouvir falar. E agora cresce-me no peito um aperto, enquanto deito os meus filhos e penso em todas as crianças que em Gaza não têm a mesma sorte.

“A lista de Schindler” estreou quando eu era miúda. Nesse filme também havia uma menina. Estava vestida de vermelho, quando tudo à sua volta era a preto e branco. Schindler vê-a ao longe, cambaleante, com passos hesitantes de criança pequena, atravessando as ruas por onde os soldados nazis vão matando a tiro homens que passam, saqueando casas, atirando objetos pelas janelas. A menina caminha até entrar num prédio. Sobe as escadas, entra numa casa abandonada e esconde-se debaixo de uma cama. Vemos-lhe, então, a cara de frente e acreditamos que vai sobreviver. Mas o casaco vermelho identifica-a numa pilha de cadáveres, umas cenas mais à frente. A fuligem dos corpos judeus incinerados, acumulando-se sobre o seu carro, não era mais do que um incómodo para Schindler, até ele perceber que a menina estava entre os mortos.

Cresci a ouvir dizer que o “Davim” vinha de uma trisavó judia. E não sei se foi por isso, mas passei parte da adolescência a ler e a ver tudo o que era possível sobre o Holocausto. Nessa altura, as atrocidades nazis pareciam uma suspensão da humanidade, impossível de compreender. “Never again”, dizia-se. E os filmes mostravam como os bons combatiam os maus.

Percebi muito mais tarde que a maldade extrema do nazismo sobre os judeus não foi um episódio isolado de extermínio. Na verdade, foi uma prática reiteradamente usada por regimes colonialistas, nomeadamente no séc. XIX em África, enquanto Adolf Hitler era ainda uma criança. É uma prática de aniquilação que só é possível quando deixamos de ver o exterminado como humano. É, por isso, que a menina de casaco vermelho é tão importante para acordar Schindler do torpor moral que o deixava assistir quase sem reação à perseguição dos judeus. Ela força-o a entender que os perseguidos são humanos.

É por isso que, por todo o mundo ocidental, têm sido cada vez mais reprimidas as manifestações contra o genocídio em Gaza. Os que nos querem lembrar a humanidade dos palestinianos são amordaçados, detidos, afastados com canhões de água, acusados de antissemitismo.

Há, porém, nas fileiras dessas manifestações muitos judeus. Alguns deles são mesmo sobreviventes do Holocausto ou descendentes diretos de quem passou por esse horror.

Stephen Kapos é um deles. Tinha apenas sete anos quando a Alemanha nazi invadiu a Hungria em março de 1944. Em abril de 2024 fez um discurso no Hyde Park, em Londres, para falar de como os nazis deportaram 400 mil judeus para Auschwitz e dos seus 15 familiares, incluindo o seu pai, que passaram por campos de concentração. “Nós, judeus, que sobrevivemos a toda esta dor, mortes, humilhação e destruição, estamos contra a utilização da memória do Holocausto pelo Governo de Israel como cobertura e justificação para o genocídio em curso contra o povo palestiniano em Gaza e na Cisjordânia”, disse, então, perante uma multidão que o ouviu em silêncio e o aplaudiu entusiasticamente no fim.

Quase um ano depois, Stephen Kapos foi detido para interrogatório pela Polícia em Londres para ser ouvido por ter participado noutro protesto pela paz em Gaza. Apesar dos seus 87 anos e de andar titubeante apoiado numa bengala, Kapos foi acusado de tentar furar uma barreira policial. Mas será mais difícil acusá-lo a ele ou aos milhares que fazem parte da Jewish Voice for Peace de antissemitismo. E é também por isso que os que agora gritam “never again for anyone” são tão importantes.

“O que é um massacre?”, perguntou a minha filha, da primeira vez que viu um outdoor onde se apela ao “fim do massacre na Palestina”. Vacilei na resposta. Como é que se explica a maldade a quem ainda nunca a viu? Não sei há quanto tempo foi isso. Mas foi há demasiado. Porque, agora, quando passamos pelo cartaz, ela pergunta, ansiosa: “O massacre ainda não acabou?”.

