O Tribunal Constitucional veio recentemente declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, uma lei de 2008 referente aos metadados, os dados digitais de tráfego, de localização e de dados conexos para identificar em vários tipos de comunicações, como emails, mensagens de texto, chamadas telefónicas.
“A lei dos metadados entrou diretamente para lista dos maiores imbróglios jurídicos nacionais. É um terramoto. Com esta deliberação, abriu-se a caixa de Pandora. E agora, todos os processos em que os metadados foram utilizados desde 2008 têm de ser revistos? Como serão afetadas as investigações em curso? E como sempre, não é líquido: a doutrina divide-se e há opiniões divergentes”, diz Mafalda Anjos no programa de comentário político e económico da VISÃO.
O Governo sabia há vários anos que a lei era provavelmente inconstitucional, mas optou, em ano de eleições, por não atuar. “É difícil não ver aqui desleixo do Governo”, aponta o jornalista Nuno Aguiar. “O impacto nos processos futuros até podia ser o mesmo, mas evitava-se o risco de aplicação retroativa a mais processos.”
Filipe Luis concorda. “O Governo estava mais do que avisado e o chumbo do Tribunal Constitucional não foi surpresa nenhuma. Podia ter legislado antes, mas desculpou-se com o facto de haver eleições. E, agora, o acórdão do TC caiu-lhe no colo…”
Perante a inconstitucionalidade da lei, o primeiro-ministro foi fazendo uma série de declarações públicas, nem todas especialmente felizes. “Assusta-me um pouco a visão de António Costa, quando diz que o Estado tem cada vez menos meios e os criminosos mais, porque é o género de argumento que justifica todo o tipo de atropelamento de direitos fundamentais. Lamentável também a incapacidade para assumir responsabilidades”, refere Nuno Aguiar. “É necessário um equilíbrio entre segurança e privacidade e visões absolutistas de uma ou outra são pouco credíveis. Mas, nos últimos anos, uma parece estar mais ameaçada: a privacidade. Podemos achar que não há problema que os nossos dados individuais estejam a ser guardados, mas milhões e milhões de pessoas? Durante um ano e, nalguns casos, fora da UE?”
Para Mafalda Anjos, é a própria imagem da fiabilidade do ordenamento jurídico nacional, das instituições e dos sistemas de fiscalização da constitucionalidade que fica em causa: “A lei foi aprovada há 14 anos, como é que se demorou todo este tempo a aqui chegar? E assistimos ao triste espetáculo de ver as mais variadas figuras a dizerem, até em despique, as coisas mais distintas tanto sobre o acórdão, como os seus efeitos e formas de sair daqui, desde o Presidente da República, ao Primeiro Ministro, a ministra da Justiça, Procuradoria-Geral da República, Tribunal Constitucional, Ordem dos Advogados, constitucionalistas… Fica uma enorme sensação de incerteza e insegurança.”
Os últimos dias foram também abundantes em dados e previsões sobre a economia portuguesa, com um primeiro trimestre muito forte e instituições internacionais a reverem em alta as suas estimativas. “Há uma espécie de dissonância. Falamos diariamente de crise, mas a economia portuguesa poderá crescer ao ritmo mais alto dos últimos 30 anos”, aponta Nuno Aguiar. “Crescimento não é sinónimo de bem-estar e há muitas incógnitas relacionadas com a guerra, evolução dos preços e dos juros. Mas percebe-se cada vez menos como é que, com a economia a crescer, défice e díviva a cair, o Governo não aproveitou este balão de oxigénio para apoiar mais empresas em setores especialmente afetados e famílias mais pobres que terão perdas de poder de compra.”
Já Marcelo Rebelo de Sousa disse que Portugal é beneficiário líquido da situação de guerra na Ucrânia, destacando os bons números divulgados pela Comissão Europeia para o PIB e Inflação e sublinhando o quanto podemos ganhar com o conflito. “É caso para questionar se a afirmação é mais de um otimismo irritante ou um oportunismo irritante…”, diz Mafalda Anjos
“O contentamento com a desgraça dos outros é extremamente desagradável. De uma forma, todos sofremos efeitos da guerra. Com a declaração sobre os benefícios que Portugal pode retirar desta guerra, Marcelo pode ter querido incutir algum otimismo nos portugueses – as escolheu a forma mais desastrada possível. Por muito menos (mas com declarações parecidas), alguns ministros do Governo, no início da pandemia, levaram muito mais pancada…”, destaca Filipe Luís. “Já aconteceu na Bélgica, que chegou a estar um ano sem governo, e até em Espanha: o desempenho económico desses países foi, nesses períodos, excelente… Ora, este governo toma posse a 30 de março, exatamente no final do trimestre em que o país cresceu mais. Cresceu mais, precisamente, no período em que teve um Governo mais ou menos de gestão… Não deixa de ser irónico”, acrescenta.
Em análise neste Olho Vivo estiveram ainda outras “marcelices”, como o anúncio da ida do Primeiro-Ministro a Kiev, que ainda estava no segredo dos deuses, o ataque racista que vitimou 10 pessoas nos Estados Unidos e a teoria da substituição das raças e a varíola dos macacos, que suscitou comentários homofóbicos de entidades públicas e alegados especialistas.
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