Nos compêndios de língua portuguesa, essa associação não está estabelecida, mas a verdade é que quem se move no terreno dos afetos sabe que “cuidar” é uma outra forma do verbo amar. O amor pode expressar-se de muitas formas, mas o amor que cuida é, com toda a certeza, o mais genuíno, pois revela talvez a sua maior qualidade: o altruísmo.
Terence Lester, um afro-americano que hoje lidera a Love Beyond Walls, organização sem fins lucrativos de apoio aos sem-abrigo, é um homem maduro, com uma vida estável, mas nem sempre foi assim. A sua adolescência foi dura. Mais dura não podia ser, pois passou-a nas ruas, vivendo de esmolas. Ele sabe bem que um ser humano normal não pode coexistir no inferno da rua sem perder parte da sua sanidade, parte da sua dignidade.
Sim, Terence é uma daquelas pessoas que não desistem, mas também que não esquecem. É um lutador, que conseguiu subir a pulso, mas jamais negou o seu passado. E é porque não esquece as provações a que esteve sujeito quando não tinha um teto onde morar, que hoje luta para tornar a vida dos que vivem na rua mais suportável.
Quando a pandemia chegou aos Estados Unidos preocupou-se com a sorte dessa gente tão vulnerável. Durante uma emergência sanitária, como poderiam os sem-abrigo proteger-se se não têm acesso a algo tão simples como água para lavar as mãos? Se esse foi o seu primeiro pensamento, depressa se tornou também no seu principal desígnio. E arregaçou as mangas. Em Atlanta, cidade norte-americana onde reside e onde está sedeada a sua ONG, instalou uma rede de lavatórios portáteis. Foi buscá-los aos armazéns que os disponibilizam para campismo e colocou-os nos pontos nevrálgicos da cidade, que ele tão bem conhece, onde quem não tem onde morar mais se concentra.
Para que não lhes falte nada, equipou-os com sabão líquido e agora só espera conseguir recursos para instalar esta rede de lavatórios em mais cidades. Nem que para isso seja preciso colocar em marcha a sua insistência maníaca, mostrando ser uma pessoa excecionalmente nobre.
Porque solidariedade também é isto: uma necessidade de ajudar que nos corrói, uma pressão que só acalma quando fazemos acontecer algo de bom.
Terence Lester não lavou as mãos como Pilates e também não deixou que a demoralização o inundasse dos pés à cabeça, mesmo com a onda de revolta que os Estados Unidos vivem neste momento devido às circunstâncias da morte de George Floyd e à avalanche de protestos que inundou o país. Muitas vezes as vagas de descrença aguçam a lucidez e fazem crepitar o cérebro com energia redobrada. Foi o que aconteceu.
Terence Lester, que sentiu tantas vezes na pele o vírus do racismo, sabe bem que a única razão por que algumas pessoas ainda dizem que o facto de George Floyd ser negro não é importante para esta história é porque gostariam que não fosse. Todos nós gostávamos que não fosse. Mas é mentira. Terence sentiu muitas vezes a tristeza de ser pobre – tão pobre como tantos outros pobres – e teve de juntar a isso o facto incontornável de ser negro – indubitavelmente negro – e a discriminação que daí provém. Mas nem essa frustração genuína e legítima, reforçada pelo fracasso da reforma das práticas policiais e do sistema de justiça penal nos Estados Unidos, o impediu de lutar de forma corajosa, responsável e inspiradora para ajudar quem verdadeiramente precisa. E isto tem algo de redentor neste mundo que parece que enlouqueceu.