Envergonha-me dizer-lhe que não, mas tenho ainda mais medo que vá acabar em breve da pior forma possível, quando vejo nas notícias que há um plano de ocupação total de Gaza por Israel.

A “solução final” que os aliados travaram na Segunda Guerra Mundial, avança agora perante a indiferença quase generalizada dos que assistem a um conflito que – quaisquer que sejam as razões invocadas de um e de outro lado – está na prática a deixar milhares de civis encurralados, sem acesso a água, nem comida, nem medicamentos ou qualquer tipo de ajuda. Empurrados para uma morte certa, cruel e silenciosa. Enquanto nós fingimos não ver.

Há perguntas que não se fazem, ensinam-nos quando ainda somos crianças e estamos a aprender as regras da boa convivência social. A Inteligência Artificial (IA) veio pôr fim a esta imposição, que quase nos cerceava a curiosidade quando éramos pequenos.

Em relação a esta gigante ferramenta que agora temos à disposição, quanto maior for o número de perguntas que lhe dirigirmos, mais corretamente ela nos responderá. E se tudo estiver apontado para a investigação científica, que é gerada a partir de questões e hipóteses, mais importante se torna a demanda de interrogações.

Normalmente, é nessa intensiva averiguação de hipóteses que os cientistas passam o seu tempo, fechados em laboratórios, numa constante sucessão de tentativa-erro. Este processo, indispensável para a credibilidade da investigação, pode demorar anos. Demora quase sempre muitos anos.

Foi o que aconteceu à equipa do bioquímico Tiago Costa, enquanto pesquisava acerca dos mecanismos que fazem com que as bactérias se tornem multirresistentes, coisa que complica a resposta dos antibióticos em caso de infeção por estes agentes patogénicos.

Como é possível?

Durante quase uma década, num dos laboratórios do prestigiado Imperial College, em Londres, vários cientistas se debruçaram sobre o ADN das bactérias, tentando descobrir como se dá a disseminação da resistência aos antibióticos. Note-se que este processo foi descoberto há 70 anos, mas ainda não existem detalhes moleculares sobre ele, apesar de haver, constantemente, especialistas em patogénese bacteriana a trabalharem para esse fim.

Os cientistas do Imperial College conseguiram, no entanto, perceber que há vírus que são vetores de transferência dessa resistência. Explicado por miúdos, nas palavras do investigador, quer dizer que “os vírus integram o DNA deles, injetam-no dentro de uma bactéria, através de uma cauda, roubam pedaços de DNA dessa bactéria e metem-no dentro da sua cápsula. Depois, libertam-nas e é assim que vão infetar”.

A questão adensou-se quando os cientistas detetaram que alguns destes vírus que entravam dentro das bactérias estavam incompletos, sem cauda, a parte fundamental para conseguirem injetar o DNA. E questionaram-se: “Como é possível?”

Não queremos ser spoilers, porque essa resposta consiste na grande descoberta a que chegou a equipa liderada pelo português Tiago Costa e o espanhol José Penadés, professor de microbiologia. Quando tinham o artigo em revisão para ser publicado na revista Cells (uma das três mais importantes desta área), em segredo, pois submeteram uma patente com a finalidade de proteger a descoberta, receberam outro desafio…

Resposta rápida

A Google contactou-os, pedindo ajuda para testar o Coscientist (em português deverá chamar-se cocientista), o sistema de Inteligência Artificial, baseado na plataforma Gemini, direcionado para a investigação científica. Além desta equipa, foram desafiadas mais duas, nos EUA, uma da Universidade de Stanford, outra da Houston Methodist.

A primeira pergunta que decidiram colocar ao sistema foi mais generalista. “O que está por trás do contacto de uma bactéria com outra? Como é que o processo de resistência é iniciado?” Passados dois dias, o sistema devolveu-lhes inúmeras hipóteses. Mesmo que se debruçassem apenas sobre as cinco primeiras, iriam demorar meses a validá-las em laboratório.

O sistema da Google vai revolucionar a forma como fazemos Ciência e provocar uma aceleração de descobertas impressionante

Tiago Costa, investigador do Imperial College

Foi aí que se lembraram de colocar ao Cocientist a mesma pergunta que haviam feito no início da investigação, há 10 anos, para ver até onde a IA conseguiria ir, numa espécie de tira-teimas homem-máquina.

