O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, 77 anos, habituou-nos a trabalhos fotográficos únicos e monumentais. Mal terminou Genesis, um projeto de oito anos em que documentou o planeta intocado (e que a VISÃO publicou em fascículos), mergulhou na Amazónia, onde tinha estado pela primeira vez ainda na década de 1980. O resultado das 48 viagens – será mais rigoroso falar em “expedições” – está reunido num livro e numa majestosa exposição que inaugurou a 20 de maio na Philharmonie de Paris, onde pode ser vista até 31 de outubro. A mostra, comissariada pela sua mulher, Lélia Salgado (que desta vez o acompanhou em algumas viagens), seguirá para Londres, Roma, São Paulo e Rio de Janeiro. Sebastião Salgado gostaria muito de a trazer a Portugal, e está a trabalhar nisso. A partir do seu escritório em Paris, o fotógrafo respondeu, via Zoom, às perguntas da VISÃO. “Estou satisfeito por as coisas irem direitinhas, mas triste com essa história da Covid, porque a gente não viaja mais. Ficou a vida meio sem perspetiva, né? Mas estamos aí!”

Quando surgiu a ideia de fazer um livro e uma exposição sobre a Amazónia?
Para o Genesis, trabalhei muito na Amazónia. Já lá tinha estado antes e constatei que a situação não era mais a mesma: o ecossistema estava realmente em perigo e as tribos estavam ficando expostas. Então, mal terminei a montagem de Genesis no Rio de Janeiro, em maio de 2013, voei para a Amazónia. Este é um trabalho que fiz durante sete anos, entre 2013 e o final de 2019. A Amazónia está muito ameaçada. O resultado é um livro grande, com mais de 500 páginas, editado pela Taschen; um segundo livro, mais pequeno, também da Taschen; e uma exposição. No total, fiz cerca de 48 viagens à Amazónia. Nos últimos sete anos, passei a maioria do meu tempo lá. Entreguei-me à Amazónia. Vivi com 12 tribos indígenas e tirei muitas fotografias aéreas, principalmente com o Exército brasileiro. Isso permitiu-me fazer uma outra representação da Amazónia. 

Que nova representação é essa?
Nas fotografias e nos filmes que conhecíamos, a Amazónia é uma enorme planície com grandes rios, mas, na verdade, tem muitas montanhas – aliás, o pico mais alto do Brasil fica lá – e eu apresento as montanhas da Amazónia. Trabalhei muito nos sistemas de águas, nos sistemas de chuvas, de rios e, principalmente, dos rios aéreos. Os rios aéreos são um conceito inteiramente novo, que apareceu há uns cinco anos: os cientistas constataram que o espaço amazónico é um dos poucos no planeta que não precisam da evaporação da água do mar para garantir o sistema das chuvas. É autossuficiente. Cada árvore evapora, em média, mil a 1 200 litros de água por dia – isso forma nuvens colossais. Uma parte delas precipita sobre a Amazónia e garante o ciclo, mas outra parte vai embora e garante a distribuição de humidade e chuva no planeta. Por isso, a Amazónia é primordial para a sobrevivência inteira da Terra. 

Chuva de rios aéreos, estado do Acre

Para este projeto, revisitou tribos onde tinha estado ainda nos anos 80, como os yanomamis e os xingus. Que diferenças encontrou? 
Eles adquiriram hábitos da nossa sociedade. Por exemplo, tribos onde as mulheres andavam inteiramente nuas já tapam o sexo e algumas, agora, usam sutiã. Houve esse tipo de influência, mas a cultura mantém-se. Sabe, os indígenas têm uma tradição muito grande. Os xingus foram contactados nos anos 40 e muitos foram para a cidade, porque tinham curiosidade; a maioria morreu de tristeza. Sentiram que não eram assimilados, que precisariam de gerações para se integrarem numa outra sociedade. Então, uma parte regressou, reassumiu a sua condição dentro da tribo e fez todo um trabalho de proteção da cultura e da língua. Hoje, os xingus são uma base forte da cultura indígena, mas uma cultura indígena que já experimentou a cultura ocidental e que optou pela sua. Isso é muito interessante. Outros indígenas, como os yawanawás, que vivem no Acre, bem longe, foram violados pela gente que veio do Nordeste do Brasil para a Amazónia no início do século passado por causa da exploração da borracha. Em frente à principal aldeia yawanawá, Nova Esperança, havia, do outro lado do rio, uma cidade com cerca de 3 500 brancos. Esses brancos usavam os índios como guias dentro da floresta, corromperam-nos, e os yawanawás foram quase dizimados. Mas tiveram uma vantagem: os brancos estavam lá não para destruir a floresta mas para extrair a seiva das árvores. Com a decadência da borracha, os brancos foram-se e os índios conseguiram o reconhecimento do seu território. Os yawanawás  passaram de uma centena a alguns milhares, hoje. Recuperaram a cultura, a língua, o modo de viver. São novamente índios totalmente integrados na Natureza. Há de tudo na Amazónia! Para ter uma ideia: só na Amazónia brasileira, há cerca de 102 grupos que nunca foram contactados. São a pré-história da humanidade que vive dentro da floresta. 

Aldeia de Mutum, território dos yawanawás, estado do Acre

Fez estas viagens sozinho?
Não. Para se andar na Amazónia, é mesmo preciso organizar expedições. E eu paguei do meu bolso todas as viagens. Antigamente, garantia o financiamento dos projetos publicando as minhas fotografias na Imprensa do mundo inteiro. Hoje, a Imprensa ou não tem dinheiro ou não está interessada em gastar dinheiro em fotografia, mas felizmente vendo muito para colecionadores e para museus. Paguei o projeto todinho, com dinheiro da fotografia. 

Quem levou consigo?
Éramos dez a 15 pessoas. Precisava de levar dois ou três canoeiros, porque,  como íamos com bastante carga, precisávamos de vários barcos. Navegar nos rios grandes, largos, da Amazónia não tem problema, é só uma questão de saber onde estão as ilhas. Mas os rios menores são complicadíssimos! Com as cheias, dá-se o solapamento dos barrancos e as árvores caem dentro dos rios. Então, para navegar, tem de se passar no meio das árvores. São necessários barcos especialíssimos, relativamente leves, com um tubo no fim do qual está uma hélice, a três metros de distância da proa. Quando se passa por cima de uma árvore, levanta-se o tubo, a hélice sobe e o barco desliza. Se a hélice tocar na árvore, acabou. Como íamos com bastante carga, tínhamos de levar três ou quatro barcos. Tinha também de ter, pelo menos, dois capitães do mato, homens que conhecem tudo da floresta e que se orientam dentro da mata tão bem quanto os indígenas.  Precisava de carregadores para ajudarem com todo o material, não só o material fotográfico mas também a comida: arroz, feijão, sardinha, linguiça defumada, cebola, alho, sal, panela, tudo… A lei não permite que nos alimentemos da comida dos indígenas. Além disso, tinha de levar um antropólogo, um sociólogo, às vezes um tradutor. Para chegar às tribos, precisava de uma autorização da FUNAI, a Fundação Nacional do Índio. Tinha de ir a Brasília, explicar onde queria ir, submeter o meu projeto… Hoje, a FUNAI é uma instituição que trabalha para o agronegócio, completamente deformada pelo sistema Bolsonaro. Mas a tradição da FUNAI é ter excelentes antropólogos, sociólogos, pessoas que cuidam a sério da proteção indígena. Quando o projeto era aprovado, a FUNAI tinha de enviar uma pessoa à tribo, reuni-la, propor-lhe a minha visita e regressar a Brasília. Se a tribo não aceitasse, eu não podia ir. Todas essas despesas foram assumidas por mim. Cheguei a esperar um ano e meio por uma autorização. E, às vezes, com a autorização na mão, eu partia e vinha de lá uma mensagem dizendo que, afinal, já não podia ir. Aconteceu-me isso com os suruwahás. São uma tribo em que se acredita que quando se morre jovem se vai para uma espécie de paraíso e, por isso, os mais novos fazem suicídios coletivos. Tinham-se suicidado seis jovens, e pediram para eu não ir. 

