Durante décadas, a política de habitação foi um exclusivo dos governos nacionais, com largas responsabilidades descentralizadas para os níveis regionais e locais, na qual a Comissão Europeia não interferia. Contrapunham-se orientações marcadas por um grande peso da habitação pública, como nos países do norte da Europa, com a arreigada defesa da resposta assente na propriedade privada nos países da Europa latina a sul.
Enquanto o parque de habitação público supera os 30% nos Países Baixos e se aproxima dos 50 % em cidades como Berlim, Portugal, com rendimentos mais baixos, tem apenas cerca de 2% de habitação pública, e acreditou durante décadas que o crédito bancário era o caminho da salvação para quase todos, exceto para os muito pobres relegados para a estigmatização associada aos bairros sociais.
Mas, na última década, verificou-se em toda a Europa uma súbita degradação das condições de acesso à habitação que levaram no seu segundo mandato a Presidente Ursula von der Leyen a ter pela primeira vez um comissário europeu com o pelouro da habitação.
O diagnóstico é dramático sobretudo para os mais jovens e os trabalhadores com rendimentos mais baixos. Nos últimos 10 anos, o preço médio da habitação cresceu mais de 60% e as rendas cerca de20% a nível europeu, isto é muito mais do que o aumento dos rendimentos. Além disso, desde 2020 verificou-se uma redução em 20% do licenciamento de novas habitações. Para completar o dramático cenário, a Comissão Europeia responsabiliza o alojamento local nas zonas de maior pressão turística e os investimentos especulativos pela redução da oferta disponível para os residentes locais e pelo aumento dos preços.
Ao fim de um ano de mandato o primeiro comissário europeu para a habitação apresentou ontem o Plano Europeu para a Habitação Acessível, centrando a intervenção no lado da oferta, com estímulos à construção, simplificação de regras técnicas, redução da burocracia nos licenciamentos e fortes recomendações de limitação do alojamento local. O nível médio de 7% de habitação pública terá de ser elevado, terão de ser encontradas soluções flexíveis para alojamento de estudantes e de jovens e a contenção dos preços é considerada uma prioridade absoluta.
Portugal fica muito mal na fotografia, ao ser classificado como o Estado-membro com uma maior sobrevalorização especulativa dos custos da habitação, que está 25% acima dos valores médios de mercado.
Desde que Luís Montenegro e Pinto Luz chegaram ao Governo, o que tem sido feito parece ser uma imagem invertida das prudentes prioridades europeias. As medidas constantes do relatório da Comissão Europeia, centrado no reforço da intervenção pública na habitação e na limitação dos preços, seriam em Portugal consideradas pela obsessão ideológica prevalecente, desde a guinada à direita do ano passado, um conjunto de inaceitáveis ataques ao sacrossanto primado do mercado e intervenções esquerdizantes que superam o Programa Mais Habitação dos tempos de Pedro Nuno Santos.
Desde o início de funções em 2024, o Governo de Montenegro tem promovido o aumento dos preços através de medidas que transferem as receitas do IMT, abolido para os jovens até aos 35 anos, para o aumento da margem de lucro das empresas imobiliárias, e em que se dão garantias públicas que dispensam os bancos de correr mais riscos e os vendedores de baixar os preços. Pelo lado da oferta, foram reduzidas as subvenções do PRR para construir casas a preços controlados até final de 2026, que passaram a ser financiadas por empréstimos a utilizar até 2030.
O resultado foi o maior aumento dos preços desde que há registos, com os apartamentos a crescerem mais de 20% ao ano e a habitação em geral cerca de 18 por cento. Igualmente o mercado de arrendamento bateu recordes tendo variações homólogas superiores a 10% em 2025 e uma redução de 10% no número de novos contratos celebrados.
Igualmente, no alojamento local, a prioridade da selvajaria ideológica de Miguel Pinto Luz foi eliminar restrições, impedir os condóminos de travar a transformação de prédios de habitação em alojamentos turísticos e favorecer fiscalmente a atividade. Igualmente a primeira medida de Carlos Moedas após a reeleição, agora que já pode contar com o apoio do Chega para governar Lisboa, foi flexibilizar restrições abrindo uma nova vaga de transformação de habitações em espaços de exploração turística com elevada rotação de visitantes.
E o novo pacote “Construir Portugal”, apresentado com pompa e circunstância por Miguel Pinto Luz, ao reduzir para 6% o IVA na construção de casas até 648 mil euros e para 10% o IRS nas rendas “moderadas” até 2300 euros, vai aumentar as receitas das empresas de construção e dos senhorios, sem qualquer incentivo à baixa dos preços enquanto estabelece novos indicadores de referência para aumentos ainda mais impressionantes dos preços da habitação.
Pinto Luz é amigo das empresas imobiliárias e dos empresários do alojamento local, mas não teve em dois anos de política orçamental uma única medida de promoção da construção e de pressão no sentido da redução dos preços que a União Europeia considera especulativos. Só agindo como empresários a aproveitar o sobreaquecimento do mercado, Montenegro e Pinto Luz resolveram escaldar um pouco mais os preços, com a colocação à venda das dezenas de edifícios libertados pelos ministérios em zonas nobres de Lisboa e que poderiam ser destinados a habitação.
Espera-se que o Plano Europeu de Habitação Acessível da Comissão Europeia, e não a preços moderados sem paralelo europeu, seja lido com atenção pelo Governo a tempo de travar desastres adicionais na esperança de acesso dos portugueses a uma habitação que possam suportar.
Por dois anos de promoção da explosão dos preços e degradação da acessibilidade das habitações, o ministro do imobiliário Miguel Pinto Luz merece mais um prémio Laranja Amarga.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.