Dia 36.
“Mãe, acabei de ouvir na televisão! Vão para a rua celebrar o 1º de Maio? Mas se é assim, porque é que eu não posso ir para a praia, também com distanciamento social!? Não consigo compreender isto.”
A pergunta, que era mais um desabafo de revolta, veio da minha filha mais velha. Já não é uma criança, tem quase 17 anos. Com toda uma vida para viver lá fora, está fechada em casa desde 16 de março, em escola à distância até ver e com o ano letivo prolongado. Passou a Páscoa longe dos avós, dos tios e dos primos, viu o irmão fazer anos sozinho sem festa digna desse nome, nunca mais pôde ir fazer surf ou sair com os amigos. Tem idade e sensibilidade para perceber o simbolismo da ocasião, sabe de cor a importância desta data tal como do 25 de Abril, viu as fotos do povo que desceu da Alameda para ouvir Soares no primeiro 1º de Maio e o que isso simboliza para todos os que, nestes dois dias de catarse coletiva, saem à rua a celebrar a democracia e os direitos conquistados dos trabalhadores. Ainda assim, custa-lhe a engolir esta hipótese. E eu entendo-a. Porque é que “eles” hão-de poder sair, e ela não? Não há como não ver nisto uma contradição.
O problema dos festejos do 25 de Abril e do 1º de Maio é o exemplo e simbolismo que acarretam, num momento em que são pedidos a todos esforços pessoais enormes. São datas históricas que devem ser lembradas e celebradas, ninguém dúvida disso. Mas tal como o são a Páscoa, os aniversários e os casamentos, os enterros dos nossos familiares e amigos, ocasiões que as pessoas se viram obrigadas a passar sozinhas, sem qualquer comemoração.
Consigo entender – e explicar aos meus filhos confinados – que a celebração do 25 de Abril, cumprindo o plano de contingência que tem sido aplicado até agora na Assembleia da República, possa ser feita. À porta fechada, numa versão contida e adaptada às circunstâncias, marca-se assim uma data que é de todos os portugueses sem exceção, recordando os valores essenciais que, mesmo em Estado de Emergência, nos devem pautar.
O 1º de Maio é diferente. E o que for permitido pode deitar por terra a credibilidade e a equidade do esforço que tem sido exigido à população nas últimas semanas. Na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros que explicou o novo decreto do estado de emergência, foi dito que manifestações não serão admitidas, e que as celebrações deverão respeitar o distanciamento social. A UGT já disse, e muito bem, que marcará a data em múltiplas ações nas redes sociais – é possível chegar muito longe assim. A CGPT, aparentemente, continua a querer ir para a rua. Será agora a Direção Geral da Saúde e as forças de segurança a estabelecerem os limites das tais “celebrações” às quais o governo, o Presidente da República e a Assembleia da República abriram a porta. Espero pois que Graça Freitas, sempre tão lesta e veemente a confinar todos os portugueses ao recesso dos seus lares, não se deixe levar por pressões e faça o que tem a fazer: não aceitar quaisquer ajuntamentos ou celebrações públicas. É uma questão de sensatez, coerência e justiça.
Se assim não for, nenhum responsável político ou autoridade de saúde terão grande moral para mandar ficar em casa os portugueses. E eu – tal como todos os outros pais – terei muito mais dificuldade em explicar aos meus filhos que eles, apesar de não serem grupo de risco, deverão continuar aplicados neste enorme esforço de ficarem isolados e fechados entre quatro paredes.