Montanha na região de Marauiá, território dos yanomamis, estado do Amazonas

E as fotografias aéreas?
Para as fazer, vivi com o Exército dentro da selva. O Exército tem 23 quartéis na Amazónia e 80% dos soldados são indígenas. Depositei 45 mil litros de combustível de helicóptero nos depósitos do Exército, de onde iam deduzindo o combustível de todas as missões que fizemos fora do circuito das operações do Exército. Não foi fácil de organizar… Eu tinha realmente de estar com muita vontade de ir para a Amazónia e fazer esse projeto.

Qual é a reação dos indígenas quando se veem nas fotografias?
Mandei fotografias para todas as tribos com quem trabalhei, sem exceção. Eles gostam de se ver, mas a grande curiosidade deles não era tanto pela fotografia – era pelo meu canivete suíço, pela minha faca, pelas coisas que lhes podiam ser úteis dentro da floresta. Mas a FUNAI pedia-me para de forma alguma lhes dar as minhas coisas, para não corromper a cultura deles.

Território indígena do Vale do Javari, estado do Amazonas

Houve viagens muito longas?
Houve viagens de três meses e meio. Às vezes, para chegar a uma tribo, navegámos oito dias. E, chegando lá, ainda tive de fazer quarentena na base da FUNAI. Também me aconteceu chegar ao lugar de uma tribo e não estar lá ninguém porque tinham ido caçar, e ter de esperar quatro ou cinco dias. 

E precisava de tempo para se integrar, antes de começar a fotografar?
Normalmente não. Quando você chega, é sempre feita uma grande reunião. Os indígenas são muito parlamentadores. Gostam muito de conversar, gostam muito de explicações. Querem saber exatamente quem é você e o que quer fazer. Às vezes, são conferências que duram cinco horas, porque há muitas participações. Depois da conversa, você já é aceite.

Seria possível fazer este projeto hoje, com a FUNAI sob a alçada do Governo de Bolsonaro?
Seria impossível. Hoje, a FUNAI só autoriza a penetração em território indígena de pastores pentecostais, porque Bolsonaro é ligado a essas religiões. Essas religiões acreditam que o regresso de Cristo à Terra só se vai realizar quando houver uma conversão do planeta inteiro. Portanto, a sua primeira missão é catequizar os indígenas, para trazer a alma deles para o Senhor… Uma dessas igrejas chama-se até Novas Tribos. A FUNAI tornou-se um facilitador do agronegócio e da violação do território indígena. Uma instituição que tradicionalmente era dirigida por sociólogos, antropólogos, académicos tem, hoje, à sua frente um delegado da polícia federal. E o novo presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o IBAMA, é um coronel de polícia, que retirou toda a proteção da floresta amazónica, mantida pelos fiscais do IBAMA, e colocou lá polícias da sua confiança para permitir a penetração total. A Amazónia está a ser destruída ao mais alto nível: as instituições que deveriam proteger tanto os indígenas como a floresta são facilitadores do agronegócio e das religiões pentecostais. Mas tudo isso é temporário. Acho que Bolsonaro não vai ser reeleito no próximo ano e a FUNAI voltará a ser a FUNAI, e o IBAMA voltará a ser o IBAMA. 

Território indígena do Vale do Javari, estado do Amazonas

Há esperança, portanto? A Amazónia ainda tem salvação?
Tem total salvação. Vinte e cinco por cento da Amazónia é território indígena protegido pela Constituição de 1985. Um juiz ou um procurador tem direito a solicitar a expulsão de qualquer invasor. Depois, 24,9% da Amazónia são áreas de preservação permanente, parques nacionais. Então, cerca de 50% da Amazónia está protegida por lei e, hoje, estamos a trabalhar muito perto do poder judiciário no sentido de fazer exercer a lei. A Amazónia tem 17,2% do território destruído, e essa destruição passou-se sobretudo nas terras públicas, que representam cerca de 49% da área. Sobram, então, cerca de 32% de terras públicas, das quais uma grande maioria são florestas inundáveis, que passam seis meses debaixo de água e não são adaptáveis, de forma alguma, à agricultura. Se conseguirmos defender as terras que a Constituição protege, quase garantimos o espaço amazónico. 

É possível garantir, no Brasil de hoje, que a lei é cumprida?
A lei é o nosso grande aliado. Bolsonaro tenta desestabilizar a lei e destruir as instituições, mas, para mudar a lei, precisa de aprovação nas duas câmaras. Temos grandes chances de proteger uma boa parte da Amazónia.

Floresta que fica submersa (igapó) nas margens do rio Negro, estado do Amazonas

No ano passado, lançou um manifesto, ao nível mundial, assinado por 67 personalidades, pedindo uma cintura sanitária que protegesse a Amazónia da Covid. Teve impacto?
A Lélia [Salgado, sua mulher] e eu pagámos do nosso bolso uma página inteira de anúncio nos principais jornais brasileiros para publicar o manifesto. E o impacto na opinião pública brasileira, que até podia ser o país do mundo menos preocupado com a Amazónia, foi incrível. Houve um despertar dos brasileiros em relação à extinção da comunidade indígena. Esse foi o primeiro lado positivo. O segundo lado importante: o manifesto era dirigido aos três poderes que compõem o Estado – o executivo, o legislativo e o judiciário. O executivo teve uma reação negativa; eu tinha feito uma doação de fotografias de tribos indígenas à FUNAI e a FUNAI fez questão de mas devolver, como se pudesse devolver algo que pertence ao Estado brasileiro. Consegui que a sexta sessão da Procuradoria-Geral da República aceitasse as fotografias até a FUNAI voltar a ser FUNAI. Quanto ao legislativo, não houve qualquer comentário, exceto o de um ou outro deputado ou senador a título individual. Mas o poder judiciário teve uma reação colossal. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça criou um grupo de videoconferência com juízes e procuradores, e começámos logo a trabalhar em cima da lei de proteção, ao ponto de, no momento de redigir a proposta de vacinação no Brasil, ter sido decidido que as comunidades indígenas seriam as primeiras a ser vacinadas. Oitenta por cento das comunidades indígenas foram vacinadas. Os outros 20% são índios que vivem em tribos isoladas e indígenas que não se quiseram vacinar, influenciados pelas seitas americanas. A reação a esse manifesto foi, portanto, fantástica. 

Comunidade de Piaú, território dos yanomamis, estado do Amazonas

Esta exposição tem características muito diferentes das suas outras exposições?
Completamente. É uma exposição muito especial, com música composta por Jean-Michel Jarre, que utilizou sons da Amazónia guardados no acervo do Museu de Genebra. É uma música longa, com 52 minutos, que funciona como fio condutor da exposição.

Porque sentiu necessidade de ter música?
Foi a Lélia. Ela queria absolutamente ter os sons da floresta na exposição. A Lélia desenhou essa exposição de uma maneira muito especial. As fotos não são colocadas na parede, mas penduradas a partir do teto, com uma fotografia na frente e outra atrás. O visitante entra e vai circulando entre fotografias de paisagens da Amazónia, como se estivesse dentro da floresta. No centro do espaço, Lélia colocou três construções em forma de maloca, as casas comunitárias dos índios, onde estão as fotografias dos indígenas. Os indígenas estão dentro da casa deles, na exposição. Há ainda duas projeções, cada uma com 110 fotos. Uma é de retratos dos indígenas (levei um estúdio para a Amazónia e fiz muito retrato); a outra, de paisagens. Nenhuma das fotografias exibidas nas projeções está na exposição. Ao todo, veem-se 425 fotografias. Dentro das malocas, podem ver-se vídeos de sete líderes de comunidades indígenas. São eles que trazem uma coloração política à exposição, ao falarem do quanto são ameaçados, da floresta destruída, da política agressiva de Bolsonaro. 