“Desvende um mecanismo molecular específico e novo que explique como o mesmo cf-PICI [capsid-forming phage-inducible chromosomal islands] pode ser encontrado em diferentes espécies bacterianas” – foi isto que a equipa questionou, dando mais um parágrafo de enquadramento e 12 artigos para consulta.

Deixando-o a pensar em como é que o genoma de um vírus incompleto está disseminado em mais de 200 espécies de bactérias, foram todos de fim de semana. Mal sabiam que o descanso iria ser interrompido pela inesperada resposta, 48 horas depois.

Arma contra bactérias

Na sua primeira hipótese, o sistema mandava-os “investigar as interações entre os capsídeos cf-PICI e uma vasta gama de caudas de fagos auxiliares (ideias relacionadas com a interação de cauda larga, proteínas adaptadoras de cauda, ​​locais de ligação à cauda, ​​interações mediadas por capsídeos, etc.).”

Esta tinha sido exatamente a conclusão a que chegaram, depois de seguirem por muitos caminhos errados, ao longo de anos. O primeiro pensamento dos coordenadores levou-os a desconfiar de que a Google teria tido acesso aos seus computadores, já que tudo o resto estava no segredo dos deuses da Ciência. Afastada essa hipótese, tiveram de render-se às evidências: o Cocientist tinha “descoberto” que os vírus incompletos usavam caudas de outros vírus para criarem partículas híbridas, capazes de infetar.

“Esta descoberta é muito importante para o desenvolvimento da terapia fágica que aparece como uma alternativa aos antibióticos quando as bactérias se tornam resistentes. Como as matamos? Com estes vírus”, explica Tiago Costa. “Com esta arma”, prossegue o especialista, visivelmente entusiasmado com o tema, “conseguimos criar, através de biologia sintética, estes vírus híbridos para matar a bactéria específica que esteja a causar uma doença.”

Sem ter acesso a informação privilegiada, o sistema da Google o que faz é olhar para todas as publicações científicas disponíveis e gerar dezenas de hipóteses. Será este o caminho direto para o fecho de laboratórios de investigação? Irão os cientistas perder os seus empregos?

Tiago Costa descarta totalmente esses cenários. “As hipóteses que o sistema gera têm sempre de ser validadas em laboratório, fazendo experiências e tirando conclusões. A vantagem enorme é acelerar o processo, pôr-nos no caminho certo. Se se tratasse de uma corrida de 100 metros, o sistema estava a colocar-nos nos 30 metros.”

A poupança não é só de tempo, mas também de dinheiro, acredita o investigador português: “Isto vai revolucionar a forma como fazemos Ciência e provocar uma aceleração de descobertas impressionante.”

A pandemia silenciosa

Investigar acerca da resistência aos antibióticos é salvar vidas

A resistência antimicrobiana não é para brincadeiras. Ela acontece quando microrganismos infeciosos – bactérias, vírus, fungos e parasitas – desenvolvem resistência aos medicamentos, tornando os tratamentos de determinadas doenças ineficazes.

Dada a sua gravidade, é considerada uma pandemia silenciosa e tende a agravar-se por culpa do uso excessivo de antibióticos, não só na medicina como na agricultura. Neste momento, é um dos maiores desafios sanitários, pois representa uma ameaça real à saúde pública mundial.

A cada ano, 480 mil pessoas desenvolvem tuberculose resistente e este problema também está a afetar a luta global contra o HIV e a malária.

Segundo um relatório do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA, de 2019, as bactérias resistentes a medicamentos causaram pelo menos 1,27 milhões de mortes em todo o mundo, só nesse ano.

