Dia 56.
Ontem de manhã, estava no carro à hora em que começou o Fórum da TSF, estação da qual sou admiradora. O tema em debate era a proposta de André Ventura de estabelecer um plano de confinamento específico para a comunidade cigana: concorda ou não concorda com esta ideia? Fiquei triste. Que André Ventura a apresente, não é nada de novo. A precisar de palco, agora que o futebol não rende tanto, o deputado foi outra vez ao seu costumeiro filão populista e ignóbil, que lhe valeu votos no passado, e que mexe com o racismo mais elementar e menos envergonhado da sociedade portuguesa.
Que este senhor a apresente, portanto, nada de novo, dizia. Agora que a proposta, formulada nestes termos, seja discutida sem mais num qualquer fórum público, responsável e democrático, como se fosse uma ideia válida e conforme com a nossa Constituição, é outra questão. E é grave que isso aconteça.
A TSF não esteve bem e isso acontece a quem está no ar, 24 horas por dia, a fazer jornalismo de qualidade e de serviço público como eles fazem. Acontece a todos, aconteceu certamente na VISÃO.
O ponto não é esse. O ponto é que este tema, e outros do género abjeto que vêm do Chega, estão aí e vão continuar. A ser debatidos e discutidos, enquanto o fenómeno André Ventura perdurar. Há quem entenda e repita que não há mal nenhum em debater-se esta ideia, e que os ciganos merecem dos média proteção especial. Atiram argumentos vários, sublinhando que todas as ideias, sejam elas quais forem, devem ser discutidas, e que, se não forem boas, serão facilmente rebatidas.
Sou, à partida, defensora última da liberdade de expressão e do debate. Porém, numa democracia, há – tem de haver –, limites.
Num exercício teórico, o que pensariam então de ponderar e discutir as seguintes propostas hipotéticas:
– Os portugueses de olhos azuis e pele clara têm de ser proibidos de ir à praia.
– Os animais domésticos devem ser todos abatidos porque são um fardo ambiental.
– Deve ser imposta a pena de amputação da mão direita para os ladrões.
– As mulheres não poderão trabalhar nem aceder ao ensino superior.
– Os negros devem ser ensinados exclusivamente em escolas de ensino especial.
– Os idosos devem ser eutanasiados aos 90 anos, quando a sua saúde já é débil e já só dão despesas.
– Os filhos deficientes devem ser afogados à nascença.
– Os judeus devem ser confinados a campos de concentração.
Lembra-vos algo?
É assim que tudo começa. Com a vocalização do impronunciável e a normalização dos atentados e das ofensas graves. E depois, vem a banalização do mal. E é nestes tempos de caos, medo e desalento (como estes de uma pandemia) que o mal cresce, sorrateiro e lento, como um cancro que corrói uma sociedade triste, desorientada e desmoralizada.
PS: Aqui fica uma recomendação de uma boa leitura para estes dias: “Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal”, de Hannah Arendt. Onde a filósofa, com base nos seus escritos para New Yorker sobre o julgamento dos crimes de genocídio contra os judeus, que acompanhou, analisa Adolf Eichmann (um dos pais do Holocausto) e reflete sobre a essência humana. Está tudo aqui – vive no Homem o melhor e o pior. E o pior, para se revelar, só precisa de medo e de escuridão.