
Se há coisa que aprecio é validar as teorias futuristas, largos anos depois de fazerem sucesso. A antevisão da sociedade do século XXI proposta no best seller de Alvin Toffler, A Terceira Vaga (Livros do Brasil, 1999, originalmente escrito em 1980) é um desses casos. Neste ensaio, a dissolução da instituição casamento seria o efeito natural da revolução económica mundial que aí vinha.
E veio. Na viragem do milénio surgiram os sites de encontros extraconjugais (chegaram a Portugal uma década depois). Enquanto meio mundo andava distraído a tentar a sorte prometida pelo slogan “A vida é curta, tenha um caso”, um grupo de piratas informáticos transformou um verão quente num facto noticioso escaldante.
Imbuídos do lema ‘a cada crime, seu castigo’, ou ‘traição, com traição se paga’, os hackers da dark web apropriam-se dos dados do gigante Ashley Madison (mais de 30 milhões de membros em todo o mundo,120 mil portugueses) e divulgaram 9,7 GB de informações privadas: nomes, endereços, dígitos de cartões de crédito e gastos efetuados. Danos colaterais: dois suicídios, uma demissão (de Noel Biderman, fundador da rede e CEO da sua detentora, a Avid Life Media Inc) e muitas dores de cabeça. Nem o criador da série Mr Robot (a saga de um hacker), Sam Esmail, esperava que a realidade fosse mais surpreendente que a sua ficção (logo no primeiro episódio, o protagonista usava os dados que tinha obtido no famoso site para intimidar um utilizador).
Enquanto aguardo, com expetativa, os resultados de investigações que testem se este ‘estado de de sítio’ assenta nas motivações primárias da condição humana, na falência anunciada por Toffler ou numa terceira explicação, aproveito para mencionar uma série que está a fazer furor e arrecadou já um Globo de Ouro para melhor série dramática e de melhor atriz, além de várias nomeações.
Não se trata de Na cama com Ashley Madison, projeto de guião com 100 páginas que terá sido escrito pelo próprio Noel Biedrman em parceria com Marc Morgensten, em 2012. Mas podia. The Affair, do canal americano Showtime (transmitida em Portugal pelo canal TVSeries), vai já na segunda temporada e tem merecido elogios rasgados pela crítica. Um dos seus trunfos reside no formato da história, em que cada episódio é narrado pelo prisma de Noah e de Alison. Cabe ao espetador colocar-se na pele – e nas circunstâncias – de cada um dos protagonistas, dos que ‘transgridem’ e dos respetivos conjugues.
Uma viagem caleidoscópica, não linear, que induz sentimentos perturbadores, próximo dos suscitados pela célebre citação bíblica: “Aquele de entre vós que nunca pecou, atire-lhe a primeira pedra”. Mesmo que não se goste, a criação de Sarah Treem e Hagai Levi tem todos os ingredientes para cativar o espetador, do enredo à banda sonora (tema de abertura de Fiona Apple), passando pelas cenas de sexo. Especialmente aqui, nem tudo é sexy e há cenas com um realismo invulgar.
Como se a linguagem dos corpos não tivesse outra função que a de espelhar – e ampliar – a gama de conflitos que assola os protagonistas, reféns da satisfação de necessidades antagónicas, de segurança v.s. liberdade, de tédio v.s. interesse. Neste dilema, ora são invadidos por sentimentos nostálgicos e desejos infantis de regressar ao passado, às primeiras contrariedades e segredos da nova vida a dois, ora se sentem impelidos na direção do futuro, como se essa fosse a única maneira de acreditar que o passado já não mora, nem o legado que acumularam na bagagem.
Eles, comuns mortais, terão de abandonar a ilusão de que é no outro, aquele que se deixou ou o que se escolheu, ou ambos, que está a solução. Esta será sempre mais complexa, assente no confronto individual e na capacidade de aprender a fazer um uso mais criativo da relação com terceiros.
Tornar o presente mais gerível, aceitável e agradável, sem o peso de crenças e tabus que já não se aplicam: é este o desafio da terceira revolução de que falava Toffler, no seu ensaio futurista? Parece que sim. E é bem possível que estejamos a viver o seu auge.