A vantagem de ter o melhor do mundo do nosso lado é a de saber que ele não falha nos momentos decisivos. Foi isso que se viu, em Sochi, no embate frente à Espanha – a única outra seleção que, tal como nós, pode dizer que foi campeã da Europa de futebol na última década.
A lição foi dada logo nos primeiros minutos da estreia de Portugal neste Mundial, mal o árbitro apitou para a marca da grande penalidade: um lance conquistado por Cristiano Ronaldo de uma forma que nos fez lembrar os seus antigos tempos de extremo, rápido e desconcertante. Os tempos em que partia para cima dos defesas com um único pensamento: se me deixam passar faço golo, se não deixam… têm de me fazer falta, neste caso fazer penalti (Nacho, decididamente, já não se lembrava dos vídeos antigos de CR7…).
Foi aí, logo no início do encontro e quando os espanhóis pareciam não ter ouvido ainda o apito inicial do árbitro, que se viu Cristiano Ronaldo entrar naquilo que, há umas décadas, os atletas americanos passaram a chamar “the zone” – um estado de fluidez mental, capaz de nos fazer abstrair de tudo em nosso redor e nos deixar concentrar apenas no nosso objetivo, segundo os estudos popularizados pelo cientista Mihaly Csíkszentmihályi, de origem húngara, mas que ensinou durante anos na Califórnia, onde escreveu o livro “Flow: The Psychology of Optimal Experience”, publicado em 1990, e que foi avidamente consumido no desporto americano, em especial na NBA.
Cristiano encontrou depressa a sua “zona” no relvado de Sochi. Ainda os jogadores espanhóis estavam a pedir a intervenção do VAR, já ele tinha levado a bola para o local da falta e, serenamente, de olhos na baliza aguardava pelo apito do árbitro. Indiferente a tudo o que se passava em seu redor. Ignorando até a presença do guarda-redes David De Gea que, numa manobra normal nestes casos, tentou desconcentrá-lo, parando à sua frente, enquanto se dirigia para a baliza. Sem êxito: Cristiano estava apenas concentrado no que tinha de fazer, ainda para mais com a cabeça fresca, porque o jogo mal tinha começado.
“A partir do momento em que entras nesse estado, tu percebes que estás lá. E as coisas à tua volta começam a mover-se quase em câmara lenta e a tua concentração fica absolutamente focada no teu objetivo. De tal forma, que até consegues adivinhar o que o teu adversário quer fazer”. A citação é de Michael Jordan – proferida nos tais tempos que popularizaram o conceito da “zona” – mas poderia ter sido repetida, naturalmente, por Cristiano Ronaldo, em Sochi. Foi isso que se viu, pelo menos, com a forma como correu para a bola e chutou, com precisão, para o primeiro golo da noite, indiferente a tudo e todos.
Mais de oitenta minutos depois, Cristiano Ronaldo continuava na mesma “zona”, a demonstrar essa capacidade extraordinária de cumprir algumas das características enunciadas por Mihaly Csíkszentmihályi: completa concentração na tarefa assumida, objetivo claro, facilidade de execução, consciência e ação num único movimento, além de uma sensação plena de controlo sobre tudo o que está a acontecer na competição.
Vale a pena rever todos os momentos ocorridos entre os minutos 85 e 87, no jogo frente à Espanha. A forma como Cristiano Ronaldo recebe a bola, de costas para a baliza, à entrada da grande área, e depressa toma a decisão de a proteger… e esperar a falta do defesa. Era esse o seu objetivo naquele momento. Um objetivo claramente enunciado na forma como, imediatamente, pegou na bola e… reentrou na “zona”, apenas com os olhos na baliza, a mente a focar-se em tudo o que precisava de executar, mal o árbitro fizesse soar o apito: os quatro passos até à bola, a posição perfeita do corpo para que o seu pé direito pudesse impelir a bola numa curva perfeita sobre a barreira.
Felizmente, ficou tudo gravado em vídeo. São mais de 90 segundos nesse “estado”, com Cristiano parado, no local que delimitou em quatro passos à retaguarda, sempre a controlar a respiração, de forma lenta, e de olhos fixos no objetivo. Nos últimos momentos desse período de concentração, percebe-se que ele está absolutamente abstraído de tudo o que se passa à sua volta – podiam desabar as bancadas, registar-se uma invasão de campo nas suas costas, que ele continuaria focado única e exclusivamente na sua tarefa.
Após o apito do árbitro, deu três passos e, ao completar o quarto, chutou a bola com o seu pé direito, fazendo-a curvar pelo lado de fora da barreira – esquivando até a tentativa desesperada de Busquets, num salto inglório – fazendo-a entrar na baliza de um desconsolado De Gea. Foi um enorme golo de pé direito, é verdade. Mas foi, acima de tudo, o golo de um enormíssimo atleta que, nos momentos certos, saber entrar “na zona”. Graças à sua maior arma: a cabeça.