Bastaram 24 horas para o conclave maior e mais diverso da história eleger o sucessor de Francisco. E, ao ouvir-se o nome escolhido pelo novo papa também depressa se dissiparam as dúvidas: como Leão XIV, o cardeal americano-peruano Robert Francis Prevost, de 69 anos, aposta claramente num caminho de continuidade do seu antecessor, com foco na união, mas também com uma atenção especial à paz e, porventura, aos direitos dos trabalhadores
Numa instituição fortemente marcada por símbolos e encenações cuidadosas, apuradas ao longo de séculos, o nome que o Papa escolhe, após ser eleito, constitui, por si só, logo uma espécie de programa e dá indicações sobre a visão que pretende introduzir na sua liderança na Igreja católica. E ao escolher o nome de Leão, embora já usado anteriormente 13 vezes, Robert Francis Prevost, quis certamente homenagear Leão XIII, o último papa do século XIX e o primeiro do século XX, que teve um dos pontificados mais longos da história, e que deixou a sua marca com a encíclica Rerum Novarum (Sobre as coisas novas), considerada o fundamento da doutrina social da Igreja. 
A escolha de um cardeal de origem norte-americana com uma forte sensibilidade social lança também uma clara mensagem ao mundo, apenas quatro meses depois do segundo juramento de Donald Trump como presidente dos EUA. Embora nascidos no mesmo país, Leão XIV e Trump vão ser vistos como duas sensibilidades antagónicas, na forma de olhar para o mundo e até para a condição humana. E as diferenças, tal como acontecia com Francisco, deverão continuar em relação à questão ambiental e à defesa dos imigrantes.  

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Perder esta oportunidade é desperdiçar uma lição sobre o mundo. Jeff Wall – Time Stands Still. Fotografias, 1980-2023 é uma das mais vastas exposições realizadas até hoje sobre o trabalho de um nome “incontornável”, ou seja, fascinante e seminal, no panorama das artes visuais das últimas décadas.

São mais de 60 obras de um artista que, recorda o curador Sergio Mah (diretor-adjunto do MAAT), produziu “apenas” 200 obras, ao ritmo de uma ou duas por ano. Uma mostra em que as imagens falam do objeto, mas também da história da arte, dos artistas que influenciaram Wall, e que o próprio dissecou numa produção ensaística regular. Não é por acaso que o volume Jeff Wall, Escritos de Arte (Orfeu Negro, 334 págs.), agora lançado com 13 ensaios, compreendidos entre 1982 e 2010, e selecionados por Mah, é um grande compagnon de route para visitar o MAAT.

Deste poderoso universo visual do artista nascido em 1946, em Vancouver, Canadá, emanam cenas da vida quotidiana que potenciam enigmas, e panorâmicas das tensões e tragédias sociais contemporâneas que não precisam de legendas homéricas. É uma visão melancólica, ou enigmática, ou perturbadora, ou evocativa –, mas sempre distante de lógicas prontas-a-consumir.

A solidão, a pobreza, a alienação, a violência urbana, o abandono, a exclusão social? Sim, estão lá. Mas a sua obra não é da ordem do documental, nem o artista se esgota no gesto de carregar no obturador da câmara. Uma fotografia de Jeff Wall pode ser um acontecimento quotidiano fotografado em locais reais ou situações imaginárias construídas em estúdio. Ou, ainda, uma cena ou um cenário “testemunhados, imaginados ou inspirados” na pintura ou na literatura.

A exposição Jeff Wall – Time Stands Still. Fotografias, 1980-2023 pode ser visitada no MAAT até 1 de setembro. Foto: Luís Barra

Observem-se as duas caixas de luz de grande escala arrumadas no piso inferior do amplo hall do MAAT, exibindo cenas verdejantes e personagens em poses algo familiares. Em Drain (1989), duas meninas sob a ponte de pedra ancestral são apanhadas num movimento coreografado, um corpo que corre, uma saia que flutua, como os que se encontram na história da arte; em Tattoos and Shadows (2000), três figuras sentadas na relva fazem pensar no quadro Le Déjeuner sur l’Herbe de Monet.

Conta Sérgio Mah à VISÃO: “O artista estabelece relações muito evidentes com certos períodos da pintura do século XIX: Monet, Cézanne, Matisse… Mas Jeff Wall não tenta que a fotografia pareça pintura. Há um modelo de imagem no Ocidente, que vem desde o Renascimento italiano, que instituiu a forma como produzimos e olhamos para as imagens. E a ideia de quadro, tal como a do romance na literatura, é uma genealogia que se mantém ativa, ainda que ele entenda que esse modelo teve uma continuação profícua através da fotografia e de como ele a entende.”

