Portugal atravessa um dos momentos mais críticos da sua história democrática recente. A habitação deixou de ser uma questão sectorial para se transformar num tema estruturante, capaz de reconfigurar comportamentos sociais, dinâmicas demográficas, equilíbrios territoriais e até a relação de confiança entre cidadãos e instituições. Aquilo que durante anos permaneceu como um fenómeno estrutural, discreto e pouco visível, converteu-se, agora, na maior clivagem nacional — exposta a céu aberto, sentida em todo o território e impossível de ignorar no debate político.
A escalada das rendas e dos preços de compra já não pode ser interpretada como um fenómeno conjuntural ou uma distorção passageira. É o sinal claro de que o atual modelo urbano se encontra no limite da sua capacidade para integrar quem nele trabalha, estuda e contribui para o tecido económico. Nas principais áreas metropolitanas, as rendas crescem muito acima dos salários, enquanto a oferta disponível se encolhe drasticamente. Não por falta de procura — essa atinge níveis históricos — mas porque simplesmente não existem casas compatíveis com os rendimentos médios.
O preço por metro quadrado estabilizou em patamares irreais para uma economia com os salários mais baixos da Europa Ocidental, expulsando jovens, trabalhadores essenciais e famílias inteiras para a periferia ou para fora do País.
A origem desta crise é profunda e longa. Décadas de políticas habitacionais intermitentes, ausência de planeamento estrutural e um Estado progressivamente afastado da produção e regulação do mercado de habitação criaram uma arquitectura vulnerável, entregue quase por completo às forças do mercado. A conversão indiscriminada de fogos residenciais em alojamento de curta duração acelerou esta tendência: alterou ecossistemas urbanos, esvaziou bairros tradicionais, reduziu o parque habitacional para residentes permanentes e fez disparar pressões especulativas. A procura turística e o investimento estrangeiro amplificaram o fenómeno, mas não o originaram — apenas encontraram terreno fértil num sistema já fragilizado.
As consequências são hoje palpáveis e perturbadoras. Portugal enfrenta um desequilíbrio demográfico que ameaça a sustentabilidade económica: cidades incapazes de fixar os jovens que formam, trabalhadores essenciais deslocados para dezenas de quilómetros de distância e famílias que adiam projectos de vida não por falta de oportunidades, mas por pura impossibilidade de viver onde trabalham.
A coesão social deteriora-se à medida que os centros urbanos se partilham entre quem pode pagar e quem é obrigado a partir. E, talvez o mais grave, emerge a percepção de que um direito constitucional — o direito a uma habitação condigna — está a tornar-se um privilégio. Quando isso acontece, a confiança nas instituições fragiliza-se, abrindo espaço à frustração, ao ressentimento e a discursos populistas que se alimentam precisamente dessa erosão.
Superar esta crise exige muito mais do que intervenções pontuais ou respostas legislativas pautadas por calendários eleitorais. Requer uma estratégia coerente, articulada e mantida ao longo do tempo, assente em três pilares essenciais: produção massiva de habitação pública e acessível; reabilitação urbana orientada para residentes permanentes; e regulação eficaz que trave a transformação descontrolada de fogos em unidades turísticas — sem, contudo, transformar em alvo actividades económicas legítimas quando exercidas de forma equilibrada. A tudo isto deve somar-se uma reforma fiscal que distinga claramente entre proprietários que colocam imóveis no mercado e quem retém património apenas para fins especulativos.
A experiência de várias capitais europeias demonstra o óbvio: mercados de arrendamento estáveis resultam sempre de políticas de longo prazo, sustentadas por investimento público robusto, parcerias com autarquias, incentivos às cooperativas e regulações consistentes que sobrevivam a alternâncias governativas. Portugal não precisa de inventar novos modelos; precisa de estabilidade, escala e continuidade — três fatores raros nas últimas décadas.
Mas a habitação é mais do que política pública: é o fundamento material da existência. Quando um jovem adia a independência porque não consegue pagar um T1, quando uma família vê metade do rendimento comprometido com a renda, quando enfermeiros, professores e agentes de segurança percorrem dezenas de quilómetros para servir cidades onde não conseguem viver, o país perde mais do que qualidade de vida. Perde competitividade, vitalidade e visão de futuro.
Portugal encontra-se, portanto, perante uma decisão estrutural. Pode permitir que as suas cidades se transformem em activos financeiros sujeitos a lógicas globais que excluem quem nelas vive. Ou pode assumir, com coragem política, que a habitação não é um bem acessório, mas o alicerce da coesão social e do próprio funcionamento democrático.
Essa escolha exige tempo, investimento e resiliência. Exige políticas que resistam à pressão da rentabilidade imediata e aos ciclos eleitorais. Mas é a única forma de assegurar que a próxima geração não será forçada a escolher entre viver em Portugal e viver com dignidade.
Se o País falhar neste ponto, arrisca-se a um destino paradoxal: tornar-se um território vibrante para quem o visita, mas cada vez mais impraticável para quem o sustenta. É esse o verdadeiro teste que a democracia portuguesa enfrenta agora — e do qual dependerá o seu futuro.
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