Atarantado com o crescimento do Chega, o Governo Montenegro II resolveu escolher como prioridade absoluta da agenda política um pacote baseado num enviesamento extremista que relaciona imigração com segurança, e mesmo com defesa da identidade nacional, assente numa trilogia legislativa constituída pela lei de entrada e permanência de estrangeiros, pela revisão da lei da nacionalidade e por novas regras sobre retorno de estrangeiros afastados do território nacional.
É aquilo a que, no seu estilo histriónico, o porta-voz da aliança PSD/Chega, António Leitão Amaro, chama as três leis para acabar com as “portas escancaradas”, tornar “Portugal mais Portugal” e agilizar as “deportações”.
A alteração da Lei de Estrangeiros escorregou no Tribunal Constitucional, na sua primeira versão, sobretudo pelas barbaridades sobre atentados à unidade da família, violações do princípio da confiança na relação com o Estado e atentados à igualdade em função da capacidade económica dos migrantes. Depois de corrigida das inconstitucionalidades grosseiras, em serviços mínimos, e reaprovada pela Assembleia da República foi poupada pelo Presidente da República a nova apreciação de constitucionalidade e já está em vigor.
Os efeitos práticos do choque em matéria de política migratória, eliminando a manifestação de interesse sem qualquer alternativa exequível, estão já a ser sentidos nas dificuldades de contratação de trabalhadores em várias áreas decisivas para executar o PRR e pela ineficácia da Via Verde a partir dos consulados já reconhecida pelo ministro Carlos Abreu Amorim ao defender que tem de ser “recalibrada”.
Juntar a aquisição e perda da Nacionalidade à Lei de Estrangeiros é um absurdo só justificado pela estratégia de robustecimento de um pacote de entendimento político com a extrema-direita. Não só a maioria dos pedidos de naturalização não são de residentes em Portugal, como nada obriga um residente permanente a optar pela naturalização. Mas em vez de procurar um caminho de consenso possível com o PS, o Governo optou pela associação demagógica dos estrangeiros em busca da nacionalidade portuguesa à insegurança e criminalidade.
Foi esse caminho radical de conceitos vagos tolhendo de forma desproporcional direitos fundamentais que foi chumbado pelo Tribunal Constitucional, por unanimidade em 4 normas e por 10-1 numa outra, reunindo juízes ditos de direita e de esquerda, unidos na defesa dos valores fundamentais do Estado de Direito Democrático.
Estão em causa situações como: a recusa de acesso à naturalização a quem fosse punido com uma pena de prisão por dois anos, o que pode suceder, por exemplo, por condução sem carta ou sob o efeito do álcool; a criação de uma nacionalidade de segunda categoria, condicional durante dez anos, que poderia ser retirada pela prática de crimes menos graves do que os cometidos por um português originário ou um naturalizado há doze anos; a alteração dos requisitos de acesso à nacionalidade para quem já apresentou o pedido de acordo com as regras em vigor, violando o princípio da confiança no Estado; ou a criação de uma categoria vaga e indeterminada de ofensas a símbolos nacionais (por exemplo cantar o hino na versão dos Anjos…), que vedaria o acesso à nacionalidade
O essencial das opções do Governo de dificultar o acesso à nacionalidade, duplicando de 5 para 10 anos o prazo de residência legal exigido a um americano, bengali ou japonês para se naturalizarem, a exigência de conhecimentos de cultura portuguesa de duvidoso domínio pelos deputados da bancada dos rufias ou a perda de nacionalidade originária pelas crianças filhas de estrangeiros nascidas em Portugal, não foram apreciadas pelo Tribunal e não estão em causa. Por isso, basta o Governo eliminar as barbaridades que decidiu subscrever a meias com o Chega para viabilizar uma má lei, eventualmente até com a complacência do PS que reiterou já a abertura para o diálogo. Está nas mãos de Montenegro e do seu guru extremista Leitão Amaro escolher com quem preferem fazer parcerias.
Finalmente, na terceira ronda desta batalha, a gesta heroica do preconceito levará à discussão das normas da lei de retorno, que colocarão a curiosa questão de saber como é que um Governo que desperdiçou as verbas do PRR destinadas à construção de dois Centros de Instalação Temporária para migrantes irregulares, pretende agora aumentar o prazo legal máximo de detenção dos potenciais “deportados” de 60 para 540 dias. Também em matéria de afastamento de estrangeiros em situação irregular, tal como nas novas regras de reagrupamento familiar ou de acesso à nacionalidade, o objetivo do Governo parece ser colocar-nos ao nível dos piores exemplos europeus.
Cabe ao minoritário Governo de Montenegro escolher as prioridades de agenda e os parceiros para as viabilizar. Até agora, a opção pelo populismo extremista do Chega tem sido a opção natural, reforçada com o voto no Conselho Europeu, ao lado da Hungria e da Eslováquia, contra o Plano de Solidariedade Europeia para recolocação de refugiados em 2026. Curiosamente o Tribunal Constitucional com a sua unanimidade contra as normas da Lei da Nacionalidade veio dar mais uma oportunidade de redenção democrática e humanista ao Governo.
Pela estrondosa derrota no Tribunal Constitucional da sua estratégia de entendimento com a extrema-direita em matéria de política migratória, o prémio Laranja Amarga intragável vai para o porta-voz da maioria, Leitão Amaro.
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