Não sei se é da globalização ou de qualquer coisa que eu comi, mas alguma coisa deve ser – e não deve ser boa – porque desde finais de outubro que “aquela sensação de azia e de mal-estar” (de que falam os anúncios a medicamentos de venda livre) não me larga. Até sobrevivi bem à febre do regresso às aulas e aos humores flutuantes que marcaram o ano, tão pródigo em surpresas desagradáveis. As doses generosas de sol, gastronomia, futebol e festivais de verão foram autênticas vitaminas para lidar com os momentos piores. Foram os atentados. Os acidentes naturais e aqueles que, de tão frequentes e trágicos, se encaram como normais. Foi o “adeus, até sempre” a pessoas que, pela sua genialidade inspiradora, marcaram uma época e me tocaram, a mim e a tantos outros, deixando-nos nostálgicos e com um estranho sentimento de orfandade.
Por mim falo. Sei que a vida é difícil. Ou difícil saber vivê-la, para ser mais exata. A minha intenção não é pedir receitas para tornar tudo mais fácil. E para hoje, de preferência (o “para ontem” já ninguém leva a sério; a expressão ganhou pó e fuligem, coisas que é impossível detetar na tua farpela nova e pronta a usar, “Made in China”). Não vale a pena facilitar. Dizem que perde metade da graça, que facilitar só complica e que as pressas dão em vagares. Dizem ainda que o Natal é quando se quer. A questão é o querer. Por exemplo, eu não queria que todos os anos, aos primeiros acordes do “Jingle Bells” que se ouvem por aí, a minha mente seja invadida pelo recalcado “não faz mal, não faz mal, fica pró Natal”. Neste solstício de inverno, dei por mim a desejar doses extra de paciência e suplementos de imaginação para poder sonhar sem reservas.
E chegas tu, Pai Natal, sem aguardar pelo momento certo. Sem esperar pelas cartas e mails com desejos e fantasias. Desaprendeste a técnica – ou a arte – de entrar discretamente pela chaminé (sem ninguém a ver nem a filmar!).Tu e os teus clones empoleiram-se à vista de todos nas janelas das moradias e andares urbanos. Podias limitar-te a passear na rua, sem te impores de tal maneira em tudo o que é anúncio, ao ponto de mea petecer ter um comando para desligar-me da tua figura – desculpa a franqueza – um pouco persecutória. Não leves a peito, por favor.
Digo-te isto porque, entre os jovens e menos jovens que envergam a tua farda e a tua barba (não é azul, mas intimida à mesma) para ganharem uns trocos, têm havido casos de stress agudo. Uns, por serem mais vulneráveis a observações corriqueiras que interpretam como ofensa: “Pais Natais há muitos” (e nenhum promete preços iguais ao seu clone). Outros lamentam o excesso de oferta, que desvaloriza a magia e, pior, adultera-lhes as memórias de infância para sempre. Há os que testemunham, impotentes, conflito atrás de conflito, entre adultos e crianças, a compararem etiquetas e promoções, numa competição natalícia sem precedentes. E, ainda, os que ficam esmagados pela rejeição quando se confrontam com cenas como esta: “Não faz mal filho, quando os pais Natais forem embora, voltamos cá e levamos por metade do preço” (e a criança, atenta, pergunta: “E isso é quando?”)
É por estas e por outras que eu fiz das tripas coração e resolvi dirigir-te esta carta. Há mais duas coisas que, este ano, faço questão de partilhar contigo, sem autocensura nem constrangimentos morais. Começo por alguns pais, que andam irritadiços com as correrias aos centros comerciais e esgotados com a multiplicação de souvenirs, mais a logística da véspera e do dia, quem leva quem e o quê, para onde e como… agastados com tudo isto, descarregam no trânsito e, à mínima solicitação da prole, têm acessos de fúria. Porém, o que os tira mesmo do sério, sobretudo aos que não veem com bons olhos que se fale de sexo aos garotos na escola, é darem com os petizes, deliciados a imitar, uns com os outros, o que veem no Youtube, no Instagram e em circuitos que eles, adultos, desconhecem (nem procuram conhecer, de tão ocupados e distraídos nas rotinas multitasking). Refiro-me aos videoclips de Boas Festas, com legendas sugestivas como “pelo corpo todo” e aos que têm protagonistas de ambos os sexos, em poses sugestivas e indumentária a condizer, a cantar de viva voz “All I want for X-mas is You”. O presente és tu, estás a ver? Se calhar eu não fui muito clara, há pouco: quanto menor a exposição das prendas, mais os destinatários pensam em ti, mas de outra forma, mais subtil, sem te colocarem na delicada posição de objeto de consumo erótico (Não sei se isto te afeta e em que termos).
Arrisco-me a ultrapassar o tempo de leitura a partir do qual as pessoas (incluindo a tua) não continuam a ler (acho que é o algoritmo que permite saber isso, mas isso também não interessa agora). Só mais uma coisa, daquelas que só se dizem quando se está mesmo de saída. É sobre o espírito do Natal. Sabias que há crianças que pensam que “ir a Belém ver o Deus menino” é passear nos Jerónimos, ver montras com brinquedos infantis e comer pastéis de nata? Ou que Jesus é aquele senhor que foi treinador do Benfica e parece que fala um pouco de cada língua (qual Babel), do espanhol ao mandarim? Não é o fim do mundo. Com jeito, empatia e alguma sensatez, isso resolve-se. Já o jantar em família, que quase só se cumpre nesta altura do ano, parece mais problemático. Seja por falta de prática ou outras razões, a ceia e o almoço natalícios pouco têm do espírito da melodia “Silent Night” e geram muitas dores de cabeça (não tão grandes como as do parto, nisso estamos de acordo, mas são críticas, ainda assim).
Vendo bem, até a história da Sagrada Família – com Maria, José e Jesus na manjedoura – não é feita de facilidades. O Natal, símbolo do nascimento, rima com ‘contentamento’, mas também com ‘sofrimento’. Ou porque já não está cá quem fazia falta. Ou porque os filhos dizem, sem rodeios, que o Natal na casa da mãe é melhor que o Natal na casa do pai (e vice-versa). Ou, ainda, porque adultos e crianças ficam divididos, não pela distância física, mas devido aos dilemas afetivos sem soluções prontas a usar (lealdades a pais, sogros, filhos e enteados, madrastas e padrastos, genros e noras, netos e todos os ex e novos parceiros, namorados ou cônjuges, que cabem nesta geometria).
É aí que tu, Pai Natal, podes fazer a diferença e aperfeiçoar competências (se precisares de um coach pede; quem tem boca vai a Roma). Por vezes é preferível deixar os sentimentos não convidados (fragilidade, tristeza, insegurança, culpa) sentarem-se à mesa sem que tenhas de encobri-los, quase compulsivamente, com o que trazes no saco. Talvez não te levem a mal se disseres, com amor, humor e alívio, “vão chamar pai a outro”. Aposto que haverá menos rostos e dedos agarrados a prendas e objetos interativos e mais banda larga para seres mais um entre iguais nesta festa imperfeita, à semelhança da própria vida.
Nem sabes como te agradeço o teres chegado até aqui. A tua atenção não tem preço. Imagino que precises de descansar depois disto. Cá estaremos de novo, para o ano, se Deus quiser (ou o acaso e misteriosas leis da vida o permitirem).