Luz e sombras

As imagens wallianas são previamente pensadas, planeadas e depois executadas – à maneira de um pintor ou de um realizador de cinema. O próprio artista arruma-se assim: “A poética ou a ‘produtividade’ do meu trabalho tem-se centrado na encenação e na composição pictórica – aquilo a que chamo ‘cinematografia’. É isso, espero eu, que torna evidente que o tema foi subjetivizado, que foi retratado, reconfigurado de acordo com os meus sentimentos e literacia.”

Tattoos and Shadows, 2000. Foto: Jeff Wall

Sergio Mah sintetiza esta pulsão, liberta de estilo ou coerência: “Cada imagem é um microcosmos que está em construção.” E que organiza o olhar do observador – contando, igualmente, com a sua imaginação. Perante Listener (2015), impressionante imagem de um rapaz loiro, quase diáfano, ajoelhado no chão e de tronco nu, rodeado por seis homens em pose ameaçadora, o observador é sugado para dentro da cena, ao nível de quem está no chão; face à familiar After “Invisible Man” by Ralph Ellison, the Prologue (1990-2000), caixa de luz inspirada no romance de Ellison, representando um homem afro-americano sob um teto repleto de puxadas ilegais de lâmpadas, quem vê transfigura-se num voyeur daquela cave; em Flooded Grave (1998-2000), que exibe uma cova aberta alagada com espécies marinhas, o olhar procura explicações na paisagem do cemitério; face ao impressionante tríptico Actor in Two Roles (2020), com jardins invadidos por duplos, o curador sublinha o conceito da imagem como um ponto de partida.

After “Invisible Man” by Ralph Ellison, the Prologue, 1999-2000. Foto: Jeff Wall

Roda-se uma curva do MAAT e deparamo-nos com retratos lidos à luz da atualidade: The Giant (1992) representa a colossal figura de uma idosa nua, invisível aos que sobem na escadaria; Mask Maker (2015) mostra um rapaz de hoodie cor-de-rosa e calças esfiapadas, máscara no rosto. Conta Sérgio Mah que, aqui, a observação empírica também desempenhou um papel. Perto do lugar onde Jeff Wall trabalha, as ruas de Vancouver revelam a crise dos sem-abrigo e dos toxicodependentes por culpa do famigerado fentanil…

A grande beleza

Se o artista confirma a tese de quem lhe diz que a sua obra não configura uma visão otimista do mundo, antes preferindo as figuras trágicas da sociedade fragmentada pelo capitalismo – e que se integra numa genealogia de “dramatização” da representação da imagem ocidental que Sérgio Mah traça desde os gregos –, Jeff Wall também entende, refere o curador, que “as imagens devem ser ambíguas, incompletas, paradoxais”. As fotografias são belas, mas, avisa, esta é “uma beleza aporética, problemática, que promove uma sensação de harmonia dentro da imagem para chamar a atenção do espectador”.

Foto: Luís Barra

Jeff Wall começou a trabalhar com impressões em papel a partir de 1978. Mas as caixas retroiluminadas, 27 ao todo nesta exposição do MAAT, acentuam o fascínio cinematográfico e narrativo da obra. Jeff Wall adotou este método em 1978, depois de contemplar as pinturas de grandes mestres, como Vélazquez e Ticiano. “Usou um dispositivo que se tornara uma espécie de imagem de marca da sociedade capitalista”, lembra Mah. Um ecrã-anúncio de publicidade iluminado na rua, que lhe suscitou o que viria a ser a sua imagem de marca: as composições semelhantes a pinturas de óleo exibidas num suporte contemporâneo.

E por isso há um sobressalto de surpresa ao contemplar-se Recovery (2017-2018) no MAAT: grande pintura amarela com uma montagem fotográfica, que traduz uma experiência de perda de consciência vivida por um amigo. Por lá, descobrem-se referências familiares: a Matisse, Gauguin, Manet, ou a capas de groove rock dos anos 1960. Mas Jeff Wall diz que a pintura não é sua – pintou apenas o que outro imaginou.

