Dia 62
Vamos imaginar que estamos no meio de uma guerra ou de um jogo de futebol, vá. Uma das coisas que menos interessa é parar para limpar as armas ou ter baixas em posições-chave durante um combate, não é verdade? Vamos então supor que estamos no meio de uma pandemia, a atravessar a mais violenta crise económica de que há memória, falências iminentes em grandes empresas, desemprego a disparar, tudo isto numa Europa sem rumo e sem soluções imediatas e eficientes à vista para o caos. Vamos imaginar que estamos no meio do que está a acontecer agora, portanto. O que menos se deseja? Ter figuras aos comandos distraídas com questões laterais em vez de estarem focadas no essencial: ganhar a guerra ou o jogo.
É difícil de perceber como é que duas principais figuras do executivo deixam escalar crises políticas, trazendo eventuais remodelações para cima da mesa. Como é difícil de perceber que o Presidente da República tenha lançado achas para esta fogueira, adensando a chama que começa a cozer em lume brando o Ministro das Finanças. Portugal tem esta péssima característica da memória curta. Passa os melhores de bestiais a bestas num ápice. Mas parece-me que a Covid-19 está a agudizá-lo: será que o novo coronavírus tem efeitos amnésicos?
A situação de base que deu origem ao arrufo, que a oposição está obviamente a tentar cavalgar, não tem qualquer razão de ser. Por mais que nos custe, temos de encaixar de uma vez por todas que a resolução do Banco Espírito Santo e o negócio da venda do Novo Banco ao fundo Lone Star foi um desastre para as contas públicas e para os bolsos dos contribuintes, dos piores feitos na Europa durante a crise financeira. Os compromissos foram assumidos e assumidos estão (e inclusivé inscritos no Orçamento do Estado deste ano), sem margem para escapatória, num negócio que foi desenhado pelo Banco de Portugal e por Carlos Costa (o mesmo que desenhou a resolução catastrófica do BES com Passos Coelho mas se mantém confortavelmente no seu posto), apadrinhado pela Comissão Europeia, pelo Ministro das Finanças e pelo Primeiro Ministro. O mecanismo de capital contingente foi criado para garantir a solidez e os rácios de solvabilidade mínimos e esta foi uma das condições contratuais para a Lone Star entrar no negócio. As contas do banco são auditadas e o mecanismo, que podemos discordar com todas as nossas forças, sujeito a escrutínio variado, desde logo do BCE.
Pensar em fazer depender o pagamento anual do valor que é contratualmente devido (e fundamental para assegurar o equilíbrio do banco), a uma auditoria especial seria totalmente irresponsável. Estaríamos em incumprimento das nossas obrigações financeiras no meio do mundo num caos. Falar disso agora é pura demagogia (tal como aconteceu em 2018 e em 2019): cavalgar a impopularidade deste ónus em tempos de crise quando, é sabido, poucos percebem os contornos do negócio e as responsabilidades assumidas pelo Estado. Pedir a cabeça de Centeno é popular, claro, só não é sensato nem inteligente.
Mal se compreende a razão de se tomar as dores alheias e fragilizar de forma grave, publicamente, a posição do Ministro das Finanças, que fica cada vez mais como um ministro a prazo (até Julho, quando será aprovado o orçamento suplementar?). Mais sensato seria apaziguar os ânimos, sobressaltados por Centeno ter desdito o Primeiro-ministro no Parlamento (fez mal e era preciso geri-lo, como acabou por ser feito ao fim da noite em comunicado). Mas a uma grave crise de saúde pública e a uma crise económica, não dava jeito nenhum somar agora mais uma crise bancária e uma crise política, que juntas gerariam, com elevada probabilidade, nova (e gravíssima) crise financeira.
É bom lembrar que Mário Centeno é visto como Ronaldo das Finanças, o homem responsável que ganhou a confiança dos mercados e da Europa. É verdade que ele, depois de um mandato cumprido com tão bons resultados, acalentava outros planos para a sua vida que não passavam pelo Ministério das Finanças. Mas também é verdade que assumiu sentido de estado e já disse que no meio do caos não era a altura certa para sair de cena. Alguém gosta de ver Ronaldo a sair de campo numa final de um campeonato em que estamos a perder? Eu não.