O facto de a Lélia o ter acompanhado nas viagens pela Amazónia foi importante?
Só uma pessoa como a Lélia podia conceber uma exposição como essa. Ela fez exposições lindas para mim, mas digo uma coisa: essa talvez seja a mais impressionante e mais bonita.

No prefácio deste livro, escreve: “Como fotógrafo, nunca tinha sentido tanto prazer visual.”
O conceito básico da nossa civilização cristã é o paraíso. E o paraíso existe. A Amazónia é o paraíso. Os indígenas vivem no paraíso: não têm maldade, não têm agressividade, não têm chefe, não têm religião, não têm propriedade… Não existe herança, não existe moeda, não existe troca. Eles vivem no paraíso.

Moradores da aldeia Towari Ypy, território indígena dos Zo’é, estado do Pará

Em 2010, numa entrevista a um jornal brasileiro, disse: “A fotografia está acabando. Hoje, temos imagens, mas não fotografias. Não acredito que a fotografia vá viver mais 20 ou 30 anos.” O facto de esta exposição ter características diferentes tem que ver com este sentimento de que a fotografia está a morrer?
Nada como um dia após o outro. Não acho que a fotografia esteja acabando. Já achei, hoje não acho mais. A fotografia está com total vitalidade. Resistiu a todos os instrumentos de intervenção. Os biliões de imagens feitas com o telemóvel não são “fotografia”, mas uma nova linguagem de comunicação através da imagem. A fotografia é a memória, é o espelho da sociedade. E isso só os fotógrafos são capazes de fazer. A fotografia vai acabar, sim, mas apenas para mim, porque estou ficando velho, com 77 anos.

Quando terminou o Genesis, também disse que era o seu último projeto…
A apresentação deste projeto vai levar-me dois anos. Quando terminar, terei 80. Não vou parar de fotografar, seguramente que não, mas realizar um projeto como este ou como o Genesis vai ser difícil. Já não tenho a mesma resistência e força. Voltei várias vezes doente da Amazónia. A floresta tem muitos vírus que não conhecemos. Uma das lideranças indígenas, um xamã, diz, num vídeo da exposição, que a sociedade dos brancos possivelmente vai desaparecer com a destruição da Amazónia, porque se os vírus que existem lá, em grande quantidade, entrarem no ciclo como entrou o SARS-CoV-2, podem levar à extinção da espécie humana.

Nos últimos anos, vários conflitos armados eclodiram ou agravaram-se, mergulhando o mundo num clima de crescente instabilidade e incerteza quanto ao futuro. Este cenário tem levado muitos países a reforçar os investimentos na área da defesa, de forma mais agressiva e estratégica. Em 2024, Portugal destinou 1,46% do PIB à defesa, de acordo com as estimativas divulgadas no relatório anual do secretário-geral da Aliança Atlântica, o neerlandês Mark Rutte. Este valor permanece abaixo da meta definida pela NATO, fixada nos 2%, mas o país já assumiu o compromisso de aumentar gradualmente esse esforço financeiro nos próximos anos, com o objetivo de impulsionar a produção e aquisição de equipamentos e tecnologia militar na Europa.

Neste contexto, a Comissão Europeia apresentou uma proposta que permite aos Estados-membros aumentar os gastos com defesa em até 1,5% do PIB por ano, durante quatro anos, sem serem penalizados pelas regras orçamentais da União Europeia — nomeadamente aquelas que impõem limites ao défice público acima dos 3% do PIB.

Fundada em agosto de 2013 por uma equipa de engenheiros do Grupo PDM, a Beyond Vision tem-se destacado no desenvolvimento de sistemas aéreos não tripulados (UAV). O principal modelo, o HEIFU, é um hexacóptero de classe 3 capaz de transportar até 6 kg de carga útil. Equipado com um computador de bordo e um avançado controlador de voo, o HEIFU pode realizar missões totalmente autónomas, sendo utilizado em áreas como agricultura de precisão, inspeção de infraestruturas, vigilância e prevenção de incêndios. Em 2022, a empresa expandiu a sua gama com o lançamento do VTOne, uma aeronave híbrida com capacidade de descolagem e aterragem vertical (VTOL). Este modelo alia a versatilidade do HEIFU à maior autonomia necessária para missões de longo alcance, mantendo a capacidade de operar em ambientes exigentes.

Fazemos tudo cá. Desenhamos os chassis, criamos as placas eletrónicas, desenvolvemos o firmware, os algoritmos de navegação e o software de controlo baseado na cloud. Isso dá-nos total controlo sobre o produto e capacidade de o adaptar a diferentes contextos

Dário Pedro, CEO da Beyond Vision

Dois anos depois, em 2024, a Beyond Vision apresentou o BVQ418, um quadricóptero compacto e portátil, pensado para operações rápidas e mais leves, sem comprometer a eficiência nem a qualidade dos dados recolhidos.

Um rápido crescimento

Dário Pedro, diretor executivo (CEO) da Beyond Vision

Há 11 anos, provavelmente poucos imaginariam que a empresa que começou num espaço reduzido e discreto, com uma equipa curta, viria, nos dias de hoje, a desenvolver projetos com as Forças Armadas portuguesas, a exportar drones para a Arábia Saudita, Angola e Emirados Árabes Unidos, e a preparar-se para expandir operações para os Estados Unidos. Em pouco mais de uma década, a Beyond Vision tornou-se uma das mais promissoras empresas portuguesas de tecnologia de defesa e monitorização industrial, desenvolvendo drones de “ponta a ponta” — da estrutura ao software.

Dário Pedro, o diretor executivo da empresa (CEO), é doutorado em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade Nova de Lisboa e nunca pensou, originalmente, em criar uma empresa. Começou por integrar o grupo PDM, liderado por Luís Miguel Campos, com o objetivo de participar em projetos de investigação europeus. A Beyond Vision existia então como entidade de suporte para essa atividade. Com o sucesso de alguns desses projetos e após concluir a tese de doutoramento, foi-lhe proposta a hipótese de reestruturar a empresa e centrar a atividade nos drones.

“Nunca tive a ideia de criar uma empresa. A Beyond Vision já existia, mas sobretudo ligada à investigação. Com os projetos que desenvolvemos, achámos que fazia sentido reorientá-la para a área dos drones”, explica, em entrevista à Exame Informática, o executivo de 30 anos.

O crescimento foi gradual, com um foco inicial na investigação e no desenvolvimento de produto. Apenas, sensivelmente, em 2022 é que a empresa começou a encarar o mercado com uma ambição verdadeiramente comercial.

Quando a guerra abre portas

Um dos pontos de viragem surgiu com a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022. O Ministério da Defesa Português contactou então a empresa portuguesa e desafiou-a a adaptar as suas tecnologias ao setor da defesa. Até então, a Beyond Vision não tinha qualquer experiência nesse mercado. O desafio resultou num contrato com a Marinha Portuguesa para fornecer 12 aeronaves para o Centro de Experimentação Operacional da Marinha (CEOM), que está localizado em Tróia, Setúbal.

“Tivemos de aprender rapidamente o que era trabalhar com a Defesa, adaptar as aeronaves às necessidades da Marinha e garantir um desempenho ajustado ao contexto operacional. Foi um desafio tecnológico e organizacional”, explica Dário Pedro.

Veja abaixo imagens dos drones:

A Beyond Vision distingue-se por desenvolver os drones de forma integrada. A empresa tem quatro equipas técnicas principais: mecânica e aeroespacial, eletrónica, robótica e desenvolvimento de software na cloud (nuvem, em tradução livre).

