Do ponto de vista antropológico, o Natal constitui um complexo sistema cultural e simbólico-religioso. Como prática cultural, é profundamente marcado por rituais, elementos imaginários e símbolos, que refletem o sagrado-religioso de uma sociedade/comunidade/grupo. Realizado no solstício de inverno, no contexto doméstico, no lar(eira), constitui um dos rituais centrais de sociabilidade, funcionando como elemento de coesão familiar e social, manifestação de afetos, transmissão de valores e (re)atualização de identidades, memórias e narrativas coletivas e familiares.
É pertinente realçar que essas tradições (e símbolos) do Natal, com origem na Europa medieval, foram incorporadas/integradas na cultura ocidental, nomeadamente na Escandinávia, no Reino Unido e na América do Norte. Nos Estados Unidos, em particular, seguindo uma lógica comercial, foram materializadas em inúmeros e famosos filmes e músicas/musicais, que hoje são populares em todas as partes do mundo.
Segundo Andrew Collins, na obra Stories behind the great traditions of Christmas (2003), no contexto do Natal, destacam-se vários ritos, rituais, cerimónias, elementos e personagens, imaginários e reais: Pai Natal/Santa Claus; árvore de Natal; coroas; luzes, velas e iluminações; presépio; música e cantos natalinos; cartão postal; meias na chaminé; bastões de doces; biscoitos e leite para o Pai Natal; missa do galo e a troca de presentes.
A Ceia desempenha um papel central no Natal. Como celebração do nascimento de Jesus, a comensalidade é um ritual de (re)união. Simbolicamente, representa a abundância, a partilha, a comunhão. Com uma culinária específica de cada país, cultura, região, à mesa reúne-se a família – avós, pais, irmãos, tios, primos, adultos e crianças ocupam lugares específicos, tanto na mesa como na narrativa familiar, numa (re)afirmação do sentimento de pertença e continuidade geracional. É um momento especial, de encontro familiar, envolvendo deslocações, reorganização de rotinas e de preparação cuidadosa de espaços domésticos. É um tempo extraordinário, de liminaridade, distinto do quotidiano, com narrativas históricas compartilhadas, o que contribui para a (re)produção de uma memória coletiva familiar. Do ponto de vista religioso, e numa lógica espiritual-eucarística, evoca o acolhimento de Jesus, a partilha do alimento, do pão e do vinho, onde comer juntos significa reconhecer o outro como irmão e tornar presente um mistério que une o humano ao divino.
No que se refere especificamente às tradições em Portugal, na ceia de Natal, o bacalhau, a couve e o azeite assumem um profundo significado simbólico. Do ponto de vista religioso, o bacalhau, enquanto peixe, evoca um antigo símbolo cristão, está ligado à tradição católica da abstinência de carne, expressando sobriedade, humildade e preparação espiritual para o nascimento de Cristo. A couve, associada à terra e à subsistência camponesa, resistente ao frio e verde em pleno inverno, simboliza vida, continuidade e esperança. O azeite está associado à bênção, consagração, proteção e à graça divina. Utilizado nos sacramentos (batismo, unção dos doentes, crisma), simboliza a presença do Espírito Santo. Na ceia, esta trilogia, de carácter sagrado, funciona como elemento mediador que sacraliza a refeição, trazendo harmonia e bênção sobre a família e a casa. Ou seja, em conjunto, bacalhau, couve e azeite formam uma refeição ritual, reforçando a comunhão da família com Jesus, que une mar e campo e marca um rito de passagem do tempo de contenção para a abundância de comida – o farto almoço do dia de Natal, com o consumo de carne e doces.
Em síntese, o Natal revela-se, do ponto de vista antropológico, como um fenómeno cultural de enorme significado, no qual se entrecruzam dimensões sociais, económicas, religiosas, simbólicas e afetivas. Longe de ser ‘apenas’ uma celebração religiosa ou um evento festivo do calendário cristão, constitui um poderoso mecanismo de (re)produção cultural, capaz de atualizar memórias coletivas, reforçar identidades e promover a coesão social e familiar. Os seus rituais, símbolos e personagens – resultantes de períodos históricos diversos, combinando elementos pré-cristãos, cristãos e modernos/comerciais – demonstram a notável capacidade das culturas, sociedades e grupos de reinterpretarem e ressignificarem cerimónias do solstício de inverno (Saturnália). Assim, o Natal, quer nas tradições universais, quer nas especificidades locais, continua a funcionar como um espaço privilegiado de transmissão de valores e de reforço do sentimento de pertença, confirmando o seu papel central na vida cultural e simbólica das sociedades contemporâneas.
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