O Pecado Original: Amor (não) é…
Viva, São Valentim (ou deverei dizer Valentino, que sugere vigor e saúde e é nome de perfume?) Há coisas que me intrigam e a celebração do dia em que perdeste, literalmente, a cabeça e a vida, por ordem do então imperador Cláudio II, é uma delas. Já se sabe que quem conta um conto acrescenta-lhe sempre um ponto e, desde o ano 270 até hoje, tem havido terreno fértil para especulações. Ventila-se por aí que “estes romanos são loucos”, que já naquela altura os soldados eram proibidos de casar por as autoridades entenderem que a consumação do sacramento prejudicava o seu desempenho.
Um parênteses: ainda há muito bom treinador por essa Europa fora, Portugal incluído, que comunga desta teoria. Adiante. Sabendo tu, tão bem quanto eu, que os prazeres proibidos são os mais apetecidos – proibir algo é o mesmo que defini-lo e torná-lo inesquecível – não resististe à ousadia de celebrar casamentos à revelia da autoridade.
Nem o facto de seres bispo te valeu: acabaste no calabouço e antes da sentença de morte ainda te despediste, com um simpático bilhete, da filha do carcereiro. É isso. Parece que há uma certa magia nas histórias que envolvem tormentas e provações, sempre inferiores ao gozo que dá seguir o ímpeto, a vontade e um ideal de verdade.
A Causa do Sintoma: (E)namorar-se é “obrigatório”
Não poderias prever, Valentim, que num futuro longínquo serias promovido a Santo e, em pleno século XX, despromovido por falta de dados históricos que comprovassem a lenda em que te converteste, que incluía até a realização de um milagre. Não poderias prever que o teu nome ficasse, para sempre, na cultura pagã, associado ao paradigma do amor romântico, impossível, interdito e, como tal, desejado.
Hoje temos esta coisa estranha que consiste em, uma quinzena antes do Carnaval, ter de se cumprir a “sedução” no Dia dos Namorados. Sim, é isso que lhe chamam, embora a data também seja conhecida pelo teu nome, com direito a “São” e tudo. Apaixonar-se e seduzir por decreto. Enfim, há quem invente uma gastrite só para não ter de desembolsar uma nota num restaurante pejado de corações e bonecos, juntamente com outros casais de comensais com olhar perdido no ecrã do telemóvel, quem sabe, a seduzir clandestinamente alguém, nas barbas (sim, estão na moda!) do “oficial” (que se comporta como um cavalheiro), ou diante do olhar perplexo e viperino da “querida legítima”.
Valentia, Paixão… e isso é Amor?
Entre dar a vida por paixão ou ideal e combater até ao limite das forças por convicções inabaláveis venha o Diabo e escolha. O certo é que qualquer destas opções – em rigor, trata-se de uma falsa escolha – tem muitos adeptos e seus seguidores fiéis.
Entre os teus rivais, destaco dois. Cupido, filho de Marte (deus da guerra) e de Vénus (deusa do amor), o enfant terrible sempre pronto a lançar setas ao coração dos mais incautos, empresta hoje o nome a uma app/site de encontros que angariou fama à escala global. Por seu turno, Santo António (de Lisboa, de Pádua, pouco importa) é o padroeiro de todos os que desejam comprometer-se, na saúde e na doença, no melhor e no pior, na continuidade, na permanência, sem as hormonas em hora de ponta. A melhor definição para “O amor é…” que me ocorre no momento.
O comum dos mortais aprecia quem surpreende e sai da norma, por desobedecer em nome de prazeres que geram endorfinas ou partilhar uma visão iluminada acerca do que une os seres humanos. Tenho para mim que estamos “condenados” a ser livres (obrigada Sartre) e a viver nesta ambivalência, sem que daí venham danos de monta. O segredo está na arte de combinar os ingredientes à medida de cada um, sem misturas indigestas.
“3 em 1”: Abundância ou festa a mais?
Posto isto, convido-te – a ti ou ao teu holograma, com tronco em forma de V – a sentares-te por alguns momentos e ficares a par das últimas (aviso: não mates a mensageira, sim?)
Aqui vai o que podia ser uma ficção distópica mas que é a realidade nua e crua: então não é que na véspera desta data singela, se comemora o Dia do Preservativo? E que no dia 14 os nossos irmãos brasileiros celebram o Dia da Amizade? (apetece-me indagar se as amizades coloridas também podem ser festejadas nesta data do calendário gregoriano ou se é preferível manterem-se em território indeterminado, sem direito a rituais, uma vez que os seus praticantes se consideram numa categoria à parte). Porque não há duas sem três (é só para rimar com “a conta que Deus fez”), aqui vai mais uma: o Dia dos Namorados dos Namorados está a ser disputado com o Dia da Disfunção Erétil.
A intenção até pode ser boa, mas há dias em que o coração não aguenta e a cabeça lateja (desculpa, não foi feliz o uso da palavra “cabeça”, sobretudo tratando-se de ti, homem de bravura e vigor e com um fim de vida tão traumático).Quando a oferta é muita, desconfia-se. Se for esse o caso, só há uma coisa a fazer: simplificar. Ou seja, ignorar a ortodoxia dos números e normas, alegremente e sem culpa, seguindo apenas as “leis” do corpo, da mente e do coração de cada um.