O diretor executivo detalha que, “fazemos tudo cá. Desenhamos os chassis, criamos as placas eletrónicas, desenvolvemos o firmware (software interno que controla e gere o funcionamento do hardware), os algoritmos de navegação e o software de controlo baseado na cloud. Isso dá-nos total controlo sobre o produto e capacidade de o adaptar a diferentes contextos”.

Tecnologia modular e pioneirismo 5G

Uma das inovações mais marcantes da Beyond Vision foi a introdução do 5G nos drones ainda em 2018, numa parceria com a Altice para inaugurar a primeira antena 5G do país. “Na altura, não havia nenhum drone comercial preparado para o 5G. Tivemos de fazer o nosso. Foi isso que nos obrigou a passar de software para hardware”, conta Dário Pedro.

Outro elemento diferenciador é a modularidade dos “payloads” (equipamento que o drone transporta para concluir a missão). Os drones da Beyond Vision distinguem-se pela versatilidade, sendo capazes de se adaptar facilmente a diferentes tipos de carga e missão — desde câmaras de vigilância e sensores LiDAR ou multispectrais, até braços robóticos e sistemas de entrega.

A Beyond Vision quer tornar a troca de cargas úteis tão simples como ligar um rato a um computador, com sistemas que detetam, configuram e se adaptam automaticamente

Inteligência Artificial (IA) a bordo e exportação em força

Os drones da Beyond Vision incorporam vários algoritmos de IA, aplicados à evitação de colisões, reconhecimento de infraestruturas, identificação de problemas em estruturas e apoio à navegação. “Alguns algoritmos correm no drone, outros nos postos de controlo e os mais ‘pesados’ na cloud. A IA é essencial para dar autonomia e inteligência ao sistema”, destaca Dário Pedro.

A maioria das vendas da empresa portuguesa é para o mercado estrangeiro. A Arábia Saudita utiliza os drones da empresa portuguesa para inspecionar oleodutos; Angola, para monitorizar minas e realizar mapeamentos; e os Emirados Árabes Unidos, para proteger a fauna e monitorizar populações de falcões. Cada cliente requer uma adaptação específica do software e dos algoritmos. “Monitorizar falcões não é o mesmo que inspecionar um gasoduto. Temos de ajustar os algoritmos de reconhecimento e alerta a cada cenário”, explica o, ainda, jovem diretor executivo, natural de Lisboa.

A empresa está a explorar novas oportunidades, especialmente nos EUA e no Brasil. As tarifas impostas, recentemente, por Donald Trump ao setor tecnológico poderão levar a Beyond Vision a criar uma estrutura local para montagem e apoio a clientes, o que permitirá contornar custos e acelerar a penetração no mercado.

Cultura de longo prazo e crescimento acelerado

A cultura interna da Beyond Vision assenta na especialização e espírito de equipa. “Procuramos pessoas que sejam muito boas numa área concreta, mas que tenham capacidade de trabalhar em equipa e de querer ficar connosco no longo prazo”, A empresa conta atualmente com cerca de 50 funcionários, a maioria engenheiros nas mais diversas especialidades. Até ao final do ano, o objetivo é duplicar a equipa e chegar aos 100 empregados. “Começámos com três ou quatro pessoas. Hoje somos 50 e estamos a mudar-nos para instalações maiores, na zona de Alverca. Até ao final do ano, gostaríamos de duplicar este número. O futuro está a acontecer todos os dias”, finaliza Dário Pedro.

Tekever já é um ‘unicórnio’

A fabricante de drones portuguesa, Tekever, atingiu recentemente o estatuto de ‘unicórnio’, ao ultrapassar a marca de mil milhões de euros em valorização, graças a uma ronda de investimento que conta com a Ventura Capital (principal investidora), Baillie Gifford, o NATO Innovation Fund (NIF), Iberis Capital e Crescent Cove. Este feito consolida a posição da empresa como um dos principais fornecedores europeus na indústria aeroespacial e de defesa, com forte enfoque no desenvolvimento de drones para missões críticas de vigilância e segurança.

Ricardo Mendes, um dos fundadores, lidera a empresa que acaba de alcançar o estatuto de unicórnio

Com sede em Lisboa e presença internacional em mercados como o Reino Unido e França, a Tekever prepara-se agora para investir fortemente na expansão das suas operações, com especial destaque para um plano de cerca de 470 milhões de euros destinado ao território britânico. Fundada em 2001 por engenheiros do Instituto Superior Técnico, a Tekever especializou-se no fabrico de sistemas aéreos não tripulados. A gama de equipamentos inclui o AR3, o AR4 e o AR5, cada um com características adaptadas a diferentes cenários operacionais. O AR3, por exemplo, é utilizado para missões de média duração em ambientes terrestres e marítimos, com até 16 horas de autonomia.

Já o AR4 é mais compacto e portátil, pensado para operações táticas rápidas, enquanto o AR5 representa o topo da oferta da empresa, sendo capaz de operar a longas distâncias com recurso a comunicações via satélite, ideal para o patrulhamento de grandes áreas marítimas e terrestres. Os drones estão equipados com Inteligência Artificial (IA) e sensores avançados, estando atualmente ao serviço de várias entidades de relevo internacional, com destaque para a guerra na Ucrânia, em que os drones AR3 e AR5 da Tekever têm desempenhado um papel significativo em operações de vigilância e defesa. Desde 2022, a empresa tem colaborado com as Forças Armadas ucranianas, fornecendo sistemas não tripulados para diferentes missões de defesa.

O drone AR3, por exemplo, já acumulou mais de 10 mil horas de voo em condições de combate na Ucrânia. A Tekever passou a contar recentemente com um escritório de representação na Ucrânia, com planos para expandir a equipa e criar centros de formação, com o objetivo de reforçar o apoio técnico e operacional às forças ucranianas.

“Já tenho o que queria! DJ Bife a comer uma ostra”, exclama Domingos Coimbra, guardando o telefone no bolso e abrindo caminho através da multidão que, debaixo de um sol escaldante, espera a sua vez para degustar uma das dezenas de iguarias gastronómicas disponíveis nas bancas do Broadway Market, no bairro londrino de Hackney.

Avançando em direção a London Fields, à sua frente, Salvador Seabra [DJ Bife] e Diogo “Horse” Rodrigues riem-se ao recordar momentos semelhantes, vividos durante outras viagens feitas em conjunto, memórias construídas à mesa de restaurantes de beira de estrada, bares de aldeia e bastidores de salas de concertos.

Desta, com certeza, jamais irão esquecer o momento em que, nem há 24 horas, “por causa de um stresse burocrático”, julgaram todos que não iriam atravessar a fronteira entre França e o Reino Unido, correndo o risco de terem de adiar os dois últimos concertos da primeira digressão europeia dos Capitão Fausto, a banda que Salvador Seabra, Domingos Coimbra, Tomás Wallenstein, Manuel Palha e Francisco Ferreira fundaram há 15 anos.

Montagem do concerto em Londres, no The Victoria Dalston Foto: DR

“A main quest é sempre tocar, mas é a side quest que fica na memória. O concerto é o momento central, mas tudo aquilo que acontece entre pontos, as histórias e aventuras que temos, as festas onde vamos, as pessoas com quem falamos, o mal que dormimos, o que se diz na carrinha, é o que traz as vivências da banda e contribui, de certa forma, para as próximas coisas que acabamos por fazer”, assegura Domingos Coimbra. Salvador e Horse, um dos fundadores da editora Cuca Monga e que, desde 2021, é também técnico de frente dos concertos da banda, concordam.

