E quando parece que a Igreja começa a humanizar-se, graças à persistência e força tranquila daquele que será, talvez, o primeiro Papa cristão do último milénio, eis que alguém lá de dentro volta a remetê-la para o mundo das anedotas. Pedir a casais casados por matrimónio religioso, entretanto divorciados no civil e casados de novo, ou vivendo maritalmente com outra pessoa, que se abstenham de manter realações sexuais, no seio da nova relação, é, ao mesmo tempo, uma contradição nos próprios termos, um absurdo filosófico e um guião para um sketch humorístico. Ou antes: seria tudo isto, se não fosse um subterfúgio manhoso e hipócrita para, na prática, bater com a porta da Igreja na cara destas pessoas.
Poderia tratar-se de uma recomendação vinda de um sacerdote católico da velha escola, já com alguma idade e completamente senil. Ou de um frustrado sexual, com problemas não tratados de desempenho ou ressentimentos afetivos. Mas a ideia nunca viria de um qualquer representante do movimento conservador radical que, de forma quase cismática, se opõe à abertura encetada pelo Papa Francisco. É que estes, ao menos, são bastante claros e não arranjam subterfúgios para negar os sacramentos aos “proscritos”: os “recasados” não têm lugar na Igreja… ponto. Sabe-se com o que se conta.
Mas o abstruso surgiu de onde menos se esperava. De um bispo conhecido pela sua preparação intelectual e pelo conhecimento do mundo real, um homem ilustrado como o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. Será que se passou?…
É verdade que, nos últimos tempos, D. Manuel Clemente se tem distinguido, quer no plano da intervenção cívica, quer no da ortodoxia católica, por algumas – inesperadas,digamos assim – posições conservadoras. Mas é justo que as tenha e as defenda de uma forma racional. Agora isto? Imaginemos que dois católicos, casados pela Igreja, acabaram por ter de separar-se, sabe-se lá na sequência de que dramas pessoais. Que estão a refazer a sua vida, na companhia de outra pessoa, também praticante. Que encontraram um novo caminho para a felicidade. Mas que, a essa felicidade, é indispensável a vivência da fé, incluindo a participação nos ritos e nos sacramentos. Pois bem: o que é que lhes exige a sua Igreja? Que, na nova relação, vivam como irmãos! Ó sr. D. Manuel Clemente! Mas se é para isso, desculpe a expressão, por que diabo se casaram – ou juntaram os trapinhos?! E onde está o apelo cristão para a constituição de família e para a procriação?! Será que a Igreja está a dar dicas de ordem fiscal, para efeitos de IRS?…
Em que mundo viverá D. Manuel Clemente? Acha que um homem e uma mulher, que gostam um do outro e escolheram viver juntos vão fazê-lo em abstinência sexual? A sério? A violência desta exigência, a sua extrema desumanidade, a chantagem religiosa, a intromissão na vida privada, a violação da consciência e, finalmente, a sua inexequibilidade, transforma-a na atitude menos cristã de que há memória na História recente da Igreja Portuguesa. Já há quem – padre Rui Pedro Carvalho, diretor do serviço de Pastoral Familiar do Patriarcado de Lisboa (lido in Observador) – remeta a recomendação para a exortação apostólica Familiaris Consortio, de 1981, do Papa João Paulo II. Nesta versão, não seria D. Manuel Clemente quem estaria a ter “ideias brilhantes”, mas sim o próprio São João Paulo II. (Faz-me lembrar o argumento de Cavaco Silva, quando falou da solidez do BES, pouco antes de a falência do banco ter feito milhares de lesados, e veio depois dizer que tinha apenas citado o Banco de Portugal…) Reparem bem: 1981! D. Manuel Clemente agarra-se a uma recomendação de um Papa conservador exprimida através de uma velha “exortação” com quase 40 anos! Para quê? Para entalar o Papa Francisco?… Uma exortação pode ser atualizada ou mesmo revogada por uma nova exortação de um papa posterior. Ou tornou-se dogma da Igreja e já não pode?…
A exortação do papa (finalmente) cristão, de nome Francisco, intitulada Amoris Laetitia, é totalmente revogatório desta “exortação” de Joãso Paulo II do tempo da maria cachucha. Adapta a misericórdia da Igreja a novos valores, mais de acordo com a natureza humana. (O padre Anselmo Broges comentou esta quinta-feira que a recomendação de D. Manuel atenta contra a natureza humana…).
