O País teve sede de mudança. As eleições mais participadas de sempre deixaram bem patente o descontentamento e frustração dos portugueses com os últimos anos de governação. A degradação das instituições, a incapacidade em implementar reformas de melhoria dos serviços públicos, cargas fiscais recorde, e a perceção generalizada de corrupção e instabilidade devido à sucessão de casos no governo de António Costa, definiram em conjunto o sentimento latente destas eleições: a raiva. Os portugueses estão zangados, e com razão.
O Partido Socialista perdeu mais de 40 mandatos que foram transferidos na mesma medida para o partido de André Ventura. Apesar de não apresentar soluções realistas para os principais problemas do País, o Chega criou com sucesso a narrativa de que a sua mera presença no governo seria uma cura mágica para a corrupção ou para o abandono do interior e Algarve, para acabar com “ideologias de género” ou outras questões como esta, insufladas muito para além da sua importância real na vida dos portugueses. A AD, por sua vez, obteve uma vitória de pirro, confirmando-se como alternativa mas sem obter uma maioria governativa com os parceiros com que aceitaria governar, cometendo vários erros de palmatória ao longo do processo (veja-se a escolha da sigla, as declarações de Paulo Núncio ou de Passos Coelho). A Iniciativa Liberal ficou aquém dos resultados desejados, e terá de fazer uma reflexão interna, mas vistas as coisas, crescer mais de 40.000 votos num contexto de grande polarização, voto de protesto e voto útil é sinal de que o projeto liberal está cá para ficar e mexer com o sistema.
O resultado final será um quebra-cabeças para Marcelo resolver. As maiorias possíveis são entre partidos que disseram claramente que não se viabilizaram mutuamente, o que levará, com grande probabilidade, a eleições no final deste ano ou no próximo. À direita, ou Chega ou PSD terão de dar o dito por não dito se quiserem uma solução estável, já que a AD disse não contar com Ventura para nada e o outro impedirá a viabilização de um governo em que não participe.
Quero acreditar que este equilíbrio instável é uma fase de transição para uma solução realmente transformadora do País. Dará tempo aos partidos moderados de corrigirem o tiro e aos eleitores entenderem que por muito sedutores que possam ser os extremos, não foram nem serão em lado nenhum nunca fatores de construção ou de prosperidade. Será muito difícil para Ventura manter-se enquanto partido anti-sistema se formar governo, ou ser visto como responsável se inviabilizar um governo de direita.
No entretanto, há um parlamento sem uma maioria do PS para bloquear alterações fundamentais. Vários pontos de contacto entre o programa da AD e da IL podem ter agora uma oportunidade de ver a luz do dia. A reversão do pacote Mais Habitação, redução da fiscalidade a vários níveis, a recuperação de parcerias no setor da saúde e da educação, a reposição da exigência nas escolas, desburocratização, até mesmo temas como a execução do plano nacional para a saúde mental, a reposição de um mínimo de condições e humanidade na imigração, e a criação de incentivos justos e meritocráticos na função pública podem ser alguns dos pontos onde haverá evoluções no sentido positivo nesta conjuntura. Cabe a todos serem responsáveis, consequentes e competentes na apresentação destas medidas.
O pequeno caos criado a 10 de março é uma fonte de grande incerteza, mas é das incertezas que saem oportunidades. Certeza, haverá apenas uma: a democracia portuguesa tem muito trabalho pela frente.
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