Caminhamos em silêncio. Nele cabem mais memórias do que as que seria possível resumir nos 900 metros que nos separam do pub The Victoria Dalston, onde os restantes membros da equipa nos esperam para começarem as montagens de palco. Mais do que o lugar onde nasceu cada uma das canções dos Capitão Fausto (Teresa, Ideias, Santa Ana, Alvalade Chama por Mim, Boa Memória ou Amanhã Estou Melhor…), foi a forma como ecoaram, e ainda ecoam, em quem as ouve – uma geração nascida nos anos 1990 – que fez delas a sua companhia.

Crescer ao ritmo da amizade

Ano após ano, Tomás, Salvador, Manuel, Domingos e Francisco [que saiu da banda em 2023] foram dando as frases e os ritmos que, aos vinte e poucos anos, faltavam para explicar a vertigem que é saber-se adulto à beira de um mundo diferente daquele que se esperava, mas desejoso de fazer parte dele.

Quase 15 anos após o lançamento do primeiro álbum, Gazela, a vida, como as melodias, deixou de ser puramente rock, ganhou sonoridades novas, mais cuidadas, com mais instrumentos e harmonias. Aos 34 anos, há que fazer uma pausa nas montagens do palco para falar por videochamada com as mulheres, namoradas e filhos, que estão em Lisboa, saber cantar sobre a perda mas de pazes feitas com a mágoa, aprender, como diz Manuel, “a ouvir os detalhes das coisas”.

Quarteto Domingos Coimbra, Tomás Wallenstein, Manuel Palha e Salvador Seabra em Paris. Foto: DR

O que não mudou desde a primeira vez que tocaram juntos, em 2010, no casamento de um tio de Tomás, foi, continua Manuel, “a forma como nos desafiamos a fazer coisas novas, o controlo que temos na maneira como o espetáculo acontece e a preocupação em fazer um bom concerto, independentemente de ser para nove, 200 ou duas mil pessoas”.

“Acho que não estaríamos a fazer isto, passados quase 15 anos, se já não sentíssemos o encanto que é estar num palco e viver o momento em que a música, e tudo aquilo que fizemos, culmina com as pessoas que estão lá para querer ouvi-la, algo que, felizmente, tem sido uma constante na nossa vida”, comenta Domingos. “A vontade de fazer e a amizade prevalecem. Creio que não trabalhava com eles há 11 anos se não fosse assim”, acrescenta Horse.

A alegria de Paris

“A vontade de fazer e a amizade” parecem ser os alicerces do sucesso alcançado pela banda. Sempre com gente “lá para querer ouvi-la”, como dizia Domingos, o grupo cresceu dentro e fora de palco, lançando-se finalmente, em 2025, na sua primeira digressão europeia – um concerto na MEO Arena, a maior sala de espetáculos do País, foi, entretanto, anunciado para o dia 24 de janeiro de 2026.

Nos meses de abril e maio deste ano, os Capitão Fausto subiram aos palcos da Sala El Sol, em Madrid, da Sala Apolo, em Barcelona, do Melkweg Amsterdam, em Amesterdão, do Point Éphémère, em Paris, e do The Victoria Dalston, em Londres, num total de seis concertos, cinco dos quais completamente esgotados.

Juntámo-nos a eles a 8 de maio, em Paris, precisamente o único local onde ainda havia 17 bilhetes por vender. Ninguém diria, no entanto. À medida que o sol mergulha no Canal de Saint-Martin e a tarde se pinta de tons dourados, cada vez mais pessoas vão chegando ao Point Éphémère. Ocupam as mesas corridas junto da entrada e levantam copos de cerveja fresca, brindando ao concerto que, para muitas delas, já neste simples gesto, lhes traz um sabor a casa.

Acabados de chegar de Amesterdão, acompanhados de Horse e do manager Ricardo Coelho, Salvador, Tomás, Domingos e Manuel recebem efusivamente um grupo de amigos.

Há saudades a matar de quem se vê pouco, por morar em Paris há alguns anos, como Sofia e Inês, que conhecem desde os tempos do Liceu Francês, e agradecimentos a fazer aos sempre presentes, que voaram de propósito de Lisboa, como Haley e o namorado, Luís, um dos responsáveis pela editora Cuca Monga.

Fim de concerto Rostos sorridentes na despedida da banda de Paris. Também os fãs saíram felizes do concerto em Londres, como David (ao centro na foto), que conheceu os Capitão Fausto através da namorada portuguesa

Contam que “Amesterdão foi o melhor concerto até agora”, que o público veio das mais diversas cidades dos Países Baixos, “às vezes, fazendo horas de caminho”, e que esteve do lado da banda “desde a primeira nota”. No entusiasmo do relato, porém, pressente-se a dúvida sobre o que lhes reserva a noite de Paris.

Não têm nada a temer. Mal as luzes se apagam e se ouvem os primeiros acordes de Boa Memória, mais de duas centenas de pessoas começam a cantar em coro. “Sala cheia, coração cheio. Obrigado”, agradece Domingos. A energia mantém-se a mesma ao longo dos restantes 18 temas, acontecendo, inclusive, o primeiro moche da digressão, durante Santa Ana.

“A casa ardeu/ Ninguém parou de dançar.” Colado ao palco, Norberto, de 45 anos, canta e dança mais do que o resto da primeira fila toda junta. Há 30 anos em Paris, filho de emigrantes portugueses, descobriu a banda quase por acaso, através de uma notificação da aplicação de venda de bilhetes Dice.

“Foi um azar, porque comecei a ouvi-los anteontem, mas também uma sorte enorme, porque adorei o que ouvi e vim logo para a primeira fila. É a cultura que nos dá vida e nos salva, hoje saio daqui com mais energia para ir para a frente. Já fui segui-los no Instagram e inscrevi-me no site para os ir acompanhando”, conta Norberto, com um álbum debaixo do braço.

Já Vasco e Catarina, de 27 anos, vieram de propósito de Lisboa para assistir ao concerto daquela que é a banda preferida dele e a banda portuguesa preferida dela. Uma das coisas de que mais gostaram foi o tamanho intimista da sala, “em comparação com sítios como o Coliseu, a Culturgest ou o Campo Pequeno”, e o facto de Domingos ter descido do palco para tocar um solo mesmo ao seu lado.

Já depois de o público dispersar, a noite quente de maio convida a um passeio de bicicleta. Guiados por Inês e Sofia, pedalamos até ao espaço de concertos e discoteca La Gare – Le Gore, seguimos para o bar Connectable, onde, sentado a um piano disponível para utilização dos clientes, um homem cego oferece, segundo Salvador, “das melhores interpretações” que se poderia pedir de diversas canções, e terminamos a cantar La Bamba num bar de karaoke.

Nas conversas entre um poiso e o seguinte, forjam-se amizades com desconhecidos, aos quais a banda conta o que veio aqui fazer, para descobrir, mal as palavras lhes saem da boca, que o que vieram cá fazer foi afinal muito mais do que subir a um palco, escrever uma história ou ocupar-se do som de um concerto.

Subida infinita

Três dias e o tal “stresse burocrático” mais tarde, em noite de derby lisboeta, chegamos a Londres. Também na capital inglesa o sol decidiu brilhar com uma intensidade fora do normal. Após a manhã passada entre as ruas de Hackney e o relvado de London Fields, é tempo de montar o palco para os concertos dos dois dias seguintes.

A sala de teto baixo, revestida de madeira escura, põe à prova a imaginação de quem entra. “É engraçado que não tocávamos em venues tão pequenas há muitos anos”, comenta Tomás Wallenstein, com alguma nostalgia na voz. Caberão 250 pessoas num espaço tão exíguo?

