O fotojornalista Tiago Miranda está em Lviv. É dele a fotografia com a minha carantonha que acompanha esta crónica mas venho falar-vos de uma outra foto, obtida agora num bunker dessa mesma cidade junto à fronteira com a Polónia e que, depois de fundada em 1256 pelo grão-duque da Ruténia, foi sucessivamente polaca, austríaca e novamente polaca até se tornar ucraniana em 1939, não sabemos se definitivamente porque nada é certo na História deste lugar, entre repetidas farsas e tragédias que a geopolítica lhes traz na sorte desde há séculos.
A imagem, que o Tiago divulgou num post da sua página do facebook, revela uma enorme sensibilidade e cuidado. Ela inclui um grupo de pessoas adultas e um bebé. Mas esse bebé, embora ocupando o centro da fotografia e devido a um cuidadoso trabalho de luz, atrai o nosso olhar sem tornar-se um “objeto” do mesmo. Ele é-nos visível mas não exposto, para além da sua presença serena, ali onde não deveria estar, naquele lugar subterrâneo e apinhado de gente que se protege do mal que tomba sobre a cidade, com a mãe estendendo a mão protetora sobre o carrinho e envolto em roupa quentinha. O bebé está bem, diz-nos a foto. Pelo menos por enquanto.
Agradecendo a quem envia mensagens de preocupação, o Tiago escreve também no texto que acompanha a foto: “No momento em que o resto do mundo deixar ou se cansar de ler, ver e ouvir notícias sobre a Ucrânia. No momento em que as pessoas se deixarem de preocupar e forem às suas vidinhas. Terá sido tudo em vão”. E compreendo o que ele quer dizer, claro que compreendo. Como poderia não o fazer? Mas, ao mesmo tempo, vou à minha vidinha e ao sair de casa vejo mais uma vez o pescador que se encontra acampado frente à Assembleia da República, desde Setembro. Há sete meses que vive ali, entre tralha diversa, tendas e meia dúzia de cartazes que pretendem sem sucesso contar o que lhe sucedeu. A poucos metros do nosso Parlamento um indivíduo sem casa protesta, contra o Governo e “a máfia de Albufeira”, a perda de um barco de pesca durante mais de meio ano e tudo o que as pessoas fazem é contorná-lo e incorporar na paisagem, como normal, aquele aglomerado de madeiras e panos no meio do qual o pescador habita. Seguem as suas vidinhas, portanto, tal como eu que logo esqueço o pescador ao ver no telefone uma outra fotografia, com outro bebé, em outro bunker.
Oleksandr Kovalchuk nasceu na Ucrânia mas tem nacionalidade portuguesa e está retido com a família em Kherson, a primeira cidade ucraniana tomada pelos russos. A imagem que olho agora é uma selfie, tirada pela jovem mulher que sorri embevecida, com o bebé de poucos meses ao colo, enquanto Oleksandr entretém ao fundo o outro filho de dois anos. Estão ali porque a mulher quis dar à luz na terra natal e por isso ambos deixaram a sua morada em Albufeira. Essa mesma terra onde o pescador ficou sem a casa e o barco e por isso está também retido agora. Não num bunker em Kherson, mas acampado no epicentro de Lisboa.
Terão as nossas vidinhas espaço ainda para as histórias de ambos e outros como eles? As histórias de cá e de lá? “A indiferença é o sono da alma”, dizem-nos. Mas a alma também se cansa e tem sono, tantas vezes, nesta fadiga de sermos o mundo a que nos obrigamos todos os dias.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.