Chegado a este dia da semana em que me incumbe o dever cívico e patriótico de redigir esta crónica para vosso gáudio, deparo-me com o recorrente dilema que assola aqueles que, como eu, pertencem ao grupo cada vez mais minoritário das pessoas com dúvidas.
Especifico: Escrevo sobre o nosso presidente da República que surgiu numa fotografia que ninguém inicialmente acreditou ser verdadeira a beijar a barriga de uma senhora grávida? Sobre a polémica em torno das touradas com anões mas que derivou para o lançamento de anões sendo que – por pouco – não incluiu também o sexo ao vivo com anões que me dizem ser apanágio de uma discoteca no Vale de Santarém? Ou sobre a alegada influenciadora Liliana Aguiar que se apresenta como formada em “coach integral sistémico” e que “foi para as redes” – usando uma expressão corrente – defender que o homem é quem deve ganhar mais e sustentar a casa porque é isso que diz a Bíblia, a qual – cito – “está muito bem escrita”.
Como escreveu Sartre, é a angústia da escolha. E, se isso não bastasse, ainda me dificulta mais, mesmo que escolhesse um desses temas virais, ter a certeza de que nada acrescentaria ao assunto que satisfizesse a maioria dos meus leiotxres (é assim que se escreve agora? Não faço ideia mas arrisco a sorte).
Reparem: A vida é muito mais facilitada para quem trata a realidade que os cerca de forma binária. Condenam-se uns ao ostracismo (o nome que antigamente se dava quando se fazia block na Ágora) e louvam-se outros erguendo-os ao Olimpo da concordância. Acredita-se piamente nos dislates de alguns, ou manifesta-se o cepticismo com dúzias de pontos de exclamação perante o ponto de vista de outros.
A biologia já explicou uma das causas deste comportamento. Os estímulos no cérebro causados pela concordância da opinião virtual dos outros com a nossa provoca-nos dependência. Por outro lado, os estímulos no cérebro provocados por discordarmos violenta e virtualmente dos outros também nos provoca dependência.
Em 1986, Jean-Didier Vincent já explicava no seu livro ‘A Biologia das Paixões’ o papel das endomorfinas. Mas só por volta de 2018 se começou a designar a dopamina como “heroína digital”, associando-o ao efeito de gratificação imediata a que ficamos viciados através de “likes”, coraçõezinhos, retweets e afins. E insultos ou clamores de “Vergonha!”, é evidente.
Aquilo que mexe cada vez menos com os nossos neurónios, estimulados pelo imediatismo, é o outrora singelo ato de pensar. Não ainda há muitos anos, éramos um país que colocava os livros científicos de António Damásio no topo da tabela dos mais vendidos. Sobre ‘O Erro de Descartes’ escrevia-se no ´Público’ em Fevereiro de 2000: “Tornou-se um sucesso até em Portugal, país avesso aos livros, com 50 mil exemplares vendidos até ao momento”. É discutível que fossemos na altura um país avesso aos livros. Não certamente quando comparados com muitos outros. E duvido que o sejamos agora. Todos os dias se editam livros profundos, didáticos, científicos e filosóficos. Ainda esta semana chegou às nossas livrarias ‘O Abismo Vertiginoso – Um mergulho nas ideias da física quântica’, escrito por um físico italiano. Quantos leitores terá a obra de Carlo Rovelli sobre a revolução iniciada por Heisenberg? Certamente menos do que os 85.200 seguidores da sistémica Liliana Aguiar. Mas isso não faz de nós um país de tontos. Ainda somos recuperáveis. A prova disso é terem aguentado ler esta crónica até aqui.
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