Sim. Não só caberão 250 pessoas como farão a casa vir abaixo: cantam os parabéns a Manuel Palha, que faz anos no dia do primeiro concerto, dançam do princípio ao fim, independentemente de a sensação térmica ser de 40 graus centígrados, e pedem “só mais uma” vezes sem conta. Até mesmo David, que não fala uma palavra de português e conheceu a banda graças à namorada portuguesa, que lhe vai traduzindo alguns versos das canções. E tudo se repetirá, com o dobro da energia, na noite seguinte.

Longe vai o dia em que os Capitão Fausto rumaram às Caldas da Rainha para tocar para nove pessoas, quatro delas amigos vindos de Lisboa. “Foi provavelmente a vez em que vi este espaço mais cheio”, comenta, impressionada, Lucy, técnica de som do The Victoria Dalston. “As pessoas costumam ficar no meio da sala e as bandas têm de as chamar para avançar, mas, com eles, foi logo tudo para a frente e fartaram-se de dançar.”

“A proximidade com o público traz uma energia mais eufórica, as pessoas sentem o concerto de uma forma diferente e nós também”, explica Horse. É o caso de Mário, um fã de 29 anos, há cinco a viver em Londres, que marcou presença no The Victoria em ambas as noites. “Além do pessoal a cantar a plenos pulmões algumas das músicas, do que mais gostei de ver foi a atenção que o Salvador, o Manuel, o Domingos e o Tomás dão uns aos outros, em palco. Na banda todos têm o seu espaço para brilhar, como num grupo de amigos, sem egos à mistura.”

A adesão do público e o sucesso dos concertos têm gosto a vitória em dose dupla por terem sido organizados e produzidos recorrendo a uma equipa de seis pessoas, a “prata da casa”, como lhe chamam, e a uma grande dose de boa vontade.

“Digressões como esta, com muitos desafios e concertos que não sabemos como vão correr, são coisas que temos muito interesse em fazer, porque põem-nos fora de pé e geram-nos algum desconforto, uma coisa boa para a criação”, afirma Domingos, no backstage, momentos antes de subirem pela última vez ao palco do The Victoria.

Lá fora, Manuel, Salvador, Domingos e Tomás têm encontro marcado com os silêncios que dão forma à sua vida e à vida de quem ouve as suas canções. Essa Subida Infinita que vamos todos enchendo de música e memórias, como pistas lançadas ao vento, na esperança de que os que nos têm a retaguarda, mesmo que por vezes se distraiam, saibam sempre onde nos encontrar.

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Habituei-me há muito a ler e a ouvir com atenção as análises políticas, económicas, ambientais e sociais do filósofo e professor universitário Viriato Soromenho-Marques. Mais do que intelectual respeitado, escreve e opina fora da caixa, diz o indizível com desassombro e fundamento, sobretudo se fizermos a comparação com a banalidade unanimista da maioria dos comentadores políticos que enxameiam os canais de TV de notícias. É uma voz desalinhada que vale sempre a pena ter em conta.

Natural de Setúbal, distrito onde se registou uma das mais surpreendentes vitórias do Chega no terramoto político das legislativas de domingo, Viriato Soromenho-Marques analisou-a e explicou-a, com a acuidade que o caracteriza, num artigo que publicou num jornal da terra, O Setubalense, e a que deu este elucidativo título: Do vermelho para o cinzento-escuro

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Faz chegar várias formas de arte a pontos da cidade onde normalmente ela não chega. Eis ao que se propõem o Mexe – Encontro Internacional de Arte e Comunidade, colocando em diálogo as comunidades locais com artistas nacionais e internacionais. A programação começa a ser preparada meses antes através de convocatórias abertas à população.

Irrelevância é o tema desta sétima edição, que decorre neste fim de semana, dias 23 a 25, e traz vários espetáculos de teatro, dança, música, performance, e também instalações e conversas – tudo com entrada gratuita.

João Ferreira, diretor artístico desta sétima edição, sublinha: “Num momento em que as questões da guerra, migração, segurança, urgência climática, igualdade racial e de género são discutidas numa dimensão tão distante da realidade comunitária, o Mexe propõe a reflexão: como existir nesta irrelevância?”

Gio Lourenço conduziu a oficina Laboratório Corpo Sónico. O kuduro e o breakdance, entre outras danças urbanas, serviram de ponto de partida. Foto: Lucília Monteiro

Nesta sexta, 23, às 21h30, Lukanu Mpasi leva à Cooperativa dos Pedreiros Portuenses Matxikadu, uma performance de dança e música que questiona os estereótipos e experiências do que é ser homem negro em Portugal. A performance será precedida pela apresentação do resultado da oficina Laboratório Corpo Sónico, com direção de Gio Rodrigues.

Antes, a partir das 17h30, a sessão de abertura do Mexe vai contar com a psicanalista e escritora espanhola Lola López Mondéjar. A pergunta “Seremos hoje menos humanos?” dá o mote à conversa que decorre na Praça da Alegria.

Ao longo dos três dias (sex-sáb 14h-18h, dom 10h-13h), no Espaço Ócio, haverá oportunidade de assistir à apresentação de Stories of Refugies. Trata-se de uma instalação audiovisual imersiva da artista visual libanesa Tanya El Khoury, com o coletivo The Dictaphone Group. O publico é convidado a deitar-se em beliches metálicos para assistir e escutar os vídeos realizados por um grupo de reugiados sírios em Munique.

Destaque também para a performance-itinerante da artista italiana Caterina Moroni na Associação de Moradores da Lomba, neste sábado (10h30 e 14h30, 60 minutos). O Espaço Agra recebe neste dia, às 11h30 e 15h30, a companhia circense Erva Daninha com o espetáculo Q-Circo. 

Set Revolução, pelo Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim. Foto: Lucília Monteiro

Ainda neste sábado, Patrícia Portela modera uma conversa sobre a relevância da cooperação para a cultura e comunidades no Porto. Será na Escola Artística Soares dos Reis, às 17 horas. O dia termina na Cooperativa dos Pedreiros, às 21h30, com a apresentação de Set Revolução, pelo Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim. O espetáculo surge da reflexão sobre a relevância da participação dos cidadãos na vida política e comunitária. Repete no domingo, 25, à mesma hora.

No domingo, 25, às 12h30, será servido um almoço comunitário na Praça da Alegria. A iniciativa é do coletivo Landra em colaboração com a Semear A Vizinhança, e envolve os moradores da Rua de São Vítor. A participação é livre, convidando-se aqueles que queiram participar a levar um algo para partilhar.

A parada Mexe, que acontece a partir das 16h30, parte da Alameda das Fontainhas, culminando, às 17h, com um concerto e um bailarico comunitário.

MEXE – Encontro Internacional de Arte e Comunidade > Vários locais do Porto > 23-25 mai, sex-dom > grátis > programação completa aqui

O Tor Alva, ou Torre Branca, situa-se na vila alpina de Mulegns, onde moram apenas 11 pessoas. Este foi o local escolhido pela Universidade de Zurique para construir o edifício mais alto do mundo com recurso à impressão 3D. A Torre ergue-se até uns impressionantes 30 metros de altura.

O projeto visa demonstrar as capacidades de topo da impressão 3D e foi feito em parceira com a fundação cultural Fundaziun Origen. O arquiteto Michael Hansmeyer e o professor Benjamin Dillenburger desenharam o formato, que consiste numa estrutura de 32 colunas de betão que se estendem por quatro andares e um topo que termina numa cúpula. No interior, podem estar 32 pessoas em simultâneo e há escadas em cada andar.

O processo de construção demorou cinco meses, cerca de 900 horas de impressão, e foi feito por secções, montando-se no topo de um edifício já existente. Na construção estiveram presentes dois robôs de construção: uma impressora 3D a expelir uma mistura semelhante a cimento em camadas e uma máquina usada para adicionar reforços em aço, noticia o New Atlas.

