Dia 39.
Ontem ao fim do dia começaram a cair no meu telemóvel os alertas dos sites americanos. Fiquei durante uns minutos a tentar superar o pasmo, com a cabeça a fazer “tilt”. Como assim, o petróleo afundou para terreno negativo?! Em linguagem técnica, o preço dos futuros do barril Crude West Texas Intermediate para maio, que expiravam hoje, caíram para -0,79 dólares e chegaram a negociar nos -40 dólares. Sim, abaixo de zero. Em linguagem comum, é pensar que algures no futuro alguém pagará para que outros lhe façam o favor de ficar com um barril de petróleo. Um barril igualzinho ao que, não há muitos anos, chegou a custar mais de 100 dólares, e que agora vale menos de zero. Não vale nada de nada – é apenas um fardo. Já nem dado o querem. Como o lixo!
Enquanto jornalista de mercados, acompanhei durante uma década estes temas em detalhe. Assisti assombrada aos efeitos do 11 de setembro, em 2001, em frente a um terminal da Reuters (coisas de outros tempos), de olhos fixos nos índices, mas aqui o fenómeno foi o inverso: perante a ameaça terrorista, os preços do crude dispararam, ao contrário das ações que caíram a pique. O que aconteceu ontem ao fim do dia nas bolsas, e que hoje se repetiu, é algo nunca visto. É a inversão de tudo o que aprendemos nos manuais de economia e que vimos acontecer nas nossas vidas.
Se dúvidas houvesse sobre o facto de que o mundo, tal como-o conhecemos, estar por estes dias de pernas para o ar, estariam todas desfeitas. O petróleo foi, pelo menos desde meados do século XIX, sempre visto como o ouro negro. Uma preciosidade rara e essencial para fazer lubrificar as economias do globo, fonte de riquezas inigualáveis para as nações e as empresas que o conseguissem extrair. Mesmo perante a evidência dos efeitos devastadores que pode ter para o planeta, e a certeza da sua necessária substituição por energias limpas o mais depressa possível, nunca ninguém imaginou que pudesse deixar totalmente de ter valor. Que diria J. Paul Getty, o magnata americano do petróleo que foi um dos homens mais ricos do mundo, que em tempos disse que a fórmula para chegar ao topo do mundo era “levantar cedo, trabalhar muito e correr atrás do petróleo”?
O que determinou o fenómeno, que constará dos livros de economia e de história com toda a certeza, é uma tempestade perfeita para o setor, explicada pela velha fórmula da oferta e da procura (felizmente ainda há coisas que não mudam). O mundo abrandou drasticamente, obrigando a colocar aviões no chão, os carros estacionados nas garagens e as indústrias meio gás. Ou seja, pouca procura. E um conflito entre os produtores com o fim do acordo de cortes de produção entre a Organização dos Países Exportadores de Petróleo e a guerra de preços sem racional económico entre a Rússia e a Arábia Saudita que se sucedeu, fez com que fosse colocado mais petróleo no mundo do que aquele que precisamos de consumir. Ou seja, excesso de oferta. Tudo isto aliado ao custo de armazenamento: se não é consumido, o petróleo extraído tem de ficar guardado em algum lado, e isso custa dinheiro. Neste momento há milhões de barris acumulados em petroleiros em alto mar, armazéns e contentores especiais. Os mercados juntaram “dois mais dois” e fizeram o resto: uma queda abrupta e nunca vista dos preços.
Hoje, o preço destes futuros de referência nos Estados Unidos regressaram a terreno negativo. Já o preço do barril de Brent transacionado em Londres, que o valor de referência para o mercado português, ainda está em terreno positivo, mas ainda assim bastante baixo.
E porque é que isto é grave, perguntarão alguns? Porque há países cuja situação económica está “indexada” ao preço do petróleo. E porque das cadeias de extração aos pontos de venda das gasolineiras, há toda uma enorme e complexa cadeia de produção que pode não resistir. Há valores abaixo dos quais as próprias petrolíferas, que é bom não esquecer que empregam milhões de pessoas no mundo, não subsistem. Queremos muito a transição energética, mas não assim…
Dava jeito que os senhores da OPEP se juntassem em breve numa videoconferência para resolver isto. O mundo já tem problemas de sobra com uma pandemia que não se sabe quanto tempo vai durar. Uma crise petrolífera por deflação, valha-nos Deus!, era tudo o que não precisávamos agora.