Em Portugal, há consumidores de primeira e de segunda. Uns têm direito a uma folgazinha da máquina tributária do Estado que vai devorando o que sobra do salário português com apetite pantagruélico, outros nem por isso.
Ao que parece alguns artigos alimentares vão deixar de ser tributados pelo Estado Português entre abril e outubro deste ano, mais concretamente, uma panóplia de itens cuja preço de aquisição o governo paternalisticamente considera que deve baixar, já que serão aqueles que os portugueses consomem mais regularmente, e que representam de forma proporcional aquilo que é a nossa roda dos alimentos atual que, por sua vez, não parece estar muito alinhada com a realidade de consumo em Portugal nem com a emergência climática que vivemos.
A lista inclui um conjunto limitado de cereais e tubérculos, mas suficiente para o bom português, uma panóplia das hortícolas que se habitualmente atira para uma sopa, cinco tipos de fruta atiradas ao misto que não devem agradar a gregos e troianos, apenas quatro tipo de leguminosas, sendo que quem gosta mais de feijão branco do que vermelho lá terá que fazer o exercício de daltonismo gastronómico, laticínios convencionais (mas as alternativas vegetais aparentemente ainda são tabu) e uma miríade de tipos de carne, sendo que o mais implausível é o facto de aí constarem carnes vermelhas que consabidamente contribuem para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e aumento da mortalidade precoce, e para a agudização do problema das alterações climáticas (estando entre os produtos com maior pegada ecológica).
Ainda que a decisão de apoiar os portugueses mais desfavorecidos num período de inflação seja louvável, existe, não obstante, uma oportunidade para uma intervenção construtiva que vá além de uma medida temporária. Em Portugal, os hábitos alimentares inadequados são o terceiro factor que mais contribui para a perda de anos de vida saudáveis, e cerca de 35 mil portugueses morrem anualmente de doenças cardiovasculares, que continuam a ser a principal causa de morte e representam um terço de toda a mortalidade da população, embora muitas dessas mortes e desse sofrimento prolongado pudessem ser evitados por uma mudança simples nos hábitos alimentares.
E sabemos também que a adopção da taxa de IVA de 0% é uma das recomendações feitas na estratégia Prado ao Prato, pela Comissão Europeia, onde se estabelece que os incentivos fiscais podem e devem encorajar uma transição para hábitos alimentares mais sustentáveis, sendo que o preço dos artigos alimentares deveria, assim, procurar refletir as externalidades da sua produção (emissões GHG, uso de água, poluição, etc.).
De fora desta lista ficam também alimentos que são já rotina no cesto de compras de mais de 1 milhão de portugueses que são vegetarianos ou adotaram parcialmente uma alimentação vegetariana (os ditos flexitarianos), tais como alternativas à carne como o tofu e o seitan, leguminosas como as lentilhas, e até mesmo alternativas vegetais ao leite e aos iogurtes que são amiúde procuradas por milhões de consumidores, seja por escolha própria ou motivos de saúde, como alergia alimentar. É quase caso para dizer que alguém mandou centenas de milhares de portugueses à fava, se pelo menos a fava tivesse sido incluída no cabaz de alimentos essenciais, algo que não aconteceu.
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