Hoje o Parlamento voltou a debater quatro projetos-lei para a legalização da morte medicamente assistida, e em todos eles, a fatalidade da doença desaparece como condição. Nas duas últimas tentativas de aprovar legislação nesta matéria, não foi possível passar pelo crivo de Belém – primeiro foi declarada a inconstitucionalidade, depois do pedido de fiscalização prévia por parte do Presidente da República, depois houve veto político alegando o Presidente dúvidas e contradições. Será desta? “Um diploma consensualizado terá aprovação garantida por parte da atual composição do Parlamento, mas não são favas contadas – ainda falta o debate na especialidade e, mais difícil ainda, uma aprovação do Presidente da República, que como é sabido, não tem uma posição pessoal favorável ao tema da eutanásia”, enquadra Mafalda Anjos.
Para a diretora da VISÃO, “Marcelo Rebelo de Sousa deve gostar ainda menos desta versão da lei, mais abrangente, pelo facto de cair o conceito de ‘doença fatal’ e ficar apenas ‘uma situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável'”. “Há doenças incuráveis que não são fatais. Quando vetou, o Presidente foi claro em questionar se essa visão mais drástica corresponderia ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”, explica.
Mas há mais pontos a considerar, considera Filipe Luís. “Há expressões na lei com alguns problemas de subjetividade: o que é um ‘sofrimento insuportável’? E uma ‘doença incurável’ hoje não poderá ser curável amanhã? Trata-se de um tema de especial dificuldade, para ser objeto de formulação jurídica através de numa lei fria, neutra e generalista…”, diz o editor-executivo da VISÃO, que acrescenta: “As convicções pessoais de um Presidente da República não são politicamente neutras. Por isso é que se trata de um órgão de soberania unipessoal. E quando os eleitores o elegeram sabiam qual era a sua convicção nesta matéria. Mas também sabiam o que defende o PS, ao darem-lhe maioria absoluta. Há aqui duas legitimidades eleitorais que tratam a eutanásia de forma diferente. Quem desempata? Um referendo? Mas uma lei como a eutanásia pode ser referendada? Também não referendamos a reintrodução da pena de morte ou outros valores civilizacionais…”
Para o jornalista Nuno Miguel Ropio, “o Parlamento deu prova de imenso respeito por Belém, porque poderia ter confirmado o segundo texto, alvo do veto presidencial, obrigando a que à terceira vez Marcelo Rebelo de Sousa tivesse de promulgar”. “E ainda bem que assim foi, já que os partidos acabaram por apresentar novos textos”, frisou, admitindo que, tendo em conta que o processo legislativo poderá não estar concluído antes do outono, a incógnita reside em qual será a atuação do PSD com uma nova liderança. “Luís Montenegro defende um referendo ao assunto, com as mesmas razões que o Chega invoca. Quero ver se após a lei passar, Montenegro se junta ao Chega e pedirão ao Tribunal Constitucional que verifique a constitucionalidade da lei. Não seria nada de novo, até porque todos nos lembramos o que a direita – ainda com CDS – fez com a lei da procriação medicamente assistida”, concluiu.
Uma coisa é certa. O fator religioso não pode ser tido em conta. “É uma matéria do Estado. Cada um continua com a liberdade de atuar segundo as suas convicções religiosas, a eutanásia não passa a ser obrigatória. Pois não foi o próprio Jesus Cristo quem ensinou que ‘a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’?.”, questiona Filipe Luís.
Outro tema em análise no Olho Vivo desta semana foi a descentralização. Há mais uma pedra na engrenagem deste dossiê complexo: Rui Moreira bateu com a porta e o Porto saiu mesmo da Associação Nacional de Municípios Portugueses por divergências sobre o processo, nomeadamente as transferências de fundos. Marcelo foi chamado para o tema, sendo-lhe pedido que não aprove o orçamento de estado por este motivo. Está pois aberta uma caixa de Pandora, que pode atrasar – ou pelo menos complicar – um processo que já se arrasta desde 2018: Trofa, Coimbra e Póvoa de Varzim já equacionam poder também sair da Associação. “Os temas da descentralização e , relacionado com ele, o da regionalização, são quase tão antigos como o condado portucalense”, diz Mafalda Anjos. “O Presidente da República diz que até agora tem sido um factor de unidade nacional e que as pessoas e os partidos estão de acordo, mas não estou tão certa: tema das verbas a transferir vem levantar muitos dúvidas. O que não pode acontecer é uma espécie de fuga para a frente: como a descentralização não está a avançar bem, segue-se para a regionalização”.
Face à polémica da exigências dos autarcas, para que o pacote de competências seja acompanhado por um maior financiamento central, Nuno Miguel Ropio apontou que “ o processo de descentralização de competências está em risco desde o dia em que nasceu”. “Este é o tipo de regionalização até à qual Marcelo pretende ir e daí o esforço de Belém para que isto corra bem”, disse, salientando que “era estranho que, até Rui Moreira ter decidido tirar o Porto da Associação Nacional de Municípios, ninguém se tivesse questionado como estava a correr o processo de descentralização de competências e pelo facto de, na área da Saúde, só 21 municípios terem aceitado até agora poderes do Terreiro do Paço”. “Esta luta dos tostões vai prolongar-se até 2026, que é quando há eleições presidenciais e legislativas, e até lá não haverá provavelmente grande alteração no número de câmaras a aceitar novas competências”, considerou.
“Não interessa saber quem gere a escola. O que as pessoas querem é que a escola funcione. Mas as câmaras têm de ter a verba necessária para substituir o vidro partido… Ninguém percebe porque é que alguns municípios aceitam a transferência de competências e outros, queixando-se da falta da correspondente transferência de verbas, não o fazem. Afinal, o que está em causa, há tratamento diferente? Ou é uma guerra político-partidária?”, afirma Filipe Luís. “Esta descentralização é uma forma que o Governo encontrou para contornar o velho veto referendário à regionalização. Por outro lado, nenhum defensor da regionalização conseguiu demonstrar, de forma inequívoca, em que é que essa medida iria melhorar a vida das populações.”
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