Jeff Wall -Time Stands Still. Fotografias, 1980-2023 > MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia > Av. Brasília, Lisboa > T. 21 002 81 30 > até 1 set, qua-seg 10h-19h > €11

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Quando, em 1957, Giuseppe Tomasi di Lampedusa escreveu o postumamente publicado Il Gattopardo (O Leopardo), certamente estaria longe de imaginar que uma frase atribuída ao personagem Tancredi Falconeri, mais tarde imortalizada no cinema pelo célebre Alain Delon, teria aplicação em tantos campos distintos. Numa conversa entre Tancredi e o seu tio, o Príncipe de Salina, face ao conservadorismo e passividade deste perante a iminência do Risorgimento italiano, o jovem, pragmaticamente, dispara a imortal frase: “É preciso que tudo mude, para que tudo fique na mesma”. Esta cena histórica e eterna da literatura e da sétima arte deu origem ao curioso conceito de “gatopardismo”, definível como uma estratégia para promover ou encetar mudanças aparentes tendo em vista manter um determinado status quo.

Por estes dias, em que a campanha eleitoral arrancou a todo o vapor, tardou até que a Justiça finalmente entrasse nos discursos dos principais candidatos às próximas eleições legislativas. Pelo andamento das coisas, seríamos todos levados a pensar que esta não constitui uma prioridade do Estado. Tardou, mas chegou. Não para afirmar boa parte das necessidades há muito sinalizadas, mas, infelizmente, para repetir as mesmas ideias de sempre e sempre numa base de superficialidade. Duas ou três pinceladas em torno dos temas habituais e está tratado o assunto da justiça. Críticas à celeridade e aos megaprocessos, umas referências à jurisdição administrativa e fiscal, reflexões sobre a estrutura e papel do Ministério Público, sobre o valor das custas judiciais ou sobre as manobras dilatórias e está tudo dito.

Mas a questão do que “reformar” na justiça não se pode ficar pelas generalidades de circunstância. O país político, mesmo após meio século democracia e plena integração ao nível das instituições democráticas europeias e mundiais, e no âmbito de um quadro constitucional estabilizado, persiste numa retórica de necessidade de “reforma da justiça” essencialmente centrada em torno de casos pontuais ou mediáticos, sem que os mesmos espelhem, minimamente, a realidade da generalidade dos milhares de casos tratados nos tribunais portugueses numa base diária. Na verdade, e ao invés de se pensar de forma a que as leis perdurem, a jurisprudência se estabilize e a segurança jurídica se estabeleça na nossa organização societária comum, assistimos há décadas a uma voracidade legislativa digna de registo. A título de exemplo, o Código de Processo Penal data de 1987 e vai na sua 49ª versão. O Código Penal data de 1995 e já vai na sua 64ª versão. O “Novo” Código de Processo Civil, por sua vez, data de 2013 e já alcançou em 2024 a sua 15ª versão. Estes são apenas alguns, embora estruturais, exemplos de como o setor da justiça, ao contrário do que muitos pretendem fazer crer, está constantemente a ser “intervencionado”, sob a égide de sucessivos parlamentos e de sucessivos governos.

Ainda assim, oportunidades para se ir mais longe nas “reformas” implementadas não têm faltado. Sem ser necessário recuar muitos anos, entre 2016 e 2017, foram lançadas as bases de um “Pacto para a Justiça”, promovendo-se o diálogo entre vários atores do setor, convocando-se juízes, magistrados do Ministério Público, advogados e solicitadores, para, em conjunto, definirem linhas de uma reforma estruturante. Contudo, convém lembrar que, no final do dia, não cabe aos tribunais nem a qualquer daqueles atores a competência para legislar, sendo certo que a mobilização para o “pacto”, e apesar das reflexões promovidas, não se afigurou suficiente para que se alcançasse um consenso entre partidos. Posteriormente, assistiram-se a outras iniciativas de fundo, designadamente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, com o lançamento, em 2023, da “Agenda da Reforma da Justiça”, lançada em plena Assembleia da República, e que reuniu contributos de diversas personalidades que investigaram, refletiram e efetuaram propostas estratégicas para a melhoria do sistema judicial.

