“Estás a dormir na forma, ou quê?” Investida de uma dose razoável de lata, eu respondia: “O quê?” Isto aconteceu quando entrei no mercado de trabalho, o que implicou essa tarefa hercúlea de disciplinar a hora de ir para a cama e obedecer ao desopertador matinal. Pouco dada a adormecer no comboio e no autocarro, era praticamente certo aquele momento bizarro, após o almoço, quando eu me sentava no local de trabalho e ficava um pouco mais lenta e alheada do que o meu normal.
Ao longo dos anos, pouca coisa mudou. Continuo a ter dificuldade em entregar-me ao sono em ambientes com pouca privacidade e onde haja luz ou ruído. Invejo, por isso, quem dorme a sono solto e em qualquer posição. Quem “apaga” em voos de longo curso. Quem se encosta a um tronco de árvore ou ombro amigo e entra no mundo dos sonhos durante um festival de música ou num parque de campismo, em plena época alta. Quem dorme a sono solto em camaratas de hosteis ou dentro do seu saco-cama, no chão de uma sala.
Lembro-me bem de quando fui numa viagem com um grupo de amigos ao norte de África. Toda a gente, exceto eu, se deleitava, ao luar, a conversar e a gargalhar até cair para o lado, na parte superior das casas de adobe. Lembro-me de como permaneciam em estado não consciente quando o sol se erguia no horizonte e lhes batia na cara. “É pena”, costumam dizer-me. “Tens que tratar disso”. Disso, a dificuldade em cair no sono. Talvez uma parte do mistério resida aí, nesse “cair” ou “render-se”, o oposto do estar de sentinela, com espertina, ou em modo vigilante (e, não raras vezes, hipervigilante, que é o estado em que se fica durante resposta de stress, nas situações de emergência, de guerra ou em catástrofes naturais). A verdade é que não sinto que isto seja um problema, pelo menos agora, que encontrei a minha forma de manter o equilíbrio entre sono e vigília. Já explico.
Longe vão os tempos da inocência. Aqueles em que ser ‘short sleeper’ é que era, ia-se lá perder tempo agarrado à almofada quando se podia fazer tanta coisa mais interessante… Hoje abundam investigações que demonstram como o débito de horas dormidas ou a má qualidade do sono afeta os sistemas circulatório, metabólico e imunitário, para citar apenas alguns, complicando a gestão de doenças crónicas como a diabetes ou a hipertensão. Sabemos ainda que quem tem condições socioeconómicas mais favorecidas sofre menos complicações de saúde, que incluem o sono e a qualidade do mesmo. E que quem pouco dorme tem mais probabilidades de sofrer acidentes, de viação e outros, por cometer mais erros de desempenho.
O sono é essencial para reciclar a atividade mental que se teve durante o estado de vigília. Viva, pois, a fase REM (rapid eye movement), que nos agita o corpo sem que nos demos conta. Vivam os vários ciclos de sono, com ondas cerebrais profundas, que restauram a bonança neuronal e nos deixam finos para receber o novo dia. Mais importante ainda, é durante esse estado de desligamento dos sentidos que a aprendizagem e a memória se consolidam, facilitando até a resolução de problemas e legitimando expressões como “dormir sobre o assunto” ou “o sono é um bom conselheiro”. Menos bem na fotografia ficam os que têm apneia do sono, que ressonam, que têm pesadelos e sonhos recorrentes, pois os seus dias deles não são assim tão melhores que as noites.
Como fazer então, sempre que o padrão de sono entra numa fase disruptiva? Ou quando se trabalha sem luz dia? Ou por turnos? E quando se viaja numa base regular para paragens longínquas e se anda com os fusos horários às avessas? Isto sem esquecer as noitadas, em trabalho ou em lazer. E as noites em claro, porque algum evento foi suficientemente intenso para nos tirar o sono? Não há receitas. Há, contudo, soluções que funcionam à medida. Por exemplo, a melatonina (com ou sem extrato de valeriana e afins), que pode ser adquirida nas farmácias e nas lojas de produtos naturais, facilita a vida a muito boa gente que acabou de regressar de uma longa viagem ou de um turno laboral.
