Em criança, o Super-Homem era o meu super-herói favorito. Talvez por o alter-ego terrestre desta personagem ser um jornalista – a profissão que sempre desejei ter, desde que me recordo –, ou, simplesmente, um “caixa de óculos” desajeitado, não muito distante da figura que enfrentava diariamente ao espelho. O herói era “super” porque voava e possuía força sobre-humana. E, naturalmente, porque usava uma capa.
Com os anos, considerei que os super-heróis existem para além da BD e do cinema. Tive muitos na vida real: no desporto, na política, no entretenimento, na literatura ou na comunicação social, por exemplo. Seria escusado, e fastidioso enumerar a (longa) lista, onde cabiam nomes tão variados como Ayrton Senna, Nelson Mandela, João Vieira Pinto, Anne Frank, Herman José ou Santley Kubrick. Alguns, mereceram figurar em posters para colar nas paredes do quarto – muito ao jeito das décadas de 1980 e 1990. O super-poder da juventude talvez seja esse mesmo, de adorar tanto ao mesmo tempo, tão facilmente, tão rapidamente e tão intensamente.
O tempo voou, entretanto. O cinismo da vida leva, muitas vezes, a que os adultos percam pelo caminho essa capacidade de “ter” super-heróis. Infelizmente, este ano revelou um desses seres extraordinários. Digo “infelizmente”, porque as circunstâncias que resultaram deste reconhecimento público – que, arriscaria a dizer, é praticamente unânime e global – são chocantes e repugnantes.
O nome de Gisèle Pélicot jamais será esquecido, e não deixará nada igual. A mulher de 72 anos, que, durante uma década, foi drogada e violada pelo marido, Dominique ‒ que recrutava, num site de sexo (entretanto encerrado), outros homens para a violarem também ‒, tornou-se símbolo contra a violência sexual, uma super-heroína sem capa, ícone feminista, que, perante a tragédia, enfrentou o grau mais baixo do machismo e da misoginia de rosto destapado, encarando o mundo inteiro de frente.
Os pormenores dos crimes de Mazan, uma localidade com seis mil habitantes, na região de Provença-Alpes-Costa Azul, no sul de França, abalaram o mundo. Mas, a cada revelação, o buraco na alma parece continuar a aumentar: a extraordinária reportagem da CNN, que teve acesso às mensagens trocadas entre sete dezenas de abusadores, explica, ao pormenor, como tudo se passava, quando o negro da noite ali se instalava.
Dominique Pelicot ouviu esta manhã a sentença do tribunal de Avignon: 20 anos de prisão, a pena máxima, como o Ministério Público pedia.
Na sala de audiências, a ver e a ouvir tudo, esteve também a sua (agora) ex-mulher Gisèle, depois de, como referiu a acusação, ter feito com que a vergonha “mude de lado”, e recaia sobre os violadores e não sobre as suas vítimas.
A subdiretora da VISÃO, Sara Belo Luís, escrevia, no final do mês passado, que Gisèle “deveria ser eleita a mulher do ano”. Não poderia concordar mais. No ano em que Donald Trump regressou à Casa Branca, a Time voltou a escolher o novo presidente dos Estados Unidos como “personalidade do ano”, perdendo a oportunidade de fazer uma capa histórica. É pena.
Gisèle não usa capa, nem tapa o rosto. Esta mulher fez os adultos tremerem de emoção e/ou culpa; A mim, tantos anos depois, permitiu-me voltar a acreditar que muitos super-heróis não usam capa.