Apesar dessas sucessivas tentativas para o aprofundamento dos temas estruturais da justiça e da constatação de que em Portugal se legisla sobre a mesma a uma velocidade vertiginosa sem que a tão clamada “reforma” alguma vez se alcance, outra não pode ser a conclusão de que a “reforma da justiça” não é senão uma bandeira que muitos agitam, mas em que ninguém tem efetiva vontade mergulhar com seriedade e efeitos práticos.

Será isso um sinal de que o sistema respira saúde e não precisa de alterações? Não. Há sem dúvida um conjunto de setores da área da justiça em que a celeridade de procedimentos ou a reponderação de aspetos organizativos carece de intervenção e uma reforma merece ser ponderada. Contudo, haverá verdadeira necessidade de se produzir uma reforma que atinja as fundações constitucionais? Cremos que também não. O sistema constitucional português está fundado em bases sólidas e progressistas, que o colocam ao lado das democracias modernas, assentes no Estado de Direito e na defesa dos Direitos Humanos, com um robusto cardápio de Direitos Fundamentais, com a consagração do princípio da separação de poderes e estruturado, além do mais, na vontade popular expressa em eleições livres e universais e no estabelecimento de tribunais independentes.

Todavia, e ainda assim, o discurso de crise na justiça portuguesa ou de necessidade de reformas estruturais não deixa de fazer o seu caminho, a maior parte das vezes sem estar assente num real conhecimento do sistema e dos seus reais e pontuais problemas.

Como tópicos para uma discussão séria sobre a problemática da justiça em Portugal, importa encarar de frente a questão do combate à corrupção, designadamente na vertente preventiva e investigatória. Importa gerar legislação tendo em vista a simplificação e agilização processuais, sem prejuízo dos direitos dos intervenientes. Importa também não continuar a escamotear a gritante falta de meios e condições dos tribunais, a falta de material e recursos informáticos adequados, a falta de assessorias quer na jurisdição comum, quer na jurisdição administrativa e fiscal. Cumpre enfrentar o problema da falta de magistrados e funcionários, ponto em que qualquer solução que se empreenda nunca produz efeitos no curto prazo, podendo o sistema colapsar se a intervenção não for rápida e suficiente. Importa que se apresentem medidas concretas, e não apenas genéricas, quanto ao modo como se pretende promover o acesso ao direito e em que termos se pretende baixar as custas processuais, relembrando que o Regulamento das Custas Processuais remonta a 2008 e já sofreu 22 alterações sem que o legislador tenha ido nesse sentido. Do mesmo modo, face aos avanços avassaladores do extremismo na Europa e no Mundo, teria sido interessante ouvir os responsáveis políticos a apresentarem ideias concretas tendo em vista o reforço da independência judicial, de resto, em linha com países como a Suécia, onde, na semana que passou, o Ministro da Justiça, Gunnar Strömmer, explicou como o exemplo de outros países, em que líderes políticos tentaram influenciar os tribunais, o levou a apresentar propostas de lei para reforço da democracia e da independência do judiciário.

No entanto, sem prejuízo dos sound bites habituais, constatou-se que os principais partidos, designadamente os do “arco da governação”, voltaram a afirmar uma “disponibilidade para consensos que permitam reformar a justiça”. Essa disponibilidade não corresponde necessariamente a uma concreta e imediata vontade política, assente num plano já pensado e traçado. Contudo, convém lembrar, uma vez mais, que as “reformas” da justiça não são assunto que se possa tratar à porta fechada, sem os inputs de quem tem experiência, de quem estuda e de quem trabalha no sistema numa base diária. A questão é de Estado e não se coaduna com uma “reforma de bastidores” que, de resto, nos aproximaria irremediavelmente do mau exemplo Húngaro, onde esse procedimento foi seguido, levando o povo à rua no passado dia 22 de fevereiro em defesa da independência dos seus tribunais.