Se, após uma noite mal dormida ou com poucas horas de sono, precisar de ter rendimento e estiver com aquela “moleza” que não se aguenta (e não tiver problemas cardíacos), compensa, e bem, tomar um café e fazer uma pequena sesta logo a seguir. Não só consegue “passar pelas brasas” como ainda vai despertar com um vigor semelhante ao matinal! E por fim, convém não esquecer aquele momento Zen, que dá pelo nome de “mindful”, ou “atenção plena”, em que se permite estar consigo e, durante alguns minutos, concentrar-se em não fazer nada, mas mesmo nada, que não seja apenas estar consigo, presente, focado nos sons da respiração, nas sensações corporais e até nos pensamentos ondulantes, por vezes erráticos, acompanhados de emoções e memórias, ou de preocupações pelo meio, que terá a capacidade de perceber e deixar passar, porque tudo passa e nada fica para sempre. E há coisa que seja mais retemperadora do que uma fase de pausa?
E agora, o parente próximo do sono, mas que nada tem a ver com dormir. É o sonhar acordado. Esse estado nebuloso e etéreo, em que uma pessoa não se sente nem cá nem lá, que não é um limbo nem tem uma definição precisa, sendo a mais comum a de “estar nas nuvens”. Hoje, com os sistemas de cloud computing, estamos todos, queiramos ou não, nas nuvens informáticas. As outras, em que temos, apesar de todo, a impressão de ter maior controlo, compete-nos a nós gerir. E que bom pode ser estar “onde não se está”, ir onde “não se foi ainda” e ficar “onde nada acontece que seja palpável”. É nesse estado alterado de consciência que tudo pode acontecer. Tecnicamente falando, trata-se de um estado de transe, como aquele em que estamos a conduzir até casa sem plena consciência de estar em modo de piloto automático, enquanto a mente está ficada noutro lado, noutro tempo, noutro filme. E é aí que, diz quem sabe, surgem os melhores insights, os melhores “eurekas”, que quase nos dão a impressão de estar a ter uma experiência “do outro mundo”.
Sonhar acordado pode ser tão ou mais sedutor do que pouco dormir (ok, continua a haver gostos para tudo; quem não se lembra de ter ficado a jogar até tarde ou perdido em deambulações pelas redes sociais que atire a primeira pedra). Ou do que desejar fazê-lo a toda a hora (aninhar-se no sofá ou na cama, com o cobertor, a manta ou o edredon entre as orelhas e perder a noção do tempo, do espaço, e desligar os sensores por tempo indeterminado, com direito a sonhos abundantes ou fases de repouso em modo “flat”, sem memórias de qualquer espécie). Convenhamos que, em tempos de 4 e 5G, é politicamente menos correto desejar estar em off, mas é justamente aí que reside o encanto, o aceder ao fruto proibido, o sono solto, dos justos, semelhante ao dos bebés. “Ou está deprimido(a) ou é preguiça, pura e simples”. A quem profere estas deixas, apetece-me devolver o, ainda popular creio, refrão “Eles não sabem que o sonho…” Acordados ou a dormir, que não nos faltem os sonhos. E o sono, essa figura misteriosa representada nas artes durantes séculos a fio, que não nos falte também. A tortura é quando assim não acontece. Que não se desqualifique, portanto, a beleza e utilidade que há no ato de dormir, desvirtuando-o com afirmações do tipo “dorme, mas é, que hoje não me apetece” ou “passam-te à frente porque andas a dormir” ou ainda “se era para estares a dormir, mais valia não teres vindo”. Há intimidade maior do que dormir ao lado de alguém que nos observa? Ou contemplar quem dorme ao nosso lado?
Em síntese, se pelo menos um terço da nossa vida é passado a dormir e mais outro tanto a sonhar acordado, saibamos desfrutar do tempo que resta para criar a melhor versão de nós mesmos durante a curta janela de vigília onde nos encontramos e fazemos coisas e mudamos o mundo, com outros sonhadores e dormidores, como nós.