Chegado a São Vicente em Cabo Verde, tinha à minha espera o Frei Benetti – autoridade incontornável da ilha, o franciscano italiano contava já 30 anos feitos na cidade do Mindelo. Entre o palmarés, constavam as centenas de miúdos e não-tão-miúdos que ajudou. Encaminhava-os nos mais diversos desígnios vocacionais: era o rapper sedeado num estúdio no centro de jovens da paróquia, mas também o guia turístico. Enfim, era um verdadeiro Pai de muitos. Sentou à mesa, ainda, os dois líderes dos maiores gangues de droga da ilha para, acompanhados por uma bela pasta, fazerem as pazes e acabarem com os assassinatos recorrentes – coisa leve – não esquecer, exímio nadador de toda a praia da Laginha de uma ponta à outra às segundas, quartas e sextas – a esta, a praia, voltaremos mais tarde.
Deu-me boleia até ao centro onde fui encontrar os meus futuros companheiros. Não os conhecia, mas nada temi, pois tinham o sorriso e um ar de quem não se levava muito a sério. Ao almoço, a conversa estava agradável e acabei inevitavelmente por perguntar sobre os perigos da ilha, se se tinham deparado com algum ato de violência, de carácter armamentista sondava ainda – estava com o fuso e receio paternalista do primeiro mundo. Contaram-me, então, que há exatamente três dias, umas outras voluntárias, de quem viria a ouvir esta mesma história em sede própria, tinham sido assaltadas na praça principal da metrópole do Mindelo. O que roubaram? – perguntei prontamente, empolgado por aquilo tudo saber e cheirar-me tão exótico. Uma caixa de pizza com os restos do jantar – roubaram comida. Caí rapidamente em mim.
Ora, cerca de uma semana depois, estava eu na praia da Laginha, ainda há pouco falada, acompanhado somente do meu Hemingway e a um capítulo do final. Angustiava-me que a personagem principal estivesse tão apática com o amor da vida dele a fugir-lhe e a tão poucas páginas do final – Tu não me lixes! – clamava eu ao Atlântico. Nunca gostei de finais incompletos ou tristes, sou e sempre serei um fiel apoiante do “e viveram felizes para sempre”! Partidário até às últimas consequências de que existe um acordo tácito entre o criador, a criação e a criatura – tu não me traias agora, Ernesto!
Dou por mim de noite, a luz era fraca e as recomendações da saúde visual da mãe em solo europeu pareciam ter chegado à ilha. Vou para casa – decidi – onde terei luz.
Em peregrinação e aquando da passadeira para mudar para o lado mar, passa um rapaz de bicicleta e a grande velocidade, não consegui perceber a idade, mas duvido que tivesse mais de 25 anos, e num gesto tão brusco como suave, rouba-me o livro que levava na mão, qual caixa de restos de pizza das minhas queridas amigas voluntárias. Absolutamente perplexo, imobilizei a olhar para os ziguezagues daquele não tão jovem rapaz. Rapidamente a perplexidade foi trocada pela fúria – Sacana! – gritei, juntamente com outras palavras a rimar com cão e pauta. Como saberei agora o que acontece a Jake e a Brett? – brado aos céus.
Estava num misto de frustração e raiva, mas a brisa parecia levar a melhor na missão de me acalmar. Fazia contas à minha vida – nunca comprei um livro em pdf, seria a primeira vez? Nunca encontraria um exemplar na cidade, as papelarias só tinham uns desgraçados exemplares do Chiquinho de Baltazar Lopes da Silva soltos e solitários.
Contudo, tudo aquilo começava a seduzir-me – não minto – deixei levar-me pelo momento, enquanto via o mar a comer o último pedaço de sol ainda incandescente. O ladrão de livros de São Vicente! Teria ele uma biblioteca recheada em casa? Como organizaria os livros, por ordem alfabética ou períodos históricos? Teria alguma ética profissional? Pelo menos que lesse os que roubava. A beleza poética do acontecimento não podia ser negligenciada. Não só de pão vive o homem, não é verdade – pensava, com uma cara de parvo que certamente notou o local que cruzei no caminho.
No dia seguinte, acordei, passou a manhã e fui almoçar ao sítio do costume. Apenas sentado na mesa habitual, dei com a Samara, a empregada que habitualmente servia os almoços, de sorriso traquina, a aproximar-se de mim não com a ementa, mas com o meu livro!
Aparentemente, veio um rapaz entregar o dito objeto de cobiça de pelo menos dois seres naquela ilha, porque nele estava um panfleto promocional daquele mesmo estabelecimento a servir de marca páginas: o clube de ténis do Mindelo. Instituição centenária, que estava prestes alimentar-me, servia uma maravilhosa cachupa à hora de almoço por apenas 300 escudos!
Agradeci e apressei-me rapidamente a retomar a leitura enquanto esperava a cachupa.
Senhoras e senhores, senti-me traído por Don Ernesto e magia de San Firmín – sem querer estragar a experiência de futuros leitores.
Percebi, então, a desilusão do pobre rapaz que, perante a direta a ultrapassar-me na leitura do livro, chegou ao fim e não teve alternativa que senão devolver o livro e lixar-me a mim o almoço – obrigado amigo!
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