Entretanto, o que os dados demonstram é que, mesmo mudando a lei em catadupa, tudo permanece na mesma. A tão reclamada “reforma da justiça” continua sem uma definição concreta e percetível. Transformou-se ora numa expressão vazia de conteúdo, ora numa arma de arremesso. Os esforços de quem tenta contribuir para essa definição continuam a ser ignorados, ao mesmo tempo que a discussão pública se mantém na superficialidade e na inércia da conversa do costume. Que a nova legislatura constitua uma renovada oportunidade para que se mude alguma coisa, sem que tudo fique na mesma.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:

Todos nós precisamos de ajuda e protecção.

Uma das responsabilidades mais importantes atribuída, pelos cidadãos, ao Estado e aos governos é proteger. Proteger as pessoas, as famílias e o seu meio ambiente. Proteger deveria implicar que o Estado e os governos se informassem, consultassem, negociassem consensos, legislassem com seriedade, competência e celeridade, regulamentassem, implementassem, controlassem, inspecionassem efetivamente, avaliassem e decidissem proteger melhor.

Consultar e negociar consensos, por exemplo, devia levar a criar mecanismos para ouvir e falar com todas as pessoas, com todas as famílias, com os cidadãos, particularmente com aqueles que não estão organizados, nem têm lóbis, como é o caso da grande maioria das pessoas: as crianças e os jovens, as mulheres, os homens, os séniores, os doentes, os presidiários, etc.

Os cidadãos, as crianças, os jovens e as mulheres, os trabalhadores e os empreendedores não sentem que vivem numa sociedade onde o Estado e os governos os protegem.

As pessoas vivem com receio e angustiadas.

Uma outra obrigação atribuída, pelos cidadãos, ao Estado e aos governos é servir. Servir as pessoas, individualmente, os cidadãos, as famílias e os diferentes grupos que constituem a sociedade. No entanto os governos não ouvem nem veem. O Estado e os seus serviços públicos estão muito longe, estão separados da sociedade. O descontentamento com a não resposta dos governos e do Estado é estrutural.

Não só o Estado e os governos falham no cumprimento das suas atribuições mais básicas, como os cidadãos, as pessoas e a sociedade não dispõem de mecanismos eficazes para intervir junto do Estado e dos governos. O sistema só funciona de cima para baixo – o estado e os governos afastaram os cidadãos e estes retraem-se.

A qualidade da democracia depende (da qualidade) da participação dos cidadãos na gestão e na vida do país.

Em período eleitoral o isolamento e a não resposta do Estado e dos governos, assim como a desilusão e o cansaço dos cidadãos, parecem mais evidentes. Os candidatos, nomeados pelas suas organizações, fazem declarações, discutem e debatem entre si tentando cada um demonstrar ser o mais hábil, o mais inteligente, o mais perspicaz, o mais incisivo, o mais convincente, sorridente e simpático. Ao mesmo tempo cada um tenta denegrir, rebaixar e humilhar todos os outros. Nada disto é particularmente interessante e deprime-nos.

A democracia morre quando o cidadão não faz nada por ela, nem com ela.

Ninguém fala ou ouve as pessoas, os cidadãos e as famílias. E porque o fariam? Independentemente do que cada um vai fazer durante os próximos quatro anos, os membros dos governos e da Assembleia da República são inimputáveis, a não ser em casos de polícia.

A democracia morre, quando o cidadão a deixa morrer e se entrega à ditadura.

A inação, a frustração, a angústia e a raiva contidas fragilizam o nosso sistema imunitário e, a prazo, deterioram, irremediavelmente, a nossa saúde.

No entanto, em democracia tudo é possível. Os cidadãos podem dar mais qualidade à democracia. As pessoas, as famílias, todos os cidadãos podem, por exemplo, decidir ser mais abertos e intervenientes nos seus locais de trabalho, onde vivem e onde estudam. Nada os impede de tomarem a iniciativa e criarem uma sociedade mais humanista, onde todas as pessoas se sintam bem, onde os pais tenham tempo e as condições de vida que lhes permitam estar e brincar com as suas crianças, acompanhar os adolescentes. Precisamos de falar uns com os outros e de assumir as nossas responsabilidades como seres humanos e como cidadãos. Votar, uma vez de quatro em quatro anos, não chega.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.