Quando, em 1985, entrei para a tropa, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, para cumprir o serviço militar obrigatório, o tenente instrutor perguntou-me: “Qual é o nosso inimigo natural?” Educado no ambiente da Guerra Fria, ainda longe da queda do Muro de Berlim, respondi, sem hesitar: “A União Soviética”. Mas ele abanou a cabeça: “Não é. É a Espanha.” E eu caí em mim, como costuma dizer-se. Lembrei-me do episódio, assim que começou a falar-se de Brexit. A Europa é isto e a História tem muita força.
Os ingleses são muito à frente.Têm uma personalidade identitária fortíssima, imune ao medo e à chantagem, como acabam de demonstrar, e têm um espírito pragmático, inexistente noutras culturas. E têm fibra: isolados contra a Europa dominada por Hitler, aguentaram, de cara alegre, sozinhos, os bombardeamentos da Luftwaffe. Devemos-lhes essa.
Essa resistência ao nazismo e o próprio exemplo de integração da sua capital, uma Babilónia de nacionalidades, desautoriza automaticamente o argumento de que esta votação foi dominada por sentimentos xenófobos. O fantasma da imigração foi agitado, mas seria redutor considerá-lo decisivo. Nem eles merecem essa acusação.
A motivação tem raízes históricas. Eles nunca confiaram nas potências continentais, desde que foram invadidos. Quando foi isso? No tempo das legiões de César…
Têm o precedente de Henrique VIII, que cortou com o papado de Roma, a “União Europeia” de então. Fizeram alianças, sempre, com o primeiro objetivo de dividir, de servirem de contrapeso a hegemonias comerciais, marítimas, industriais ou militares que temiam: com a Rússia contra a França, com a Rússia e a França contra a Alemanha, com o eixo franco-alemão (vulgo CEE) contra a Rússia. A política externa foi sempre atlantista, oposta ao centralismo continental e ao outro lado da Mancha. Entraram no Mercado Comum por essas razões estratégicas e porque lhes convinha, do ponto de vista comercial. Não estão dispostos a viver numa Europa Unida onde tenham por cima deles o poder alemão, ou franco alemão. As razões económicas que os animavam não se mantêm, num espaço europeu estagnado e cristalizado nas políticas e nas normas. Logo eles, que tanto prezam a liberdade! Por isso sairam. Já não pertenciam ao Euro nem a Schengen, o que torna a saída mais fácil. Têm uma moeda forte que, passada alguma turbulência, se manterá forte. Têm a sensação de que a Europa precisava mais deles do que eles da Europa. E não deixarão de invocar a reversão do argumento de que estariam isolados do Continente: o Continente é que volta a estar isolado das Ilhas Britânicas. Prezam a liberdade acima de tudo, mesmo que, por ela, tenham de pagar um preço – mas, 5.ª economia mundial, duvidam que venham a pagar o preço da penúria. São os primeiros a saltar de um navio que mete água por todo o lado. Viram o iceberg antes de todos os outros.
Vão sofrer consequências. Pela primeira vez em 400 anos ficam isolados, mas sem colónias. Arriscam regressar à irrelevância pré-mercantilista. Correm o risco de implosão, com as divisões que já se sentem na Escócia, na Irlanda do Norte e, até, em Gibraltar… mesmo assim, vão em frente. Mantêm-se preponderantes na NATO e, previsivelmente, privilegiarão, no futuro, as parcerias com a América do Norte, com os EUA e o Canadá, deixando o Continente entregue às suas crónicas rivalidades, conflitos e irreversível declínio. Passarão um mau bocado mas arriscam, porque esperam que valha a pena. E até o desmembramento anunciado tem muito que se lhe diga: qual a lógica, do ponto de vista da Escócia, em desistir da pertença ao Reino Unido só para pedir a adesão a uma coisa que se está a desfazer (a União Europeia)?… Isso não é nada líquido.
Portugal deve pensar na sua vida e no que isto significa. Toda a política externa de Portugal, do século XIV até à segunda Guerra Mundial, se baseou na relação bilateral privilegiada com o Reino Unido. No comércio, nas políticas de segurança, na defesa. Monarquia, 1ª República e Estado Novo. Os britânicos sacaram muito mais do que nos deram, é verdade, e portaram-se como predadores que também são. Portugal foi, durante largos períodos, um protetorado distante. Pela predação, pagaram um pequeno preço: a garantia da nossa segurança e da nossa, ao menos formal, soberania relativamente ao centralismo de Madrid (inimigo histórico comum…) e o escoamento das nossas exportações. Partilham connosco a dimensão e vocação atlânticas. E até o fuso horário…
E o que temos? Pela primeira vez na história, Portugal opta pela integração num todo centralista e continental, contra todas as probabilidades de sucesso e assumindo a sua condição de periferia distante. Mais tarde ou mais cedo, os portugueses vão ter de pensar nisto. Triste seria se nos coubesse a função própria do tipo que apaga a luz: o último a sair.