Se Francisco dá um passo em frente, D. Manuel dá dois atrás, talvez pressionado pelo crescimento dos tais contornos “cismáticos” do movimento ortodoxo que procura dividir a Igreja, também em Portugal, e que foi tema de capa na VISÃO n.º 1299. No fundo, cada diocese tem hoje autonomia para interpretar as palavras de Francisco – que verdadeiramente, reconheçamo-lo, não se sabe impôr. Já procurávamos padres que batizassem os nossos filhos sem determinadas exigências – padrinhos crismados, por exemplo… – enquanto outros se recusavam a fazê-lo. Agora, um “recasado” terá de procurar uma diocese mais tolerante e progressista para poder comungar. A confusão está instalada e D. Manuel Clemente é o responsável mais recente por essa confusão.
Não considero D. Manuel Clemente um prelado retrógado. Mas desconfio que se tornou cínico. Preferia pensar que não vive neste mundo. Que nada percebe de relações humanas, nem dos mecanismos da atração sexual – dom que, felizmente, Deus nos deu… -, nem da vida em comum dos casais. “Casem mas não façam truca truca”, além de ser risível, é a negação da bíblica frase “crescei e multiplicai-vos” – e isto só para aceitar, apenas em teoria e por momentos, que o sexo se destinaria, unicamente, à procriação…
Esta política do Vaticano… Do Vaticano, não: do bispo de Roma, de inclusão dos “recasados” está a provocar uma revolução no Direito Canónico. Para contornar o apelo do Papa, dispararam as anulações de casamentos. Aquilo que dantes era uma coisa séria, demorava anos, exigia milhentos requisitos e só podia ser concedido pelo Papa, a anulação de um casamento católico, agora é quase a granel. Assim, o “recasado” deixa de o ser. Este truque jurídico, uma espécie de “divórcio na Igreja”, começa a ser hoje aplicado com pouco critério, mediante o pagamento de um “pequeno estipêndio”. Ou seja, entrámos na era das indulgências do século XXI. Não tarda nada, aparece por aí um novo Martinho Lutero…
Já no caso dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, a posição da Igreja fora inexplicável. Fazendo tábua rasa do ensinamento de Cristo – a César o que é de César e a Deus o que é de Deus – A Igreja, para falar do caso português, tentou imiscuir-se na lei civil. Ora bem: ninguém pediu que os gays pudessem casar-se pela Igreja. Mais, a Igreja admite os sacramentos, incluindo o do matrimónio, a divorciados que apenas se tenham casado pelo civil. O que significa que, do ponto de vista canónico, o casamento civil não tem validade religiosa. Então, porquê tanta preocupação em impedir o casamento – CIVIL – de pessoas do mesmo sexo?… Se, para a Igreja, de qualquer forma, não há matrimónio…
Os consecutivos tiros no pé da Igreja, sobretudo os do tipo que foi agora disparado por D. Manuel Clemente, fará da instituição, um dia, mais cedo que tarde, uma associação do tipo seita: fechada sobre si mesma, enclausurada, sem contacto com a sociedade civil, observadora de normas absurdas e regras impossíveis, virada para o ritualismo, tomada por fanáticos sem humanidade, nem ponto possível de encontro com a mensagem do Evangelho.
O autor deste texto, educado catolicamente, batizado e crismado, casado pela Igreja, divorciado e a viver maritalmente uma nova relação, declara, a quem estiver interessado, que comungará de cada vez que quiser. Não sei se os que, como D. Manuel Clemente, procuram impôr aos fiéis regras desumanas, terão a consciência suficientemente tranquila para poderem fazer o mesmo.