“Durante o processo de fabrico, um segundo robô insere um anel de aço para reforçar a coluna crescente a cada 26 centímetros de altura. A adição destes reforços torna possível construir colunas complexas e com ramificações o que poderia ser difícil de realizar usando um processo convencional”, explica o comunicado de imprensa.

A Tor Alva vai estar aberta para visitas guiadas e, a partir de julho, vai constar com performances artísticas no andar superior. O objetivo é que o local fique operacional durante os próximos cinco anos.

A InventWood é uma startup do Maryland, nos EUA, que vai começar a produzir em massa a ‘supermadeira’, um material criado em 2018 na universidade local. A equipa de Liangbing Hu começou por idealizar o material sujeito a um processo de densificação, que resulta numa madeira que é quatro vezes mais densa do que as alternativas convencionais, mas consegue ser até dez vezes mais resistente e uma relação força-para-peso até dez vezes superior à do aço.

O material que está a ser criado agora é resistente a fogo, clima e pragas. O processo de produção foi otimizado para poder ser manufaturado em apenas horas, em vez das semanas que eram necessárias originalmente. A universidade procedeu ao licenciamento para a InventWood que recolheu 15 milhões de dólares para construir uma fábrica e vai começar a produção em série e enviar os materiais para clientes do hemisfério norte, noticia o New Atlas.

Para a produção desta supermadeira, a equipa criou um processo de dois passos onde se começa por aquecer amostras de madeira numa mistura líquida com hidróxido de sódio e sulfito de sódio, para remover a hemicelulose, e depois a madeira tratada é pressionada a quente, o que causa o colapso das células e forma nanofibras celulosas altamente alinhadas.

O plano inicial é vender esta supermadeira para revestimento de fachadas e depois começar a explorar aplicações estruturais, como substituição do cimento, betão e aço necessários para a construção de edifícios. “Este pode ser um rival para o aço e para ligas de titânio, de tão forte e durável que é. É também comparável à fibra de carbono, mas muito mais barato”, descreveu Hu.

O cientista prosseguiu os trabalhos desde 2018 e já explorou a criação de madeiras transparentes, filtros de água de madeiras queimadas e até baterias de iões de sódio baseadas em madeira e folhas.

Pode ler o estudo completo publicado na Nature e no Science Daily.

Nascido há quatro meses na ala pediátrica do hospital Nasser, em Khan Yunis, no Sul da Faixa de Gaza, Yousef al Najjar nunca conheceu uma vida normal. Um bebé com a sua idade deveria pesar entre cinco e seis quilos. A mãe, num depoimento recente à revista online Al Majalla, explica por que motivo o seu filho, de apenas quilo e meio, é só pele e osso: “Não consigo arranjar nada para comer. Não o posso amamentar ou alimentar em condições (…). Ele está a piorar e as costelas estão cada vez mais salientes (…). Os médicos dizem-me, todos os dias, que ele dificilmente pode sobreviver se não começarem a chegar leite e medicamentos.”

Ruínas Cerca de 92% dos edifícios de Gaza foram destruídos (160 mil) ou tornaram-se inabitáveis (276 mil). Maioria da população não tem onde abrigar-se Foto: LUSA

Para Yousef al Najjar, após um implacável bloqueio das autoridades israelitas ao enclave de 365 quilómetros quadrados, desde o início de março, a chegada de nove camiões com ajuda humanitária, esta segunda-feira, 19, de pouco serviu. O menino morreu esfaimado. Como ele, muitos outros tiveram o mesmo destino nas últimas semanas. E, no dia seguinte, de acordo com uma lancinante advertência das Nações Unidas, “nas próximas 48 horas” 14 mil bebés e menores de tenra idade habilitam-se a que lhes aconteça o mesmo.

Tom Fletcher, vice-secretário da ONU e coordenador do apoio de emergência, considera “inaceitável” que haja 160 mil paletes com bens essenciais distribuídos por quatro mil camiões em fila de espera para entrar em Gaza. Para este responsável, a parca quantidade de víveres e de medicamentos que começou a chegar aos palestinianos é “uma gota de água num oceano de necessidades”. Um recado para as autoridades hebraicas, em particular para os falcões ultranacionalistas e religiosos que ocupam cargos-chave, caso de Bezalel Smotrich. Este último, ministro das Finanças e conhecido pelas suas tiradas e posições radicais, insiste que a população de Gaza só deve ter direito a uma ração mínima diária para se alimentar: “Os civis recebem um pão pita e um prato de comida. E chega”. Na prática, diz, na maior das impunidades, que o seu país pode e deve ser intransigente na defesa dos seus interesses: esmagar o Hamas e, se for preciso, matar à fome o povo cuja existência ele nem reconhece. Será que não receia ser acusado de cumplicidade em eventuais crimes de guerra, limpeza étnica e genocídio?

TRAFICÂNCIAS

A 6 de maio, ao ser anunciada a operação Carros de Gedeão, que passa por intensos bombardeamentos e por uma nova invasão terrestre do enclave nos próximos dias, Smotrich vaticinou o seguinte: “Dentro de um ano, Gaza estará completamente destruída, os civis serão enviados para sul, para zonas humanitárias, e, a partir daí, vão começar a sair em grande número para países terceiros.”

Será que as declarações deste colono e dirigente sionista podem ser levadas a sério? A 16 de maio, a estação norte-americana NBC revelou que a Administração de Donald Trump não tem apenas o desejo de converter Gaza numa estância balnear com muitos arranha-céus junto ao Mediterrâneo e uma gigantesca estátua dourada do 47º Presidente dos EUA (o próprio publicou na sua rede social, Truth Social, no final de fevereiro, um vídeo com este cenário, realizado através de Inteligência Artificial). De acordo com a NBC, a Casa Branca está a “preparar um plano para levar um milhão de palestinianos para a Líbia”, encontrando-se a negociar com as autoridades deste país. A ser verdade, não se percebe quem podem ser os intermediários de Washington neste processo, uma vez que o país outrora dirigido pelo coronel Muammar Kadhafi está em guerra civil há mais de uma década. Pior. Além das permanentes pelejas entre milícias e grupos jihadistas, tem um governo em Trípoli, reconhecido pela comunidade internacional, e um outro em Benghazi, chefiado pelo “marechal” Khalifa Haftar, um senhor da guerra que já colaborou com a CIA e agora merece a simpatia da Rússia de Vladimir Putin e, entre outros, de alguns monarcas e autocratas árabes.

Apesar dos desmentidos pouco convincentes da embaixada americana na capital líbia sobre este assunto, a NBC destaca também a possibilidade de os EUA quererem deportar palestinianos para a Síria. Como se sabe, o novo regime de Damasco é desde dezembro liderado por um ex-dirigente da Al-Qaeda, Ahmed al-Sharaa, personagem que se encontrou, a 14 de maio, com Donald Trump em Riade, capital da Arábia Saudita. Terão falado sobre os que ainda habitam na futura “Riviera do Médio Oriente” ou limitaram-se a discutir o levantamento das sanções norte-americanas a Damasco e a surpreendente disponibilidade de Washington para ajudar um governo de antigos terroristas? Com o rei da diplomacia mercantilista nunca se sabe o que pode acontecer e o inquilino da Casa Branca já manifestou, por diversas vezes, a vontade de “tomar conta” do território “inabitável” em que mais de 90 por cento dos edifícios estão destruídos ou danificados. Mais uma vez, recorde-se o que ele escreveu a 6 de fevereiro, na sua rede social, após ter surpreendido meio mundo com uma proposta que os adeptos do “Grande Israel” adoraram: “A população de Gaza pode ser reinstalada em comunidades muito mais seguras e bonitas, com casas novas e modernas, na região, onde viveria feliz, em segurança e em liberdade.” Este projeto para inviabilizar um Estado palestiniano e redesenhar os mapas do Médio Oriente, à custa das populações de Gaza e da Cisjordânia, não é exatamente original.

