A Faixa de Gaza tornou-se o espelho mais brutal da falência moral da comunidade internacional. O que ali se vive, supera a linguagem diplomática e dissolve qualquer eufemismo político. Chamemos pelo nome, trata-se de um massacre. Um massacre prolongado, sistemático e amplamente documentado, que transforma civis em alvos, hospitais em ruínas e bairros inteiros em lembranças de um lugar que já não existe.
A resposta israelita ao ataque de 7 de outubro foi apresentada como uma operação de legítima defesa. Contudo, a escala da destruição, o colapso completo dos serviços essenciais, a deslocação forçada de quase toda a população e o número inaceitável de mortos civis mostram que esta narrativa, repetida incansavelmente, já não suporta os factos. O direito internacional não desaparece em tempos de medo. Muito menos autoriza punição coletiva e é exatamente isso que se observa quando água, eletricidade, alimentos, medicamentos e corredores humanitários são transformados em instrumentos de pressão militar.
Paralelamente, assiste-se a outro processo silencioso, mas igualmente devastador, o massacre da narrativa. A linguagem torna-se arma quando suaviza a violência, quando substitui “crianças mortas” por “danos colaterais”, quando trata zonas densamente povoadas como “infraestruturas terroristas” ou quando relativiza ataques a escolas e hospitais com explicações que mudam consoante a conveniência política. O controlo do discurso permite controlar a indignação pública, e isso explica por que razão parte do mundo assiste a esta catástrofe com desconforto, mas não com urgência moral.
A construção de um consenso cúmplice é agravada pela posição ambígua, quando não abertamente permissiva, de várias democracias ocidentais. Países que se apresentam como guardiões dos direitos humanos continuam a fornecer apoio político, militar e diplomático a uma campanha que viola esses mesmos princípios. Ao fazê-lo, corroem a legitimidade da ordem internacional baseada em regras e reforçam a perceção de que o valor da vida é variável: umas são choradas, outras contabilizadas.
Importa sublinhar que defender a vida dos civis palestinianos não implica negar o sofrimento dos civis israelitas, não há competição na dor. O que há é uma responsabilidade ética elementar, a de reconhecer que nenhuma sociedade. por mais traumatizada que esteja, tem o direito de destruir outra. Manter esta ideia é essencial para recusar a lógica desumanizadora que transforma populações inteiras em obstáculos a eliminar.
O que se vive hoje em Gaza não pode ser tratado como um episódio inevitável de um conflito insolúvel. É uma catástrofe humana que exige ação política imediata, cessar-fogo permanente, libertação de reféns, acesso humanitário pleno, fim do cerco e mecanismos credíveis de responsabilização por crimes de guerra. Estas medidas não são radicais, são o mínimo ético exigível.
A maior derrota não será apenas a destruição de Gaza, será permitir que este massacre se torne normal, que a dor alheia deixe de nos comover e que a vida humana perca o seu valor universal. Quando o mundo aceita o inaceitável, deixa de ser apenas espectador, torna-se cúmplice.
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