Na Europa do século XXI, as trincheiras ideológicas já não se cavam nas ruas, mas sim nas redes sociais, nos grupos de Telegram, nos fóruns subterrâneos da internet e nos metadados que determinam quem vê o quê, quando e de que forma. Se noutros tempos o radicalismo político alimentava-se de panfletos, comícios ou emissões de rádio clandestinas, hoje a extrema-direita (e, em menor escala, a extrema-esquerda) nutre-se de algoritmos, plataformas digitais e inteligência artificial. Estamos perante uma transformação estrutural do espaço político, onde a tecnologia deixou de ser uma ferramenta neutra de informação para se tornar um instrumento de radicalização, manipulação e conquista de poder.
Uma nova gramática da propaganda
Na era digital, o discurso extremista não é apenas visceral — é visual, viral e altamente partilhável. O crescimento eleitoral de partidos como o Rassemblement National (França), AfD (Alemanha), Fratelli d’Italia (Itália) ou Vox (Espanha) está intrinsecamente ligado à sua capacidade de dominar a linguagem das redes sociais: memes provocadores, vídeos com bandas sonoras épicas, reels com frases curtas e contundentes, transmissões ao vivo com uma estética “caseira” que reforça a ilusão de autenticidade.
A AfD alemã é um caso paradigmático: enquanto os partidos tradicionais publicam comunicados institucionais e discursos formais, a AfD aposta em vídeos no TikTok com confrontos encenados entre deputados e jornalistas, provocações em eventos locais ou teorias da conspiração envoltas em sarcasmo. O resultado? É o partido com maior envolvimento nas redes sociais na Alemanha.
Inteligência artificial ao serviço da desinformação
A utilização de inteligência artificial generativa por forças extremistas europeias é a nova fronteira da manipulação. Em 2024, durante a campanha para as eleições europeias, circularam vídeos deepfake de Ursula von der Leyen a defender alegadamente o “extermínio da identidade europeia” ou de Emmanuel Macron a anunciar “a entrega das escolas a organizações islâmicas”. Nenhum desses conteúdos era verdadeiro, mas foram vistos por milhões antes que qualquer desmentido fosse possível.
Contrariamente ao que se julga, não são apenas entidades estatais estrangeiras a produzir este tipo de material. Muitos partidos extremistas e os seus ecossistemas digitais utilizam ferramentas de IA open source, como o ElevenLabs, o Sora ou tecnologias de clonagem de voz, que permitem criar estes conteúdos com baixos custos e elevado impacto. O objetivo não é tanto convencer, mas sim gerar dúvida, poluir o espaço informativo e normalizar a mentira.
Targeting político: a arma invisível da polarização
O que começou com o escândalo da Cambridge Analytica tornou-se uma prática generalizada. Com acesso a bases de dados comerciais e a sistemas de anúncios altamente personalizados, os partidos extremistas conseguem mapear com precisão quase cirúrgica os medos, frustrações e ressentimentos da população. A mensagem que chega a um jovem desempregado no interior francês não é a mesma que se dirige a um pequeno empresário italiano ou a um agricultor alemão preocupado com a transição ecológica.
Mais do que fazer política, estes partidos praticam engenharia emocional de massas. Cada anúncio é calibrado, cada vídeo otimizado para provocar reações, cada publicação é parte de um processo gradual de radicalização. A extrema-direita, em particular, domina esta lógica com uma eficácia quase empresarial.
Plataformas alternativas e ecossistemas de ódio
Expulsos ou desmonetizados das plataformas tradicionais, os extremistas digitais europeus criaram os seus próprios canais em Telegram, Rumble, Odysee, Gab ou Discord. Nestes espaços, onde a moderação é quase inexistente, proliferam o reforço grupal, a desumanização do adversário e a disseminação de narrativas conspiratórias.
Um exemplo flagrante é o canal de Telegram associado ao movimento identitário Identitäre Bewegung, onde circulam vídeos que apelam ao “regresso da Europa aos europeus”, listas (muitas vezes falsas) de migrantes acusados de crimes, incitamentos à mobilização física e até instruções para “agir contra jornalistas traidores”. Estes espaços funcionam como incubadoras ideológicas, com percursos progressivos de radicalização até ao envolvimento político ou activismo extremista.
Financiamento opaco e tecnologias evasivas
Com os sistemas bancários tradicionais a bloquear as suas operações, muitos destes grupos recorrem a criptomoedas e a serviços financeiros alternativos. Uma investigação do EU DisinfoLab ao portal “Voice of Europe” revelou como esta plataforma, ligada a oligarcas russos, canalizava milhões de euros para partidos extremistas europeus — incluindo a AfD (Alemanha), o FPO (Áustria) e o Vlaams Belang (Bélgica). Tudo isto com total opacidade e anonimato, garantidos pelas ferramentas digitais.
Paralelamente, utilizam VPNs, aplicações de mensagens efémeras e fóruns fechados para escapar ao escrutínio das autoridades. Em alguns casos, recorrem mesmo a hackers ideologicamente alinhados para campanhas de doxxing, sabotagem digital ou ataques a instituições democráticas.
Uma resposta institucional tímida e fragmentada
Os Estados europeus começam, lentamente, a reconhecer esta ameaça — mas as respostas são, ainda, tímidas, reactivas e descoordenadas. A aprovação do Digital Services Act (DSA) pela União Europeia foi um avanço importante, mas está longe de ser suficiente. As plataformas resistem à moderação, receando acusações de censura, e os partidos extremistas reinventam-se com mais rapidez do que os reguladores conseguem acompanhar.
Falta, sobretudo, uma visão estratégica clara de que estamos perante uma guerra política no campo digital. Não se trata apenas de conteúdos problemáticos ou de fake news — trata-se da reconfiguração do espaço público europeu sob a lógica do extremismo algorítmico.
Num contexto de incerteza económica, medo em torno das migrações, choques culturais e desconfiança nas elites, a tecnologia tornou-se a arma perfeita dos extremistas: acessível, eficaz, omnipresente e emocionalmente poderosa.
Se as forças democráticas não conseguirem ocupar este mesmo terreno — com narrativas fortes, campanhas inteligentes e presença digital consistente — perderão a batalha, não só nos ecrãs, mas também nas urnas.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.