Nos anos 60 do século passado, o governo do trabalhista Levi Eshkol colocou a hipótese de oferecer dinheiro aos residentes do enclave que aceitassem voluntariamente emigrar para os países árabes e, em maio de 2024, Netanyahu divulgou um documento intitulado Gaza 2035 que previa, por exemplo, a instalação de comunidades palestinianas no Norte do Sinai (Egito) e a criação de infraestruturas ‒ rodoviárias e ferroviárias ‒ entre o território que se “normalizou” como a maior prisão a céu aberto do mundo e aquela que pretende ser a cidade tecnologicamente mais avançada do planeta, Neom, na Arábia Saudita. Não é, pois, de estranhar que, depois das afirmações de Trump, Israel tenha formalmente criado, logo a seguir, uma agência especial para os palestinianos de Gaza que aceitem emigrar para a Jordânia ou o Egito, sob a tutela do Ministério da Defesa. Aliás, o titular desta pasta, Israel Katz, já sugeriu que alguns dos estados europeus com posições críticas em relação ao seu país ‒ nomeadamente a Noruega, a Espanha e a Irlanda ‒ acolham uma parte significativa da população de Gaza e não esconde o seu desejo de afastar a ONU das operações de assistência às vítimas do conflito em Gaza. Para tal, com a anuência de Netanyahu e da Administração Trump, foi criada uma misteriosa fundação com sede na Suíça para distribuir a ajuda em Gaza, através da concessão dessas tarefas a empresas privadas. Uma solução que António Guterres rejeita liminarmente, invocando a “lei internacional e os princípios humanitários de imparcialidade, independência e neutralidade”. Uma posição corajosa do antigo primeiro-ministro português, numa altura em que as Nações Unidas se debatem com uma séria crise financeira que obrigará a um corte de 600 milhões de dólares até dezembro e ao despedimento de milhares de funcionários. A explicação para esta cura de austeridade deve-se ao facto de muitos Estados-membros, sobretudo os EUA (responsáveis por 22% do orçamento da ONU), estarem a cancelar ou a reduzir de forma drástica os seus contributos para agências como a OMS, o Programa Alimentar Mundial, a Organização Internacional das Migrações ou o Alto Comissariado para os Refugiados.

INFERNOS

A catástrofe de Gaza atingiu proporções tais que o assunto já divide Israel como nunca se viu desde os ataques terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023. Na manhã desta terça-feira, 20, Yair Golan, presidente do Partido Democrata e um dos principais dirigentes da oposição ao governo liderado por Benjamin Netanyahu, disse o que poucos esperavam ouvir na rádio pública: “Israel está prestes a tornar-se um Estado pária (…) Um país sadio de espírito não se bate contra civis, não assassina crianças como passatempo e não apresenta como objetivo expulsar populações em larga escala.” Como se não bastasse, acusou o Executivo de Telavive de ser constituído por “pessoas vingativas e sem moral”, que põem em causa a “existência” do Estado judaico. Claro que alguns dos visados, a começar por Bibi Netanyahu, reagiram de imediato e com o argumento da praxe: antissemitismo. Uma acusação absurda contra Golan, militar que serviu durante quase quatro décadas as Forças Armadas (as Tsahal, de que foi vice-chefe-general), além de ser visto como um herói nacional por ter sido dos primeiros indivíduos a prestar auxílio às vítimas dos atentados perpetrados pelo Movimento de Resistência Islâmica (vulgo Hamas), há 19 meses, que provocaram mais de um milhar de mortos e o sequestro de duas centenas e meia de cidadãos israelitas e de outras nacionalidades (dos quais se presume apenas uns 20 permaneçam vivos).

Os países da UE, o Reino Unido ou o Canadá acusam Israel de se comportar de forma “inaceitável”. Netanyahu diz que não abdica de controlar Gaza

As críticas à decisão de Netanyahu de “tomar o controlo” do território que Israel descolonizou há duas décadas, por vontade de um dos seus antecessores mais polémicos e que sempre lutou contra a existência de um Estado soberano palestiniano (Ariel Sharon), são agora mais que muitas. Vários países da União Europeia defendem a aplicação de sanções ao regime de Telavive, a suspensão imediata do acordo de associação com Bruxelas (29% das exportações israelitas têm o espaço comunitário como destino) e, claro, um embargo de material bélico. França, Reino Unido e Canadá admitem vir a reconhecer a Palestina como Estado independente ‒ 147 dos 193 Estados-membros da ONU já o fizeram ‒, enquanto a Suécia, por intermédio da sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Maria Stenergard, admite adotar medidas especiais contra todos os dirigentes israelitas responsáveis pela atual vaga de violência e porque “o território de Gaza não pode ser modificado nem reduzido”. Em declarações por telefone à alemã Deutsche Welle, Alaa Moein, 35 anos, um antigo residente de Jabalia, revela estar farto de promessas: “Nós vivemos num inferno. A segurança e a vida aqui já não fazem sentido. Todos os dias receio vir a morrer com a minha mulher e os nossos três filhos. À noite, quando conseguimos adormecer, sabemos que poderemos não voltar a acordar”.

Estatísticas

Terror

Alguns números da catástrofe iniciada a 7 de outubro de 2023

55 000
Total de mortos palestinianos de Gaza (53 mil) e israelitas (1500), desde os ataque do Hamas, há 19 meses

125 000
Feridos, militares e civis, do conflito

6 500
Estimativa de palestinianos de Gaza que ficaram estropiados e necessitam de próteses

71 000
Número de crianças palestinianas, com menos de cinco anos, que já sofrem de subnutrição aguda, segundo a OMS

57
Crianças palestinianas que morreram de fome desde março, quando Israel proibiu a entrada de água, comida e medicamentos em Gaza

470 000
Palestinianos que estão já numa situação de insegurança alimentar crítica (nível 5, o mais grave). Toda a população do enclave (2,1 milhões) perdeu o acesso regular e diário a comida

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“As eleições para a Assembleia da República constituíram um sério e grave revés para o Partido Socialista.” Assim começa a resolução aprovada pela Federação Distrital de Setúbal do PS, a exigir à direção nacional do partido que reconheça “uma responsabilidade coletiva do Partido e dos militantes, que impõe uma reflexão crítica ao que ocorreu e suas consequências”.

O documento, aprovado em reunião da Comissão Política Distrital e do Conselho Estratégico, sublinha a necessidade urgente de reencontrar a relevância política da esquerda face ao crescimento dos populismos de direita, mas exorta o partido a focar-se nas causas em vez de responsabilizar figuras. “Que se privilegie a análise política não fulanizada, ou seja, não centrada em pessoas, mas sim em causas, não se perdendo de vista a razão do progressivo crescimento dos populismos de direita e do simultâneo definhamento dos partidos e mensagem de esquerda.”

Os signatários, que incluem três deputados (André Pinotes Batista, Eurídice Pereira e Clarisse Campos), o ex-ministro da Educação João Costa e a presidente da Câmara de Almada, Inês Medeiros, além de várias outras figuras de topo do PS, pedem ao Secretariado Nacional do PS e aos Presidentes de Federação que essa análise seja acompanhada de uma “revisão programática” da Declaração de Princípios do PS (revista pela última vez há mais de 20 anos) e de uma “revisão programática” que vá de encontro às “preocupações da sociedade”, abrindo a discussão “a outros agentes cívicos, académicos, entidades representantes dos trabalhadores, associações e profissionais de diferentes setores”.

A resolução apela ainda ao diagnóstico racional das “políticas e formas de comunicação que geraram o desencontro vigente do PS com a sociedade portuguesa” e recomenda que “os processos eleitorais internos sejam respeitadores das exigências dos atos eleitorais próximos, desde logo das eleições autárquicas”.

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